quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Filhos do Deserto



A DESAPARECIDA
De John Ford
Os dois mais belos “regressos a casa” filmados na idade clássica do cinema americano são os de Robert Mitchum em “The Lusty Men / Idílio Selvagem”, de Nicholas Ray (1952) e o de John Wayne em “The Searchers / A Desaparecida”, de John Ford (1956). Acontecem os dois no princípio do filme – e no de Ford, que agora nos interessa, esse regresso é mesmo a abertura do filme. Num caso como noutro, a extraordinária paz do “homecoming” é mera ilusão. Ford não o explicitou como Ray, que disse (mais do que uma vez) que “não se pode voltar a casa”. Ethan Edwards, a personagem de John Wayne em “A Desaparecida”, regressa mais do que uma vez,  para voltar sempre a partir – e no fim, nem chega a entrar, a porta, em rima directa e circular com o plano do princípio fecha-se sobre ele, que avança de costas voltadas deserto adentro. Ford não seria tão radical como Ray: há quem possa regressar a casa, e se a elipse final de “A Desaparecida” não nos engana, várias são as personagens que regressam, em toda a plenitude do “regresso” e da “casa”. Mas isso não se aplica a todos e há um homem, que no fim de contas nunca teve ou há muito tempo já não tem uma casa, que é devolvido ao mesmo deserto de onde veio. Esta é uma das muitas histórias contadas por “A Desaparecida”, talvez a mais trágica, talvez a mais doce, possivelmente a mais significativa e a mais americana.
“A Desaparecida” é um dos mais célebres e adorados filmes de John Ford. Favoritos, cada um tem o seu (como esquecer “She Wore a Yellow Ribbon / Os Dominadores”, como?), mas Peter Bogdanovich tem obviamente toda a razão quando diz, na versão comentada do filme incluída neste DVD, que “A Desaparecida” é um dos cinco ou seis títulos maiores da obra de John Ford. Realizado em 1956, é um Ford daquele que se convencionou chamar o “período maduro” do cineasta americano, designação insuficiente (porque pressupõe que por exemplo o Ford dos anos 40 não era “maduro”) que importa precisar um pouco mais. Como toda a gente sabe (e toda a gente conhece o “…and I make westerns”) o “western” foi sempre o território de eleição de John Ford, género eminentemente americano (como todos os outros, aliás) com cuja história se confunde. Espécie de grande narrativa mítica da construção da América, foi um género com uma tendência (natural e facilmente explicável) para um maniqueísmo sem grandes problemas de consciência, mormente no tratamento dos índios – silhuetas na paisagem, não forçosamente entidades malévolas mas obstáculos a ultrapassar, como um rio ou um rochedo, e portanto desprovidos de verdadeira “humanidade”. Sobretudo a partir do pós-guerra, e mais propriamente a partir dos anos 50, o emergir de uma nova “sensibilidade” começou a desenhar novos contornos para o “western”, numa atitude desmistificadora – é sobretudo o caso dos anos 60, apogeu do “western revisionista”, que na maior parte dos casos era já, literalmente, “pós-western”.
Sem que na altura houvesse muita gente para dar por isso (e Scorsese, salvo erro, menciona esse aspecto num dos “extras”do DVD) Ford não só acompanhou como antecipou esse movimento. À entrada dos últimos dez anos da sua obra (“A Desaparecida” é de 1956, o último, “Seven Women / Sete Mulheres”, é de 1965) Ford estava já a preparar o fim do género que décadas antes ajudara a criar e a estabelecer – é o tempo dos seus filmes “crepusculares”, e é sobretudo no sentido desta palavra, “crepuscular”, que se devem entender as alusões ao período de “maturidade” de Ford. A sua derradeira homenagem aos índios, “Cheyenne Autumn”, viria em 1964. Mas “A Desaparecida”, sem se resumir a isso (bem longe de tal), pode ser enquadrado nessa reflexão sobre a presença e o lugar dos índios e das culturas nativas americanas. De forma, aliás, razoavelmente complexa, uma vez que se trata de um filme que aparentemente reproduz os lugares-comuns sobre os índios – ferozes, selvagens, violadores e raptores de crianças brancas.
Tudo repousa mais uma vez na personagem de Ethan Edwards, porventura a mais turva personagem de Ford (e de Wayne), personagem cheia de “sentido” (e de “sentidos”), contraditória e, no fim do filme, como que “expelida”. Mil vezes Ford se projectou em Wayne, mil vezes Wayne foi o representante de Ford (e, pormenor, uma das coisas que alguém menciona nos extras é o modo como Wayne se “apropriava” de gestos e maneirismos típicos de Ford). Aqui, se existem projecção e representação, elas são bastante mais ambíguas.
“Gostava que o tio Ethan estivesse” aqui, diz o sobrinho na sequência em que a pequena casa-oásis no meio do deserto é cercada pelos Comanches. Podia-se descrever o movimento de “A Desaparecida” como algo entre a necessidade desta presença e a altura em que, no plano final, ele se remete ao deserto e a porta se fecha – quando a sua presença deixa de ser necessária e ele já não tem lugar. Narrativamente, é capaz de ser a história mais importante de “A Desaparecida”. Ethan estava fora nessa noite que lança o drama, quando a casa do irmão e da cunhada é atacada por índios. Acontece um massacre, e o segundo regresso de Ethan, para descobrir o que restou e o que aconteceu aos familiares, contém algumas das mais ásperas elipses da obra de Ford (o plano em que Wayne assoma à entrada do celeiro, por exemplo, em dilacerante rima com o plano inicial). Mas as duas sobrinhas de Ethan, uma adolescente e uma criança, ao que tudo indica foram raptadas, e estão portanto vivas, algures num acampamento índio. Noutra fabulosa elipse, percebemos mais tarde o que aconteceu à mais velha (“queres que te faça um desenho? Por mais tempo que vivas não me faças perguntas”). Monta-se uma expedição de salvamento e pouco tempo (e mais elipses) depois, restam dois: Ethan e o sobrinho adoptivo, Martin (Jeffrey Hunter) um mestiço meio-cherokee que o irmão tinha adoptado.
Em mais do que um sentido, a história de “A Desaparecida” é tanto a da busca da rapariga raptada como a da relação entre Ethan e Martin – e sobretudo, da maneira como o olhar de Ford vai tratando um e outro. Ethan Edwards é o homem amargo, solitário, complexado, carregado de ódio contra os índios. Em suma, se é que se pode somar tão simplesmente, um racista (o que é exemplarmente expresso numa das mais terríveis cenas do filme, o encontro com um grupo de mulheres brancas resgatadas pela cavalaria a uma tribo índia: “estas mulheres já não são brancas”). Um anti-herói, como os que por esta altura já havia no cinema americano mas que não é costume associar a Ford (ou a John Wayne). E Martin é rapaz meio-índio, que vai crescendo e tornando-se adulto ao longo dos anos que a busca demora. Se há um “discurso” de Ford, como parece inegável que há, ele tem que ser procurado na evolução destas duas personagens aos olhos da câmara. Reparar como a pouco e pouco a personagem de Hunter vai aumentando de importância, e como é o seu ponto de vista que se vai impondo (fundamental, a magnífica sequência, em falso “flash back”, da leitura da carta pela sua namorada), assim como a sua vontade e as suas ideias, num movimento paralelo ao apagamento de Ethan Edwards. No fim, como que por uma ironia carregada de sentido, quem regressa a casa são uma miúda “aculturada” pelos comanches, e um semi-cherokee que vai casar com uma filha de emigrantes dinamarqueses. Ethan Edwards fica com o deserto.
Também por isso “A Desaparecida” se desenha como uma grande saga americana, tingida em tons de tragédia clássica. Não sabemos dizer o que é aqui mais admirável. Se o tratamento coral da paisagem (Monument Valley ou as planícies nevadas), se a absoluta depuração narrativa (as elipses, os cinco anos que se podem passar de um plano a outro), se a progressão obstinada e demencial da personagem de Wayne (momento de suprema loucura: Ethan a descarregar a espingarda contra uma manada de búfalos, “para os índios não terem o que comer”), se a capacidade expressiva que Ford revela em cada enquadramento – como diz alguém nos extras, “se querem pintura, vejam John Ford”. “A Desaparecida” é um dos monumentos do cinema clássico americano. É para ser visto, qualquer explicação fica aquém.

LMO

quinta-feira, 17 de abril de 2014

The Outlaw Josey Wales


THE OUTLAW JOSEY WALES
de Clint Eastwood
The Outlaw Josey Wales é, dos seus filmes, o preferido de Clint Eastwood (ou pelo menos era, aqui há uns anos). É fácil acreditar nessa preferência, porque The Outlaw Josey Wales sintetiza admiravelmente, e com menos ambiguidade do que noutras circunstâncias, um punhado de características essenciais na “persona” de Clint. De resto, acompanhar todo este período do anos 70 em que a sua obra alternava “westerns” e “policiais” (especialmente os com Dirty Harry) permite uma conclusão óbvia: os “westerns” iluminam os “policiais”, Dirty Harry é um “cowboy” num cenário moderno e urbano mas fundamentalmente indistinto dum cenário de “western” – porque a lei e a justiça, por alguma razão ou por um conjunto de razões, se tornaram inoperantes (e a inoperância da lei, a sua impotência e a sua incapacidade, são o tema subjacente a todos os filmes com Dirty Harry). Curiosamente, talvez nunca se tenham tirado, mesmo por quem defendeu Clint desde cedo e durante o tempo da artilharia pesada virada contra ele, as devidas ilações quanto ao teor do seu retrato de uma América ainda e sempre embrenhada numa “cultura de violência” que sufoca a eficácia da lei e da justiça.
Que melhor época para sintetizar esta impotência legal, levada ao ponto do caos, do que o aftermath da Guerra Civil retratado em The Outlaw Josey Wales? Bandoleiros que se tornam soldados a partir do momento em que vestem um uniforme, e vice-versa. A lei não tem “rostos”, tem “máscaras”. É nesta confusão que se desenvolve The Outlaw Josey Wales, de resto com profundas e realistas bases históricas (na descrição, por sua vez demasiado confusa para aqui a tentarmos resumir, das inúmeras milícias e grupos paramilitares que medraram em torno dos exércitos da União e dos Estados Confederados). Atendendo à fama que tinha, há que gabar a coragem (a provocação? o autismo?) de Clint em assumir uma personagem de sulista, mas ao mesmo tempo há que entender que o sulismo de Josey Wales é um sulismo mítico ou mitificado, que serve como ponto de partida, o ponto de partida de um derrotado mas sobretudo o ponto de partida de uma personagem que viu o seu mundo esboroar-se, uma personagem que ficou “sem mundo”.
Ou que ficou reduzido a um pequeno núcleo essencial – a pequena propriedade, a casa, a família. The Outlaw Josey Wales começa como, muitos anos mais tarde (ou não tantos assim, apenas dezasseis), Unforgiven, com um agricultor a tratar da sua propriedade. Nas drásticas circunstâncias que os espectadores verão na primeira sequência, até isso vai ser retirado a Josey Wales. E são essas circunstâncias que o forçam a agir (como sempre: Clint não é um devoto da acção, nem Dirty Harry, apenas alguém que a aceita como uma inevitabilidade, a inevitabilidade que permitirá o regresso à inacção), num mescla de sentimentos que concilia o desejo de vingança com um “je m’en foutisme” (visto que ficou sem nada) quase suicidário, e põe em marcha o processo que fará dele o “fora da lei Josey Wales” (também aqui, no que tem a ver com o relato, com a aura e com a fama, sempre ditadas por terceiros, se encontraria uma relação com Unforgiven). Mas, evidentemente, sempre munido de uma espécie de código de honra, silencioso e nunca expresso, um sentido de decência fundamental que ao longo do filme terá mais do que uma ocasião para manifestar – numa terra sem lei ou onde a lei foi distorcida, a única bússola é a fornecida por uma lei pessoal, por um punhado de valores instintivos (ver, por exemplo, os contracampos da reacção de Clint à iminente violação da personagem de Sondra Locke, em prova de que, mais uma vez, seriam esses valores a forçá-lo a agir, caso disso tivesse chegado a haver necessidade). “Fora da lei”, no fundo, estão todos; mas o único que tem pelo menos uma vaga memória da dimensão moral da lei é Josey Wales, e nisto se funda quase todo o individualismo eastwoodiano.

Houve algum reboliço quando, pouco depois da estreia do filme, se descobriu que o Forrest Carter que assinava a novela em que o argumento se baseou era apenas o pseudónimo de um proeminente membro do Klu Klux Klan. Clint garantiu não saber de nada disso durante a rodagem. Mas tinha mais graça se tivesse sabido, porque The Outlaw Josey Wales é um filme profundamente anti-racista. Num terra onde os brancos do sul e os brancos do norte se andaram a matar e ainda se matam indiscriminadamente, junto de quem é que Josey Wales encontra um “espelho”, um espelho para o seu código de honra, um espelho para o seu “mundo perdido”? Justamente, dos índios. O território índio podia ser uma “reserva” no sentido segregacionista que veio a ter, mas era sobretudo uma “reserva” moral, propriamente dita. The Outlaw Josey Wales tem um pouco de uma declaração de amor pela paisagem americana (como os bons westerns clássicos), na permanente deriva territorial que ocupa grande parte do filme, mas também é uma declaração de amor pela diversidade dessa paisagem e pela memória ancestral que ela conserva. E, tanto mais que Clint já estava aqui (ver, por exemplo, os tempos e a planificação, tudo muito pragmático, do derradeiro combate, mas sobretudo do duelo de olhares, campos/contracampos, em que se decide o confronto final com a sua “nemesis”) completamente livre dos maneirismos “leonianos” ainda tão presentes no seu primeiro western (High Plains Drifter) é de Ford que mais nos lembramos ao longo de The Outlaw Josey Wales, como se o diálogo fosse, agora, com The Searchers ou com Cheyenne Autumn. “Revisionista”, como lhe chamam, eventualmente; mas no mesmo sentido em que os derradeiros Fords foram, eles próprios, revisionistas. Ou seja, usar a mesma tradição para dizer outras coisas: dizer “o último dos clássicos” nem sempre faz sentido, aqui sim.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Entrevista com Manuel Mozos

NUNCA SE GANHA E NUNCA SE PERDE

“Quatro Copas” é a quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos (n. 1959), história de um trio de personagens que depois passa a quarteto unido e desunido pelas circunstâncias afectivas, numa Lisboa sempre reconhecível mesmo quando não é identificável. É um momento feliz na obra de Mozos, desde sempre assolada por percalços variados: “Quatro Copas” estreia-se comercialmente, “Ruínas” (ainda não estreado) tem ganho alguns prémios importantes. Em conversa com o Ípsilon, Manuel Mozos falou de “Quatro Copas” e dos caminhos difíceis percorridos pelos jovens cineastas portugueses que se estrearam nos anos 80. Mozos foi um deles, e aprendeu que “nunca se ganha e nunca se perde”.

PÚBLICO – A sua carreira vive em 2009 um momento particularmente feliz. “Ruínas” tem dado nas vistas [foi premiado no IndieLisboa e no FID-Marselha], “Quatro Copas” estreia-se comercialmente… E apresentou ainda “Aldina Duarte – Princesa Prometida”. Numa obra que tem sofrido com tantas irregularidades, tem alguma explicação para esta conjuntura afortunada?
MANUEL MOZOS – É uma coincidência, que até é devida a essas irregularidades. A rodagem do “Quatro Copas” foi em 2005, está pronto praticamente desde há dois anos, e há um ano e meio que estava à espera da estreia. O “Ruínas” também foi um processo prolongado, ficou pronto agora. Assim como o da Aldina. É uma coincidência, mas acho que há uma coerência [risos] na relação com as irregularidades. O caso extremo é o “Xavier”, que ficou muitos anos à espera de ser estreado, mas há uma aura de invisibilidade em torno de tantas coisas que fiz…
P- “Quatro Copas” é a sua quarta ficção. Como é que a relaciona com as outras três [“Um Passo, Outro Passo, e Depois”, 1989, “Xavier”, 1992 e “…Quando Troveja”, 1999]?
R- Por um lado, ambientarem-se todos em Lisboa, e por outro, uma proximidade nos traços das personagens. Personagens em queda, que acabam por ter uma espécie de redenção, e se movem no quotidiano. No “Quatro Copas” isso sente-se de maneira diferente, porque seguimos quatro personagens e não uma, mas isso para mim até é um pouco uma súmula, permite-me apanhar quatro personagens de gerações diferentes.
P- A Lisboa de “Quatro Copas” é um pouco mais tortuosa. Gira entre o corriqueiro do centro comercial e a clandestinidade da casa de jogo. É uma Lisboa dada mais por ambientes do que pela rua.
R- Concordo. Não é o aspecto realista da cidade que me interessa. Antes usar a geografia como “décor”, procurar o que nela há de “papelão”, usá-la como uma paleta. Neste filme há mais interiores, de facto. A ideia de ter personagens a moverem-se numa aparência de subterrâneo já me tinha interessado no “…Quando Troveja”, mesmo se aí acabei por não a explorar como queria. Em todo o caso não é o realismo estrito que me motiva. O casino clandestino, por exemplo, tem um lado postiço, é sobretudo uma ideia, um ambiente…
P- Se há uma coisa que define os seus filmes é a maneira de trabalhar as personagens e de se relacionar com elas. É única e inconfundível no cinema português. Em termos de construção, diria que é narrativa que as decide, ou que são elas que decidem a narrativa? É que fica a sensação de que a partir de certa altura o seu amor pelas personagens, por todas elas, se sobrepõe a tudo.
R- Este filme tem uma nuance. Ao contrário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do “Quatro Copas” nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessante até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, até de maneira que nalgumas partes se poderia dizer que a história ficou fragilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo “fragilizada” no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a “coerência” da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens.
P- Tendo formação e experiência de montador, com inúmeros trabalhos para outros realizadores, consegue criar uma distância face ao material filmado por si?
R- É complicado. Nos meus filmes trabalho sempre com outros montadores. E gosto de lhes deixar algum espaço para eles fazerem a sua leitura. A sua leitura e a sua escrita. Mas por força das circunstâncias acabei, neste filme assim como no “Xavier”, por estar muito directamente ligado à montagem. Houve uma primeira versão, montada pelo Pedro Marques, com a qual estávamos bastante satisfeitos, mas era uma versão decidida na relação com uma série de trechos musicais de que não pudemos comprar os direitos, que eram uma exorbitância. Como ele depois não estava disponível, fiquei eu, um bocado a contragosto, a trabalhar na remontagem.
P- Percalços e interrupções… A sua carreira parece atrai-los: o “Xavier” foi o que foi, o “Passo” é um dos poucos “missing films” dos anos 90…
R- Há mais, há mais…[risos]
P- A pergunta é: num meio já de si tão complicado e frequentemente adverso como é o do cinema português, como é que se lida com toda esta adversidade adicional?
R- Já me angustiei mais com isso. Hoje acho que não vale a pena perder muito tempo a pensar nessas contrariedades. Prefiro estar contente com a vida do que viver amargurado por causa de alguns azares. Também já não tenho as pretensões e as ambições que tinha há vinte ou mesmo há dez anos. Há uma certa resignação, se calhar um pouco estúpida. O caso do “Passo” ainda me faz sofrer um bocadinho, embora tenha esperança que algum dia venha a ser encontrado [o filme só é visível actualmente em transcrições vídeo]. Mas em Portugal há tanta coisa que se perde, que fica para trás… Também não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, farei. Já não tenho muita paciência para as minhas próprias angústias. Fiz um número razoável de filmes, mesmo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz. Para mim isto já é uma satisfação. É claro que me posso perguntar se as coisas como me estão a correr hoje…
P- …tivessem corrido assim desde o princípio…
R- …mas nem vale a pena. Tenho-me divertido…
P- Deve ser das pessoas com um interesse mais intenso, e quase enciclopédico, no cinema português e nos seus recantos mais obscuros. É capaz de falar com profunda estima de um filme falhadíssimo dos anos 50, ou de uma produção amadora feita sabe-se lá onde… Para dizer que são maus, mas sem que isso impeça uma espécie de apreço. De onde é que isto vem? O que é que o interessa tanto nesta história alternativa do cinema português como falhanço?
R- Não é só no cinema…
P- Eu sei, mas circunscrevendo…
R- Por um lado, e genericamente, tenho tendência a comover-me com a “décalage” entre uma intenção e o resultado dela. Por outro, no cinema português há, ou havia, algumas pessoas que mesmo sem talento ou condições se entregavam ao que estavam a fazer com total convicção. O resultado podia ser péssimo mas era a vida daquelas pessoas. Para além disso, e por maus que sejam, pode-se sempre encontrar coisas interessantes nesses filmes. Pormenores de arquitectura, a maneira como as pessoas se vestiam. O esforço inglório de alguns actores, a darem o melhor de si e depois o filme não presta para nada… Às vezes há momentos fantásticos. Claro que é um bocadinho enfadonho estar a ver uma hora e meia para aproveitar trinta segundos. Mas pronto.
P- A sua geração, por discutível que seja o conceito de “geração” mas aceitemo-lo para definir o conjunto de pessoas que chegou ao cinema nos anos 80, teve imensas baixas e desaparecidos em combate. Quase se lhe pode chamar, a si, um “sobrevivente”. O que é que esta geração encontrou de tão especialmente difícil? Tem alguma explicação?
R- Havia um problema geral, que sempre houve: falta de espaço. As próprias condições de produção o ditam. Nunca houve um investimento sério para criar, não uma grande indústria que seria impossível, mas algum tipo de abertura. De entre a geração dos anos 80 muitos ficaram pelo caminho, de facto. Começava logo nos concursos do Instituto [Português de Cinema, então], onde só havia lugar para uma ou duas primeiras-obras. Havia aquelas pessoas ainda muita próximas, etariamente, da geração do Cinema Novo, o João Botelho, o Luis Filipe Rocha, o José Alvaro Morais, o Jorge Silva Melo, e a vida também não foi fácil para eles. Mas dos que vieram a seguir, durante os anos 80, muitos ficaram bloqueados, praticamente só o Pedro Costa, o Joaquim Leitão e a Teresa Villaverde é que conseguiram singrar. Pessoas como o Vitor Gonçalves, ou o Daniel Del Negro, fizeram filmes que como era habitual na época tiveram dificuldades em estrear mas foram muito projectados num círculo restrito, e isto também pode ser um bocado intimidatório por causa das expectativas que se criam. E muitos tiveram infortúnios de todo o tipo. Se quisesse ir por uma teoria da conspiração diria que esta conjuntura até podia ter sido gerida por pessoas ligadas às decisões sobre o cinema português, que optaram por estrangular em vez de abrir. E então pronto, tinha que haver vítimas e quem se aguentasse aguentava. Muitos dos filmes, mesmo cheios de fragilidades, não mereciam ter levado a pancada que levaram. Os primeiros filmes do João Canijo, por exemplo, aquilo foi complicado. Depois há o caso do [Edgar] Pêra, que é um caso de resistência. Em resumo, não consigo dizer: foi por isto ou foi por aquilo. Houve um conjunto de factores que atirou muita gente para fora da pista. E quando finalmente podiam estar em condições de recuperar o tempo perdido aparece uma nova geração. Voltar quinze ou vinte anos depois é sempre muito complicado.
P- Pensando nalguns casos dessa nova geração, o Joaquim Sapinho, o João Pedro Rodrigues, mesmo o Miguel Gomes, dá a impressão de que encontraram uma conjuntura menos agreste. Por outro lado, a vossa geração era uma geração de “filhos”, e estes já não são bem “filhos”. Até que ponto isto pode ser importante?
R- Acho que isso é realmente importante. Quer dizer, eu não sei se o Pedro Costa ou a Teresa Villaverde…
P- …se consideram “filhos”…
R-…pois, mas isto é um facto: nós ainda conhecemos os “pais”. Até pelos filmes isso se nota. Havia algumas referências em comum, até numa linha de continuidade com o cinema português. Querendo ou não, ainda estávamos muito ligados ao Paulo Rocha, ao António Reis, ao Fernando Lopes, ao João Bénard da Costa, ao Seixas Santos ou ao César Monteiro. Até mesmo, de maneira diferente, ao João Mário Grilo. Havia uma herança que era veiculada pela Escola de Cinema. Julgo que nestes, no Sapinho, no João Pedro, no Sandro Aguilar, no Miguel Gomes, há um despojamento maior. Outra abertura ao mundo.
P- Ao mesmo tempo, e não querendo transformar isto em psicanálise barata, nos vossos filmes sente-se a noção, ainda que inconsciente, de estarem a filmar dentro da “família”, sob o olhar do “pai”.
R- Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes, no IPC, na RTP… Eu por exemplo devo o meu primeiro filme ao Fernando Lopes, foi ele quem me convidou para os “Corações Periféricos” [a série onde se integrava “Um Passo, Outro Passo e Depois”]. E acho que este tipo de relacionamento criou uma espécie de constrangimento nos mais novos, que aliás era incentivado pelos mais velhos. Estou a dizer isto mas não implica que não tenha admiração, respeito e amizade, por muitos desses cineastas. Mas é um sentimento de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares decisivos, não têm. Não lhes devem nada.
P- Quando “Xavier” teve uma sessão de ante-estreia na Cinemateca incluiu na folha de sala um poema de Jaime Gil de Biedma [“Príncipe da Aquitania, En su Torre Abolida”] que começa assim: “Una clara consciência de lo que ha perdido / es lo que le consuela”.  É tão fácil adivinhar que se identifica com este verso…
R- Ah, sim, sim. Isto pode fazer confusão a algumas pessoas, mas serve-me para avançar. OK, perdi certas coisas mas… é como na canção do [John] Cale, “never win and never lose” [“nunca se ganha e nunca se perde”]…
P- …ou na do Dylan, “there’s no success like failure but failure’s no success at all” [“não há triunfo como o falhanço, mas o falhanço não é triunfo nenhum”]…
R- As coisas equilibram-se. Mesmo quando perdemos muito ganhamos alguma coisa. E isto é importante.

LMO

terça-feira, 15 de abril de 2014

A moral da farsa

SEIS CONTOS MORAIS
De Eric Rohmer
Eric Rohmer, nascido em 1920, era o mais velho dos cineastas da “nouvelle vague”, e um pouco por essa razão, reforçada por outras (formação, interesses), como é confirmado por alguns episódios quase psico-dramáticos (o “golpe de estado” nos Cahiers encabeçado por Jacques Rivette), também o corpo mais estranho nesse bloco só superficialmente compacto. Era o mais culto de todos, em sentido convencional e mesmo propriamente “académico”, e o que tinha uma relação mais sólida com a literatura, por oposição ao diletantismo auto-didacta (não importa quão brilhante) dos sues colegas mais jovens. Ora se a literatura, e já estamos a chegar aos “Contos Morais”, foi a frustração, o “peso”, que conduziu os rapazes da “nouvelle vague” ao cinema (na célebre formulação de Godard, “como podíamos esperar escrever melhor do que Joyce ou Rilke?”), quem mais nela avançou foi Rohmer. Todos os seis “Contos Morais” começaram por ser projectos literários, escritos durante as décadas de 40 e 50, numa época em que Rohmer estava longe de imaginar vir a ser realizador de cinema. Muito mais tarde, já depois de estreados todos os filmes da série, os “Contos” foram publicados em livro (a edição portuguesa é da Cotovia), e no prefácio Rohmer fazia uma confissão de fracasso, com ironia “ma non troppo”: “se os filmei, foi porque não fui capaz de os escrever”. Morreu o escritor falhado, nasceu o grande cineasta.
Os “Contos Morais” também representaram a imposição (tardia, mais uma vez por relação com os parceiros de movimento) de Rohmer como realizador. Não deixa de ser curioso que um “fracasso” tenha remediado outro fracasso – este menos relativo e sem aspas: “Le Signe du Lion”, primeira longa-metragem de Rohmer, fora uma má experiência pessoal, passara sem grande atenção, e ainda hoje é provavelmente o menos conhecido dos filmes iniciais da “nouvelle vague”. Para resolver o impasse, Rohmer lembrou-se de puxar da cartola os seus devaneios literários da juventude. Com a ajuda do muito jovem Barbet Schroeder, que praticamente fundou a “Les Films du Losange” só para produzir o projecto de Rohmer, atirou-se aos “Contos Morais”, a princípio num artesanato quase amadorístico mas muito “nouvelle vague” (entre os primeiros filmes, “A Padeira de Monceau” e “A Carreira de Suzanne”, para todos os efeitos uma curta e uma média-metragem respectivamente, e os últimos, “O Joelho de Claire” e “O Amor às Três da Tarde” há uma gritante diferença de “aspecto”, ou se preferirem, de valores de produção). Os “Contos” ocuparam Rohmer durante todos os anos 60, entre 1963 e 1972 (apesar de ser uma década em que o cineasta fez muito trabalho para televisão), e garantiram-lhe definitivamente a notoriedade a partir dos terceiro e quarto episódios (“A Coleccionadora” e “A Minha Noite em Casa de Maud”, rodados e estreados por ordem inversa do seu posicionamento na série). Foi a primeira série de Rohmer, que depois repetiu esse princípio estruturante nos anos 80 (as “Comédias e Provérbios”) e nos anos 90 (os “Contos das Quatro Estações”).
“Serialista”, Rohmer é também um “geómetra” da narrativa. Todos os “Contos” assentam numa, chamemos-lhe, proposição triangular: um homem, uma mulher, outra mulher, de novo a primeira mulher. Profundo admirador de Murnau, Rohmer terá baseado estes movimentos em triângulo no arquétipo estabelecido pelo “Sunrise” do cineasta alemão – mas o certo é que (e visto que arquétipos são arquétipos) se pensa mais, durante o visionamento dos “Contos”, em variações sobre o modelo das “screwballs” americanas e das “comédias do re-casamento”. O humor, de resto, nunca está longe em nenhum dos “Contos”, autênticas comédias sem sinais exteriores de comédia, talvez com excepção do último, “O Amor às Três da Tarde”, que sendo o filme com o tom mais uniformemente grave é aquele em que com mais propriedade se pode falar em “re-casamento”. De resto, ao longo da série a faixa etária das personagens vai subindo: na “Padeira” e na “Suzanne” são miúdos, têm 18 anos, no último é um homem de meia-idade acometido de claustrofobia matrimonial.

Evidentemente, o tema central dos “Contos” é o desejo masculino, e a sua volatilidade face às circunstâncias. Não é a primeira vez, nem será a última, que citamos uma frase de Rohmer, homem demasiado antigo (e dirão alguns, demasiado reaccionário) para não desconfiar da psicanálise: “o inconsciente é o corpo”. Isto é a chave de muito Rohmer, e seguramente a principal chave dos “Contos”. Como lida o homem urbano, civilizado, “intelectual”, com as flutuações do desejo, com o aleatório dos sentimentos e dos acontecimentos? Obviamente, racionaliza: se os “Contos” são “Morais” é porque todos os protagonistas fazem um esforço para integrar tudo (as hesitações, os acasos, as vacilações) numa ordem de premeditação que tanto é uma âncora para a sua existência como a reivindicação de uma “superioridade moral” perante os outros (e as outras). Diz, resumindo quase todos os outros “Contos”, o jovem protagonista de “A Padeira de Monceau”, depois por um acaso em que não foi tido nem achado troca uma mulher por outra: “fiz uma escolha moral”. A história dos “Contos” é a história desta “moral”, uma “moral” que (talvez à excepção do caso do protagonista de “A Minha Noite em Casa de Maud”, que é quase um ensaio sobre a santidade) no fundo não é mais do que uma ficção essencial à sobrevivência, uma permanente “mise en scène” da negação. O génio de Rohmer é conseguir filmá-la dando a ver em cada plano uma situação e, ao mesmo tempo, a sua leitura: o “falsamente objectivo” e o “falsamente subjectivo” equivalem-se, andam de braço dado, habitam o mesmo corpo e o mesmo olhar. O corpo e o olhar do cinema, pois o que os “Contos” mostram é que, quando se trata de justificar o seu lugar num mundo entre mulheres, cada homem é um cineasta, cada homem inventa o seu filme, consigo no lugar do herói. O que eles projectam como drama, Rohmer filma como farsa (mas sem danificar o drama deles). Genial, claro. Mas mais importante do que isso, único. Rever os “Contos” é um prazer, descobri-los uma maravilha.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Speak to God

MARY
de Abel Ferrara

A religião não é uma novidade na obra de Abel Ferrara. A temática e o imaginário católicos cruzam, de modo mais ou menos central consoante os casos, vários dos seus filmes. É mesmo o ponto em que o cinema de Ferrara mais se toca com o de outro célebre ítalo-americano novaiorquino, Martin Scorsese (e não haverá muitos mais pontos de contacto para além destes: a origem italiana, Nova Iorque, e o Catolicismo). O grande filme católico americano dos anos 90, que no entanto não era um “drama religioso”, foi Abel Ferrara quem o fez; chamou-se “O Tenente sem Lei”, tinha uma freira que perdoava aos seus violadores citando palavras da Bíblia sobre os “necessitados”, e sobretudo tinha um Harvey Keitel em fantástica entrega, na pele de um Cristo moderno, louco, drogado e desamparado (ou, o que vai dar quase ao mesmo, na pele de um drogado louco e desamparado que se tomava por um Cristo moderno).

“Mary” é, mais ostensivamente, um “drama religioso”. Em termos narrativos, mas até em termos científicos. Vários investigadores e especialistas em estudos do cristianismo tomam a palavra no filme, nos segmentos correspondentes ao programa de televisão coordenado pela personagem de Forest Whitaker. Ferrara oferece-lhes um tempo generoso para as suas intervenções – não para caucionar, nem mesmo para “explicar”, mas para adensar: o que eles dizem é importante, quer na textura do filme quer enquanto olhar sobre o próprio filme. E isto porque, falta dizer, “Mary” se constrói usando por base o Evangelho apócrifo de Maria Madalena, descoberto no Egipto em 1945, segundo o qual Maria Madalena seria a principal discípula de Cristo, primeira intérprete do seu pensamento e das suas palavras. Já se escreveu que esse Evangelho, fazendo duma mulher a primeira depositária das palavras de Cristo, era algo de extremamente subversivo para a organização tradicional das instituições religiosas católicas, e a partir daí também se tem escrito sobre “Mary” como um filme “feminista” – o que, sendo possivelmente verdade, não parece ser a tecla mais importante para Ferrara.

Esses momentos “documentais” em que a palavra dos investigadores configura uma espécie de olhar sobre o filme mas exterior a ele são também importantes como sinal do funcionamento de “Mary”. Como se um filme em “porta giratória”, em “Mary” está-se sempre a entrar ou a sair de qualquer coisa. É talvez a principal marca distintiva da estrutura narrativa de “Mary”, com Ferrara, cujos piores (ou menos interessantes) filmes são sempre aqueles formalmente mais “limpos”, a arriscar uma construção em “manta de retalhos”, conciliando registos heteróclitos e aproximando matérias narrativas de vária ordem. “Entrar” e “sair”: se o filme entra e sai das vidas das suas personagens saltitando entre elas, também entra e sai (como dissemos) do programa de televisão de Forest Whitaker, ou do “filme no filme” que é aquele que a personagem de Matthew Modine, um realizador, tem pronto a estrear, baseado no Evangelho de Maria Madalena. Esta circulação, de resto, é anunciada na brilhante sequência inicial do filme: Binoche, uma actriz chamada Mary que interpreta o papel de Maria Madalena no filme de Modine, justamente apanhada no ponto em que já não quer (ou já não sabe como) sair. Acabou a rodagem mas ela recusa-se a sair da personagem, a abandonar a pele de Maria Madalena – problema de “encarnação” ou sua superação: Binoche não emprestou um corpo à personagem, ofereceu-lhe um espírito. Uma espécie de iluminação ou revelação, em todo o caso um “encontro”. Ferrara já filmou vampiros mas isto nada tem a ver com vampirismo, é apenas a fé como entrega absoluta, uma “entrada sem saída”, um “no way out”. Em vez de voltar para Nova Iorque, segue para Jerusalém.

Pressentem-se – é o risco assumido da “manta de retalhos” – vários filmes a acotovelarem-se dentro de “Mary”, como aliás já deve ter dado para perceber. “Mary” tem um lado “crítica do mundo moderno”, que usa a personagem de Binoche como contraponto. Algum desse “mundo moderno” talvez seja um bocado palha no contexto do filme, ou por outra, talvez se dê demasiado a ver como “sinalização” (e pouco mais) desse “mundo moderno” (as alusões ao conflito israelo-palestiniano, os boicotes da direita religiosa ao filme de Modine, etc). Mas integra, e isso é mais interessante, uma “crítica do espectáculo”, e é sobretudo aqui que a personagem de Binoche é um contraponto absoluto. Especialmente quando oposta à personagem de Matthew Modine, realizador meio poltrão, indeciso entre o prestígio “arty” e um estrelato a maior escala; tem-se visto, e é fácil ver, uma alusão a Mel Gibson e à sua “Paixão de Cristo”, mas Ferrara é alguém demasiado auto-punitivo para se excluir completamente a si próprio do retrato. Se Modine é a vaidade e a vontade de um “não comprometimento” tão grande quanto lhe for possível, Forest Whitaker completa o desdobramento: personagem em perda na vida pessoal, é alguém “sem lei” (como o tenente do outro filme) porque a perdeu, algures entre os desejos de grandeza e as tentações da carne. O protagonista “ferrariano” típico surge cindido nas duas personagens masculinas – e face a elas Binoche, a personagem feminina, na sua plenitude (e no seu “acordo”) de corpo e alma, é uma espécie de projecção ideal e idealizada, alguém intocável mas que por sua vez, pode tocar. E o mistério desse toque, de maneira não negligenciável, está no cerne de “Mary”. Como essa cena em que Whitaker, desesperado pela possibilidade de o seu filho recém-nascido morrer, fala com Binoche ao telefone e ela lhe pede (como o Johannes do “Ordet” de Dreyer) que experimente “falar com Deus”. Ele não sabe como se fala com Deus, responde “I can’t speak to God”. Mais tarde entrará numa igreja. “Como entrar” – é o grande tema, e a grande dúvida, de “Mary”.

terça-feira, 11 de março de 2014

Os perigos da sedução


NE TOUCHEZ PAS LA HACHE
de Jacques Rivette

Tivesse este filme chegado a estrear em sala e seriam as únicas 5 estrelas (pelo menos as únicas 5 estrelas “de caras”) que teríamos dado em todo o ano. Ne Touchez Pas la Hache é uma maravilha, uma obra-prima, o melhor Jacques Rivette em muitos anos, eventualmente desde o seu díptico sobre Joana d’Arc, Jeanne la Pucelle (1994). É uma adaptação de uma novela de Balzac, A Duquesa de Langeais, que ao que parece o escritor francês publicou originalmente com o título, Ne Touchez Pas la Hache, escolhido por Rivette para o seu filme. Convém dizer que nada disto é muito óbvio ou muito evidente tratando-se de Rivette, cineasta que tem pouquíssimos filmes “de época” (Ne Touchez Pas la Hache passa-se no princípio do século XIX) e muito poucas adaptações literárias canónicas (sendo certo que Balzac, quando se trata de “adaptar”, é o seu escritor de eleição: já estivera na base, mais ou menos remota, de Out 1 e da Belle Noiseuse). É uma história de “amor frustrado”, e se com esta expressão evocamos uma célebre tetralogia de Manoel de Oliveira há boas razões para isso, num filme que permite pensar (muito) no Amor de Perdição, e de algum modo também na Belle Toujours, cujos protagonistas, Michel Piccoli e Bulle Ogier, reencontramos, em singular coincidência, entre a galeria de secundários no filme de Rivette.

Mas aqui os protagonistas, fenomenais, são Jeanne Balibar e o recém-desaparecido Guillaume Depardieu, filho “rebelde” de Gérard. Balibar não será uma supresa para ninguém, é uma das mais conhecidas actrizes francesas da sua geração, e para mais é uma “rivettiana” reincidente (tínhamo-la visto em Va Savoir). Mas Depardieu, homem de carreira irregular e vivência acidentada, é uma revelação: o seu Marquês de Montriveau é verdadeiramente o papel de uma vida, frágil e poderoso, selvagem e codificado. Há pouco, num depoimento a seguir à morte de Guillaume, Balibar contou que foi Rivette quem lhe pediu para escolher o actor com que quisesse fazer contracenar a sua Duquesa Antoinette de Langeais, e que então se lembrou de ir buscar à sua pouco estável (e um tanto dissoluta, mesmo “suicidária”) existência o jovem Depardieu. Também contou que foi Guillaume que trouxe uma ideia decisiva: sempre que estavam os dois em campo, a Duquesa devia “sentir medo” do Marquês. O medo, o perigo, a ameaça, velhos condimentos rivettianos que aqui, ao contrário do que acontecia em Va Savoir (“onde está o perigo cresce também aquilo que salva”, dizia-se nesse filme, em citação de Hölderlin), não salvam ninguém, e muito menos a Duquesa. Que brinca com a paixão – mais com a do Marquês por ela do que com a dela por ele – por entre justificações de ordem ética e religiosa e uma “coquetterie” um pouco fútil e egoísta (estamos, é bom de ver, submetidos aos códigos de conduta social dos salões da aristocracia parisiense de mil oitocentos e tal) até ao ponto em que ele se zanga. É quando o “machado” vem ao caso, o machado que é uma relíquia (decapitou Carlos I de Inglaterra) e cuja referência serve de aviso: “madame, ne touchez paz la hache”, diz o Marquês. Não se brinca com machados, é a moral da história. Depois do aviso do Marquês, a história muda, e é a vez dele fazê-la sentir o frio da lâmina sobre o pescoço. Ele desaparece, e deixa-a consumir-se. Quando o filme começa (antes do flash-back que nos contará o que aconteceu) o Marquês acredita ainda poder ir a tempo de acabar com a brincadeira, e arrancar a Duquesa à sua clausura no convento das Carmelitas em Maiorca.

Opor o “teatro social” ao fogo que as personagens trazem dentro de si, eis uma explicação possível do que faz mover e decidir a “mise en scène” de Rivette. Num filme que praticamente não tem grandes planos, o “décor” é sempre uma moldura que enjaula as personagens, a grelha (com uma expressão “física”, mas enformada pelo “social”) que as detém e que ao mesmo tempo em que justifica os seus comportamentos, os seus movimentos de aproximação e afastamento, os torna absurdos, quase sacrificiais (e é em sacrifício, obstinação ética, amor provado “a contrario” pela renúncia, que a “coquetterie” da Duquesa se converte nas cenas maiorquinas do princípio e, paroxisticamente, do fim). Fabulosos, e pura libertação de energia, os momentos em que toda esta tensão rebenta – não há palavras para a “violação simbólica” da cena em que, abrindo portas atrás de portas num estardalhaço para que muito contribui a perna (a prótese) que Depardieu arrasta, o Marquês invade os aposentos da duquesa. Mas decisivo é ainda, e diríamos que uma recorrência no Rivette “histórico” (na Jeanne d'Arc encontramo-lo também), uma maneira de opor o lado mais artificial e “determinado” da narrativa (as convenções sociais, a reconstituição da época, o texto, a própria representação dos actores, etc) a um eco que é quase “naturalista” (um naturalismo “bricolé”, por assim dizer): donde a muito especial força das cenas em “décors” (e luz) naturais, o convento, os bosques e o mar (e o chilrear dos pássaros na banda de som), como são praticamente todas as cenas em Maiorca. E perante a espécie de “perfeição banal” que assim enquadra as personagens e as mergulha na luz “real” da vida de todos os dias, tudo se torna ainda mais impressionante, mais duro e mais comovente.

LMO
(escrito a propósito da edição portuguesa em DVD)

sexta-feira, 7 de março de 2014

O "CENTRO HISTÓRICO" E O MOMENTO HISTÓRICO


CENTRO HISTÓRICO
De Aki Kaurismaki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira
A Capital Europeia da Cultura, Guimarães 2012, desencadeou um plano de produção cinematográfica relativamente vasto, com dezenas de filmes, curtos e longos, encomendados a realizadores portugueses e estrangeiros. De entre toda esta produção – muita ainda por estrear – um filme como Centro Histórico faz figura de pequena (grande) jóia da coroa, quanto mais não seja pelo extraordinário rol de realizadores que congrega. Aki Kaurismaki, finlandês, Victor Erice, espanhol, Pedro Costa e Manoel de Oliveira, portugueses. Quatro realizadores fundamentais no panorama do cinema contemporâneo, quatro dos maiores cineastas em actividade. Na presença dos três primeiros – Oliveira, embora vontade não lhe faltasse, não teve autorização dos médicos para viajar – Centro Histórico teve estreia mundial na sexta-feira passada, incluido no programa da noite de abertura do Festival de Cinema de Roma. Belíssimo filme, Centro Histórico é uma vitória de Guimarães.
A liberdade concedida aos realizadores implicava apenas uma premissa, que de resto nem todos  levaram à letra: os filmes tinham que se passar, ao menos parcialmente, no cenário do centro histórico da “cidade-berço”. Oliveira – já lá iremos – foi quem levou a regra mais literalmente, incluindo D. Afonso Henriques e tudo; Costa quem mais se afastou dela, mas depois de – como explicou aos jornalistas italianos – ter pedido autorização (concedida) para filmar perto das pessoas e dos lugares (Grande Lisboa e arredores) que tem consistentemente filmado ao longo da última década e meia. Em todo o caso, uma maior ou menor fidelidade à premissa não tolheu ninguém: os quatro episódios trazem estampada, desde o primeiro plano de cada um deles, a personalidade artística dos seus autores. O que não faz de Centro Histórico apenas uma colecção de quatro filmes sem relação profunda entre eles. Pelo contrário, os filmes encontram-se algures, se não num lugar, num tempo, se não num “centro histórico”, num “momento histórico” – este momento, o de agora, em Portugal e na Europa, onde claramente há um mundo a cair sobre outro e a substitui-lo. Todos os filmes são atravessados por isto, na relação que têm com a História e com o presente, e todos eles, com mais dramatismo ou mais irrisão, são filmes feridos por isto. Um jornalista italiano perguntou aos realizadores se Centro Histórico era, “como o cinema europeu”, uma “polifonia”; e Kaurismaki (“em todas as famílias deve haver um ‘clown’ e nesta ocasião sou eu”), muito pedagogicamente, respondeu que “o cinema europeu não é uma polifonia, o cinema europeu é uma catástrofe”. Toda a gente subentendeu, abusivamente ou não, que Kaurismaki estava a dizer que a Europa é uma catástrofe. Em derradeira análise, esta catástrofe é o centro da história de Centro Histórico.
Que começa por Kaurismaki, justamente. O Tasqueiro, fábula sobre os desvalidos e o seu melancólico estoicismo que conjuga em Guimarães os termos (e os temas) habituais do cinema do finlandês. Há um homem (Ilkka Koivula, “importado” de outros filmes de Kaurismaki) que tem uma tasca no centro histórico de Guimarães mas não vai lá ninguém – ninguém com dinheiro, pelo menos. Os clientes preferem coisas mais à moda, como a ementa do restaurante ao lado. O nosso homem tenta adaptar-se aos novos tempos – até copiando o menu da concorrência – e depois desiste (só Kaurismaki, de facto, para rimar “desistência” com “resistência”). É só isto, contado sem diálogos, trocados por olhares e “raccords” de olhares (e por fados e uma canção “pimba” em vez do rock e dos tangos habituais), com a enervante “cultura gourmet” que agora está por todo o lado transformada em símbolo de “modernidade” ou, o que kaurismakianamente vai dar ao mesmo, em símbolo do Mal. Kaurismaki diz que sabe do que fala, porque “é filho dum operário” e porque “vive em Portugal há 23 anos”. Claro que sabe.
A seguir entra Costa, e entra numa espécie de “expressionismo” (ele ri-se quando lhe falamos disto: “adoro quando vocês vêm com essas coisas”). O episódio dele chama-se Sweet Exorcist como um disco de Curtis Mayfield, mas também se podia chamar qualquer coisa como, por exemplo, “Ventura tem um Pesadelo”. Porque Ventura, imponente como sempre, tem mesmo um pesadelo, encerrado dentro dum elevador com um homem-estátua que é como o cadáver desenterrado (aqui, o zombie “doesn’t walk”) de um soldado português vindo de Àfrica ou de Abril de 74. Ventura treme, ventura sua, Ventura ouve vozes e conversa com fantasmas – fantasmas dele, fantasmas nossos, fantasmas de agora e fantasmas de 74, fantasmas de um ror de esperanças não cumpridas. É como um exorcismo, de facto, um transe delirante e dolorido, um grande pingue-pongue (o diálogo, sempre em crioulo, a sua estrutura, a relação com a “bruitage”: tudo magnífico) onde os lamentos são devolvidos em acusações e as recriminações em sussurros, numa potência emocional impressionante, fisicamente até quase esgotante. Depois a tempestade passa, e parece que tudo fica calmo. Em todo o caso, é muito a forte a sensação de que Costa abriu aqui uma porta que ainda não tinha aberto (e por onde, mais que provavelmente, no futuro entrará).
E é a vez de Victor Erice, com um “falso documentário” ou uma “falsa ficção” (como ele diz, citando Oliveira, “o cinema é o fantasma da realidade”) sobre os operários de uma fábrica de vidro (Vidros Partidos, chama-se o filme) encerrada em 2002. E sobre uma fotografia, uma grande fotografia, tirada algures durante as primeiras décadas do século XX (a fábrica inaugurou no século XIX), que mostra os operários na messe durante uma refeição (ou no fim dela: como alguém diz no filme, “têm que voltar ao trabalho, é por isso que têm um ar tão triste”) , e que perto do fim a câmara percorrerá demorada e detalhadamente. Vidros Partidos estrutura-se numa série de “depoimentos” – encenados para a câmara, convertidos em “texto” dito de memória pelos actores ou não-actores como em monólogos biográficos – que evocam a relação de um conjunto de trabalhadores com aquela fábrica, mas sempre subtilmente a alargar o contexto, para uma reflexão (de um poder emocional inesperado: é de caras o mais comovente dos quatro filmes) sobre o modo de vida operário, suas conquistas e derrotas, suas forças e fraquezas, também à luz do insidioso panorama contemporâneo (a China, a mão de obra que é barata porque a alternativa é a morte à fome, o encolhimento dos direitos laborais, etc.). Belíssimo.
E finalmente, para “salvar o dia” (como alguém dizia), chega Oliveira, pleno de humor sarcástico, para fechar o filme com um esgar de D. Afonso Henriques. Chama-se O Conquistador Conquistado e é em primeiro lugar sobre a “turistificação” da História e dos seus símbolos – quem “conquista” o “conquistador” é a bateria de máquinas fotográficas que os turistas fazem indiferentemente disparar sobre a estátua de D. Afonso Henriques à menção de que se trata do “primeiro rei de Portugal”. E depois é sobre o contracampo disto: o olhar da estátua de D. Afonso Henriques sobre esta patetice toda. Esse grande plano, em contra-picado, do rosto da estátua, que fecha o filme, é talvez o mais bizarro contracampo da obra de Oliveira – mas também é, de certeza, uma interpelação tão mais perturbante quanto mais derrisória. O que é vocês andam a fazer com esta espada?, parece perguntar o velho Afonso. E assim se instala, sobre o Centro Histórico, o mais gelado dos risos.
LMO