terça-feira, 11 de março de 2014

Os perigos da sedução


NE TOUCHEZ PAS LA HACHE
de Jacques Rivette

Tivesse este filme chegado a estrear em sala e seriam as únicas 5 estrelas (pelo menos as únicas 5 estrelas “de caras”) que teríamos dado em todo o ano. Ne Touchez Pas la Hache é uma maravilha, uma obra-prima, o melhor Jacques Rivette em muitos anos, eventualmente desde o seu díptico sobre Joana d’Arc, Jeanne la Pucelle (1994). É uma adaptação de uma novela de Balzac, A Duquesa de Langeais, que ao que parece o escritor francês publicou originalmente com o título, Ne Touchez Pas la Hache, escolhido por Rivette para o seu filme. Convém dizer que nada disto é muito óbvio ou muito evidente tratando-se de Rivette, cineasta que tem pouquíssimos filmes “de época” (Ne Touchez Pas la Hache passa-se no princípio do século XIX) e muito poucas adaptações literárias canónicas (sendo certo que Balzac, quando se trata de “adaptar”, é o seu escritor de eleição: já estivera na base, mais ou menos remota, de Out 1 e da Belle Noiseuse). É uma história de “amor frustrado”, e se com esta expressão evocamos uma célebre tetralogia de Manoel de Oliveira há boas razões para isso, num filme que permite pensar (muito) no Amor de Perdição, e de algum modo também na Belle Toujours, cujos protagonistas, Michel Piccoli e Bulle Ogier, reencontramos, em singular coincidência, entre a galeria de secundários no filme de Rivette.

Mas aqui os protagonistas, fenomenais, são Jeanne Balibar e o recém-desaparecido Guillaume Depardieu, filho “rebelde” de Gérard. Balibar não será uma supresa para ninguém, é uma das mais conhecidas actrizes francesas da sua geração, e para mais é uma “rivettiana” reincidente (tínhamo-la visto em Va Savoir). Mas Depardieu, homem de carreira irregular e vivência acidentada, é uma revelação: o seu Marquês de Montriveau é verdadeiramente o papel de uma vida, frágil e poderoso, selvagem e codificado. Há pouco, num depoimento a seguir à morte de Guillaume, Balibar contou que foi Rivette quem lhe pediu para escolher o actor com que quisesse fazer contracenar a sua Duquesa Antoinette de Langeais, e que então se lembrou de ir buscar à sua pouco estável (e um tanto dissoluta, mesmo “suicidária”) existência o jovem Depardieu. Também contou que foi Guillaume que trouxe uma ideia decisiva: sempre que estavam os dois em campo, a Duquesa devia “sentir medo” do Marquês. O medo, o perigo, a ameaça, velhos condimentos rivettianos que aqui, ao contrário do que acontecia em Va Savoir (“onde está o perigo cresce também aquilo que salva”, dizia-se nesse filme, em citação de Hölderlin), não salvam ninguém, e muito menos a Duquesa. Que brinca com a paixão – mais com a do Marquês por ela do que com a dela por ele – por entre justificações de ordem ética e religiosa e uma “coquetterie” um pouco fútil e egoísta (estamos, é bom de ver, submetidos aos códigos de conduta social dos salões da aristocracia parisiense de mil oitocentos e tal) até ao ponto em que ele se zanga. É quando o “machado” vem ao caso, o machado que é uma relíquia (decapitou Carlos I de Inglaterra) e cuja referência serve de aviso: “madame, ne touchez paz la hache”, diz o Marquês. Não se brinca com machados, é a moral da história. Depois do aviso do Marquês, a história muda, e é a vez dele fazê-la sentir o frio da lâmina sobre o pescoço. Ele desaparece, e deixa-a consumir-se. Quando o filme começa (antes do flash-back que nos contará o que aconteceu) o Marquês acredita ainda poder ir a tempo de acabar com a brincadeira, e arrancar a Duquesa à sua clausura no convento das Carmelitas em Maiorca.

Opor o “teatro social” ao fogo que as personagens trazem dentro de si, eis uma explicação possível do que faz mover e decidir a “mise en scène” de Rivette. Num filme que praticamente não tem grandes planos, o “décor” é sempre uma moldura que enjaula as personagens, a grelha (com uma expressão “física”, mas enformada pelo “social”) que as detém e que ao mesmo tempo em que justifica os seus comportamentos, os seus movimentos de aproximação e afastamento, os torna absurdos, quase sacrificiais (e é em sacrifício, obstinação ética, amor provado “a contrario” pela renúncia, que a “coquetterie” da Duquesa se converte nas cenas maiorquinas do princípio e, paroxisticamente, do fim). Fabulosos, e pura libertação de energia, os momentos em que toda esta tensão rebenta – não há palavras para a “violação simbólica” da cena em que, abrindo portas atrás de portas num estardalhaço para que muito contribui a perna (a prótese) que Depardieu arrasta, o Marquês invade os aposentos da duquesa. Mas decisivo é ainda, e diríamos que uma recorrência no Rivette “histórico” (na Jeanne d'Arc encontramo-lo também), uma maneira de opor o lado mais artificial e “determinado” da narrativa (as convenções sociais, a reconstituição da época, o texto, a própria representação dos actores, etc) a um eco que é quase “naturalista” (um naturalismo “bricolé”, por assim dizer): donde a muito especial força das cenas em “décors” (e luz) naturais, o convento, os bosques e o mar (e o chilrear dos pássaros na banda de som), como são praticamente todas as cenas em Maiorca. E perante a espécie de “perfeição banal” que assim enquadra as personagens e as mergulha na luz “real” da vida de todos os dias, tudo se torna ainda mais impressionante, mais duro e mais comovente.

LMO
(escrito a propósito da edição portuguesa em DVD)