sábado, 27 de janeiro de 2024

Kangwon-Do Ui Him ("O Poder da Província de Kangwon"), Hong Sang-Soo, 1998

 


A província de Kangwon (pelo meio da qual passa o paralelo que dividiu as Coreias) é uma região montanhosa mas simultaneamente costeira, oferecendo assim “montanha” e “praia” numa questão de centenas de metros. Qualidades que fizeram dela um pólo turístico importante para os coreanos, sobretudo para os habitantes da capital Seoul (que fica relativamente perto). Qual é o seu “poder” especial, então? Aparentemente nenhum, a julgar pelo destino das personagens do filme de Hong Sang-soo – o título do filme é bastante irónico, jogando com as expectativas de “evasão” das suas personagens, que procuram a província de Kangwon para mudarem de ares e tentarem remediar as suas dores de alma. Profundamente melancólico (às vezes, brutalmente melancólico), e atravessado por um manso desespero que “ensopa” as personagens sem que ninguém (nem elas nem o realizador) precise de o gritar, “O Poder da Província de Kangwon” é uma crónica da desolação sentimental, gizada numa espécie de urbanismo desenraizado (como alguém notou, podíamos perfeitamente estar em plena cidade, em Seoul por exemplo) que ao invés de se deixar invadir pela despreocupação “turística” de Kangwon a invade a ela. Os agentes dessa invasão são o par protagonista – que precisamos de tempo para apreender enquanto par, pois Hong Sang-soo oferece meio-filme a cada um deles. Começamos pela rapariga, que apanhamos no comboio em trânsito para Kangwon, mudamos a meio para o homem, que também vai nesse comboio, num processo que não é bem um “flash back” mas antes qualquer coisa parecida com uma “montagem paralela em sequência” – a rapariga e o homem andam ao mesmo tempo por Kangwon, mas não se cruzam, embora haja encontros (com sítios e pessoas) em comum. Ele foi professor dela, e tiveram uma relação. Acabou, e lembraram-se do mesmo para curar o coração partido. “O Poder da Província de Kangwon” mostra o paralelismo desse movimento (e da sua frustração), mas em vez de procurar rimas instantâneas e paralelismos imediatas opta por uma estrutura em que as rimas surgem desfasadas, e precisam de tempo para se revelarem.

Um pouco por isso, o filme funciona numa progressão entre o “anódino” e o que, não chegando a ser “dramático” (ou pelo menos “melodramático”), constitui um clímax no aumento da gravidade do tom – um esvaziamento absoluto, quase sem sentido, friamente exposto, que revela o par de personagens enquanto “figuras da frustração”. A história da rapariga com o polícia rima com o episódio do homem com a prostituta (que termina, aliás, numa desolada cena de sexo – “despacha-te que estou com pressa”). Hong Sang-soo, no que é uma das medidas mais evidentes do seu brilhantismo de cineasta, filma tudo da mesma maneira (planos fixos, enquadramentos “horizontais”), fazendo equivaler o que é “anódino” (um grupo de raparigas, na praia, a cantar e a discutir a letra de “My Darling Clementine” – Hong Sang-soo é alguém que conhece a história do cinema) e o que não é (as cenas de sexo), como se todas as acções das personagens fossem gestos condenados à irrelevância, mera agitação, mero preencher do tempo, face à imponência da perda sentimental que as subjuga. “O Poder da Província de Kangwon” trabalha em dissipação e abandono, mesmo quando parece estar a trabalhar em “escalada” – as montanhas de Kangwon são uma imagem constante (e, no fim, narrativamente importante), mas é como se Hong Sang-soo filmasse para a contrariar, e a linha de força do seu filme fosse, afinal, desesperadamente horizontal.

Citámos algumas cenas, podíamos citar outras (quase sempre “planos-cena”, sem chegarem a ser “planos-sequência”). Quando o homem conta ao amigo o que fez e por onde andou numa viagem passada a Kangwon com a namorada, e o amigo comenta “nunca volto a sítios onde tenha estado com namoradas”. Ou a cena do restaurante onde, a pedido, a canção de Lou Reed passa em “loop” na instalação sonora. Os tempos de corte desses planos são um bom exemplo da secura da montagem de Hong, par perfeito para a neutralidade isenta de sublinhados da sua câmara: ainda o espectador não se apercebeu da carga emocional subjacente ao que se diz e faz em determinado plano, e o realizador já “cortou” e o levou para o plano seguinte. Hong Sang-soo é um notável cineasta.

LMO

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Ossos, Pedro Costa, 1997

 


Em Casa de Lava, o anterior filme de Pedro Costa, ouvia-se da boca de um cabo-verdiano em trânsito para Portugal uma frase aparentemente anódina mas que adquiria, de súbito, proporções quase trágicas: “Quero morrer em Sacavém”. A frase, dita com o tom de quem fala de um sonho, era arrepiante, mas era preciso estar cá, deste lado, para o perceber - e por sabermos que a única coisa que podíamos oferecer a quem sonhava assim era, bem pelo contrário, um pesadelo. Ossos, filme onde o Cabo Verde de Casa de Lava faz “raccord” com o miserável Bairro das Fontainhas, nos arrabaldes de Lisboa, é o filme desse pesadelo.

Pesadelo. A palavra é curta para descrever todo o alcance de Ossos, mas suficiente para o arrancar, desde já, ao fardo representado por toda a gama de “obrigações sociológicas” que alguns nele viram ou gostariam de ter visto. E importante, para evitar mal-entendidos, que isso se esclareça: Ossos não é um “documentário”, mas antes uma espécie de fábula, com não poucas alusões mitológicas variadas, sobre um mundo fechado mas sem centro, com tendência a expandir-se para lá das suas fronteiras, num movimento que dilui e consome tudo e todos à sua passagem. Como uma doença, de alma e de corpo, que avança insidiosamente até que percebemos que é tarde de mais e que ela nos rodeia. Em Ossos não há o conforto da distância nem é visível a linha que estabelece a separação entre “nós” e “eles”: quando vemos, através das mulheres a dias, a arrumação fria, higienizada e desalmada das “nossas” casas, percebemos, com um arrepio, que a tangente se dissolveu e que é tudo o mesmo. Muito mais do que uma estocada na má-consciência burguesa, Ossos é um filme que transforma o mundo numa parada de “zombies”, de “mortos em licença” - e o “bairro” é, aqui, todo o mundo. Como afirmou Pedro Costa em entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, “é como na Idade Média, tudo se torna numa espécie de território que não começa pelo centro mas pelo exterior, e começa a avançar por contágio. No filme, há qualquer coisa de muito doente que começa a invadir tudo (...); não há muita diferença entre os negros do bairro e os brancos da média burguesia: é a mesma coisa, os mesmos gostos, as mesmas ambições”. Ossos é o filme que obscurece o mundo para iluminar esta equivalência.

É por isso que, ao contrário de Casa de Lava, onde existia a personagem de Inês de Medeiros para nos guiar, em Ossos estamos, desde o primeiro plano, absolutamente sós e absolutamente dentro - ao contrário desse filme a identificação é aqui um acto forçado e incómodo. Uma vez “dentro” não se sai, transporta-se o bairro (e o “bairro” continua aqui a ser metáfora de muita coisa) no corpo. Vê-se isso muito bem naquele espantoso “travelling” onde Pedro Costa desafia todos os critérios formais que escolheu para o filme, e que mostra a caminhada de Nuno Vaz ao longo das intermináveis fachadas do bairro: como se toda a duração do plano mais não fizesse do que pôr em evidência que quanto mais se anda mais “dentro” se está. Não há fuga possível, o bairro estende-se como se fosse móvel e, o que é mais grave, como se operasse um poderoso efeito de sucção.

De resto, “sugada” é a personagem da enfermeira interpretada por Isabel Ruth: desde o princípio uma personagem associada à “doença”, acabará por ser totalmente conquistada por ela e para ela. Como se se tratasse de uma verdadeira dissolução, no último plano em que aparece já não lhe vemos o corpo, ouvimos-lhe apenas a voz; e numa confirmação da sua entrega, essa derradeira cena da personagem deixa em elipse a sua cedência ao “flirt” movido pelo marido de Clotilde.

Se há uma personagem que faz o movimento inverso é a do bebé, que anda de mãos em mãos até ao momento em que é oferecido à personagem de Inês de Medeiros. E possível resumir a narrativa de Ossos (ou pelo menos parte dela) a essa permanente circulação do bebé, entre aqueles que o querem matar (a própria mãe) e os que o querem salvar (o pai). Mas esse bebé é aqui sobretudo um símbolo, espécie de “semente do mal” (é por isso que a mãe o quer matar) cuja vida representa apenas a consumação ou a confirmação do avanço da “doença” - quando Inês de Medeiros, personagem estranha ao bairro, aceita ficar com a criança, percebemos que essa doença- conquistou mais algum terreno.

Olhar desesperado sobre a existência humana (ou já pós-humana: foi o próprio Pedro Costa quem falou das suas personagens e dos seus actores como “mutantes”), que transforma homens e mulheres em seres subterrâneos que por vezes fazem lembrar o “povo das trevas” mostrado pela Múmia do egípcio Shadi Abd As Salam, Ossos constrói para isso uma prodigiosa estrutura formal. Duas ou três coisas fundamentais passam exclusivamente, ou quase, por ela: a ausência de profundidade, como se o campo de visão estivesse permanentemente cortado e como se isso fosse uma maneira de fazer sentir a sombra da morte a pairar; a construção altamente elíptica, não só da narrativa mas também de toda a planificação, como se a comunicação entre acções e planos fosse algo de doloroso e regido por regras secretas e clandestinas; e finalmente, o som, um fantástico trabalho de som, verdadeiramente uma mise-en-scène à parte, que tanto cola à imagem como a abandona, que tanto a acaricia como a envolve para a engolir - o som, em Ossos, é a morte a trabalhar nos interstícios.

LMO

domingo, 31 de dezembro de 2023

King of New York, Abel Ferrara, 1990

 


I'm not your problem. I'm just a businessman”

A obra de Abel Ferrara não é só isso, claro, e até cada vez menos o é, sobretudo a partir desta última década em que se radicou em Roma, mas convém não esquecer que ser “um cineasta de Nova Iorque” é uma das facetas importantes do seu trabalho. E dizer “um cineasta de Nova Iorque” significa, sobretudo, dizer, “um cineasta da história de Nova Iorque”. Entre Driller Killer (1976), um filme feito no encalço simbólico de Taxi Driver, e 4.44 – Last Day on Earth (2011), que há cerca de dez anos representou uma despedida, deliberada e voluntária, àquela cidade (foi depois dele que Ferrara se transplantou para a Europa), os filmes de Ferrara foram contando, periodicamente, o que foi acontecendo a Nova Iorque.

Sendo certo que falar do que foi acontecendo a Nova Iorque não significa apenas falar de uma cidade, mas de toda a América e, fatalmente, de todo o mundo ou de uma vasta e ocidental parte dele. King of New York é hoje porventura um filme mais facilmente localizável no tempo do que era na altura em que estreou. 1990, final de uma década marcada pelas presidências de Ronald Reagan, pela sacralização das políticas economicamente liberais, pela entronização enquanto figura heróica dos tempos modernos do “yuppy”, do “empreendedor”, do “businessman”; e mais localmente, no que a Nova Iorque diz respeito, da passagem da cidade “marginal” dos anos 70, viveiro artístico onde era possível sobreviver sem muito dinheiro, ao “playground” para ricos, gentrificado, em que a cidade começava a transformar-se (numa transformação acelerada pela eleição de Giuliani como “mayor” apenas quatro depois da estreia de King of New York, em 1994).

Honni soit qui mal y pense, também o “gangster” protagonista do filme de Ferrara, esse estranhíssimo e complicadíssimo Frank White a que Christopher Walken dá corpo e evanescência, acredita que tornar-se “mayor” de Nova Iorque é o passo em frente natural para as suas actividades de “businessman” da sombra e do submundo. A diluição das fronteiras entre a “sombra” (das actividades mafiosas) e a “luz” (dos negócios legítimos) é, obviamente, e de várias maneiras, um dos temas que cruzam o filme de Ferrara, e nesse sentido ele fica surpreendentemente próximo de outro filme estreado em 1990, o Godfather Part III de Coppola, que também tinha muito a dizer sobre essa diluição. E neste ponto, e já agora, um segundo honni soit qui mal y pense para a pequena história de King of New York: num filme sobre os negócios chiaroscuro de Nova Iorque no final dos anos 80, pleno daqueles ambientes de opulência enjoativa (os hoteis de luxo, as festas cheias de pós sortidos), esse figurão entretanto tornado global e chamado Donald Trump não pode estar muito longe, pensamos nós enquanto vemos o filme; pois bem, não está mesmo, aquelas cenas no Hotel Plaza são mesmo filmadas no Hotel Plaza, na altura propriedade de Trump, que deixou a equipa de Ferrara instalar-se lá e filmar à vontade, sem cobrar um tostão, satisfeito com a publicidade gratuita e com a condição – ao que tudo indica, cumprida – de Christopher Walken aceitar posar para uma fotografia com a sua mulher de então, Ivana...

Mas voltemos – se é que saímos delas – à luz e à sombra. Na mais estranha das cenas de King of New York, quando Frank White vai visitar o mafioso asiático, vemos um trecho do Nosferatu de Murnau, e com isso Ferrara, que nunca foi propriamente um cineasta “cinéfilo” a semear citações e referências pelos seus filmes, diz tudo sobre a relação do seu protagonista com a luz e a sombra, que como o vampiro de Murnau se perderá igualmente na passagem de uma coisa à outra, da sombra para a luz (e, poderíamos dizer, também sobre a relação entre o “alto” e o “baixo”, entre as alturas dos últimos andares do Plaza onde White instala o seu quartel-general, e os subterrâneos, como os do metropolitano, por que tem um genuíno afecto – porque o metro é a “realidade”, face à “ficção” do luxo do Plaza? Simplificadamente, sim). Mas essa cena é importante ainda a outro nível. Tudo aquilo tem um ar razoavelmente incrível (um mafioso a projectar clássicos mudos no seu cinema particular), e propicia a única tirada realmente cómica de todo o filme (quando White se vai embora, o mafioso diz-lhe: “já te vais embora? Olha que a seguir vamos projectar o Frankenstein”). Ora, este mafioso que afinal é um cinéfilo, cuja verdadeira paixão está no cinema, cumpre a dissociação que também está no coração do filme – todos eles são apenas businessmen, como White verbaliza, com um sentido prático de missão que faz dos “negócios” uma mera utilidade. Exploram um sistema económico que se tornou favorável, mas isso é a profissão; o que eles são é outra coisa, cinéfilos como o asiático, beneméritos (White paga um hospital, mostrando bem como a lavagem de dinheiro e a lavagem da consciência são irmãs) como a personagem de Walken julga ser, ele que num monólogo frente a frente com o polícia de Victor Argo (os polícias, já agora, são os únicos para quem a dissociação é impossível, como se vê bem no longo discurso da personagem de David Caruso sobre os salários, sobre o facto de o lado do “bem” ser, nesta guerra interminável com o “mal”, o que nunca tem uma compensação financeira digna) explicita o sentido de justiça social, e até moral, que atribui ao seu trabalho (“nunca matei ninguém que não merecesse morrer”).

Vale a pena dizer que este nome, White, não é um acaso num filme que encena a multiplicidade étnica de Nova Iorque (os negros, os hispânicos, os asiáticos, os italianos) e que tem esse homem duplamente branco – na pele e no nome – no topo da pirâmide (cinco anos antes, no Year of the Dragon, Cimino também chamara White ao polícia racista que protagonizava o filme) – e que portanto também sobre estas questões o filme de Ferrara diz, ou faz ecoar, alguma coisa.

Mas, para terminar, atentemos naqueles que são os momentos mais belos (e mais prolongados, num filme que vive quase sempre de sacudidelas) de King of New York, a morte lenta de Frank White. Como noutras personagens de Ferrara – sobretudo as escritas por Nicholas St.John, mas não só elas: um caso evidente é o do Bad Lieutenant – esta maldade cria-lhes uma espécie de curto-circuito espiritual que só encontra redenção, redenção total, na relação com a morte. Como se uma entrega, crística, digamos, à morte, em paz e aceitação, fosse a esponja que absorvesse todos os seus pecados. A espécie de arrasto com que Ferrara filma a morte do seu protagonista tem a ver com isso; e mais uma vez a sensação com que o espectador fica é a de que ele não foi bem morto, ele, sobretudo, deixou-se morrer.

LMO

sábado, 5 de novembro de 2022

Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010

(Escrevi este texto para a revista online Lumière, em 2010, e nunca foi publicado em mais lado nenhum. Não fiquei muito contente com o texto, na altura, embora a uma releitura de doze anos depois ele me tenha parecido suficientemente aceitável para o recuperar e publicar aqui; do que gosto mais é das memórias adjacentes: de férias, na última vez que vi Manhattan, escrevi-o à mão na esplanada do Café Reggio em Greenwich Village. Por um par de horas fui um cliché do Woody Allen tornado realidade, e de todas as coisas que me falta ser ou fazer na vida, essa já não é uma delas).

CINEMA(S) DA HISTÓRIA

- de quoi parle-t-il?

- de cinéma

(diálogo de Nouvelle Vague, 1990)


1- Como sempre (desde, pelo menos, “Week-End”) a primeira dificuldade de se ser contemporâneo de um filme de Godard está em identificar de que ponto do tempo se nos dirige ele. A priori, podemos apenas intuir com certeza que se trata de um ponto mais próximo da catástrofe do que aquele em que, seus espectadores, nos encontramos ou julgamos encontrar. É inútil julgar realisticamente este velho pessimismo apocalíptico - porque ele não é senão, em primeira instância, a verdade da poesia de Godard, ou a poesia da sua verdade, vivida “dangereusement jusqu’au bout”. E, como tal, incontestável, tão incontestável como as cores dos girassóis de van Gogh, a quem ninguém ousaria dizer “mas não, meu caro Vincent, olhe que esse amarelo, francamente, não está muito correcto”.

Tornou-se comum critica-lo por estar “desligado do mundo” - afinal nem usa a internet, como dizia numa entrevista recente. Efectivamente, mas como virtude, não como motivo de critica. Para ver claramente é preciso encontrar a distância certa, o ponto de vista com a abrangência suficiente para que se vejam não só as coisas mas o espaço entre elas. Isto é velho, vinha no “Pierrot le Fou”. Mas aplicado ao espaço mediático, ou ao espaço entre as coisas mediáticas - ou seja: mais ou menos tudo o que existe - exige-se um verdadeiro retiro. Para ver com clareza os seus contornos e o seu núcleo, Godard retira-se da imensa nuvem que é, agora mais do que nunca, esse espaço mediático, com a sua sobrecarga de imagens, palavras e sentidos que alegremente (con)fundiu tudo: o político, o estético, o publicitário, o jornalístico, o televisivo, o cinematográfico. Etc, etc, etc. Para ver claramente é preciso ver para além (por cima, por baixo) desta nuvem, deste ecran baço e espesso que bloqueia a visão em vez de dar a ver. Em inglês, a palavra “screen” tanto serve para designar um ecran como uma cortina (como em “smoke screen”, por exemplo), tanto serve para aquilo que mostra como para aquilo que esconde. Pensa-se nisto durante a primeira parte de “Film Socialisme”, a bordo do paquete, onde abundam os ecrans - os monitores de computador, de telemóvel, de máquinas de casino - e as cortinas, como a janela de vidro contra a qual uma rapariga repetidamente embate. A sugestão é que, efectivamente, tudo se tornou o mesmo: os ecrans são como cortinas que bloqueiam a circulação, simultaneamente definindo um “out”e um “in”. Pensar a nuvem mediática é impossível sem pensar o mundo e a organização do mundo que ela propõe, reflecte ou, no mínimo, beneficia. Isto preocupa Godard há anos, e “Film Socialisme” participa inteiramente nessa preocupação.

Godard desliga-se do mundo, portanto, para o poder (re)ligar. Montage mon beau souci. Comparar o que não foi feito para ser comparado - como se ouve em “Film Socialisme”, num dos vários ecos de coisas que Godard já disse ou fez dizer nos seus filmes. Montar é inventar uma nova maneira de ligar dois termos, sejam eles de que natureza forem (Godard aprendeu-o, possivelmente, com os programas de Langlois na Cinemateca). E por isso, através da montagem, mais do que um discurso sobre o mundo, ergue-se uma intervenção sobre ele, como que uma reconstrução (é o lado demiúrgico de Godard). Um combate? Sim, um combate: pode o cinema ainda ousar - e conseguir - religar o mundo de acordo com os nossos desejos?


2- Entra-se em “Film Socialisme” pela água. Esplendorosas imagens de mar e de (velhas) vagas. A água, claro, é um elemento fundador, aquele de onde veio (de onde vem) a vida. Mas esta água não é uma abstracção mítica, é a água do Mediterrâneo, mar fundador, mar de cujas margens brotou a “civilização ocidental” e, mais tarde, a ideia de “Europa”. Pela circulação (de ideias e de artefactos culturais, entre outras coisas) que permitiu, pela “polenização” que suscitou, o Mediterrâneo foi a “primeira Internet” do mundo. Não é seguro que Godard não queira que pensemos exactamente nisto, uma vez que a circulação - a comunicação - como já vimos a propósito dos ecrans, é um tema importante em “Film Socialisme”. O espaço aquático do Mediterrâneo e o espaço mediático da modernidade conjugam a velha preocupação godardiana: se não se produz um efeito (recíproco) entre as partes, se não existir uma verdadeira afectação, existe realmente “comunicação” ou tudo não passa de mero empastelamento, uma simples ocupação do espaço para confirmar que - tecnicamente - o processo funciona? A maneira singularmente desafectada com que os passageiros do cruzeiro vivem a viagem - mais concentrados nos ecrans, ou nos “gadgets” do casino, do que no mar ou nas cidades - é um dos elementos mais desolados de “Film Socialisme”: um retrato do empastelamento indiferenciado, que se por si justifica o inesperado modo - digamos, documental - com que Godard filma o interior do barco - uma “natureza morta”? - também explica porque é que, havendo embora “personagens”e figuras definidas (do criminoso de guerra a Patti Smith), são aqueles rostos e corpos anónimos, movendo-se numa “Metropolis” de lazer, os que persistem, no espírito do espectador, como uma verdade fundamental de “Film Socialisme”. E no entanto, tudo isto se move: a vastidão “imutável” do mar é também a medida do movimento, pelas imagens da espuma criada pelo avanço do barco. “E la nave va”: este navio talvez esteja para a Europa do princípio do seculo XXI como o de Fellini estava para a Europa do princípio do seculo XX. Esperamos, então, que a tragédia (essa irmã ateniense da democracia) aconteça. Mas nada, nem mesmo (seria difícil, no Mediterrâneo) um iceberg como o do Titanic. Eis o mais inesperado: por uma vez, Godard detém-se antes da catástrofe. Talvez seja ainda mais assustador assim.

Dessa metáfora (?) da Europa contemporânea passamos (em todo o segmento intermédio) a algo de aparentemente muito mais “local” - tão “local”como a estação de televisão regional (regio=reggio? ah, como Godard refina o calembour...) que é uma das suas protagonistas. Mas, na verdade, todo o segmento, que é estilisticamente o mais classicamente godardiano (a composição, a montagem, o bricabraque dos diálogos e do som, a presença dos actores no plano, a ocupação do campo e do fora de campo - tudo vem do Godard de 80, post-”Sauve qui Peut”), reverbera de ecos e implicações muito para além-fronteiras. Historia de um “petit commerce” ameaçado de extinção, não é evidentemente fortuito que esse “commerce” se baseie em automóveis e gasolina - pois assim se toca no problema económico  que mais decidiu a geopolítica das últimas decadas. A “nuvem mediática” e - nemesis godardiana - a televisão são presenças “naturais”, mas mais significativas são a jornalista africana (em diálogos que trazem à memória certas passagens de “Week-End”), memória viva de um passado colonial cujas consequências as grandes (e pequenas) potências europeias prefeririam ignorar, e (primeira referência explicita ao “socialismo”?) o garoto com a t-shirt vermelha e a inscrição CCCP - talvez apenas “un enfant que joue à la Russie”, talvez um sinal da domesticação e “folclorização” da História em prol do seu apagamento - como quando Lemmy Caution, em “Allemagne Neuf Zero”, se perdia numa Alemanha “aplanada” (quer dizer, sem Leste nem Oeste) pela queda do muro. Estas questões voltarão, iluminadas ou obscurecidas, no terceiro segmento (1+1+1: o hegelianismo, para não dizer marxismo, de Godard), mas é preciso referir ainda a mais bela expressão deste entroncamento entre o particular e o geral contida no segundo segmento: o encontro entre o lama (animal “exótico”, animal “que vem de fora”) e o burro bressoniano. Aquele lama é o Balthasar para a era da globalização (e “pas par hasard”).

Na primeira parte já se tinha ouvido, num dialogo alusivo aos fonemas de Jakobson, que o som é inextricável do sentido. Afirmação sobre o cinema, bem entendido, em especial sobre o cinema de Godard (mesmo quando o som é “ruído”, e portanto ausência de sentido, como magistral e electronicamente explora essa primeira parte de “Film Socialisme”). Mas isto quer dizer também que a aparência das coisas contém já alguma da essência das coisas. E que, portanto, nas imagens do mundo está já contido algum do sentido do mundo. No seu terceiro andamento, “Film Socialisme” desagua numa pura questão cinematográfica. É o Godard das “Histoire(s) du Cinema”, ou o Godard do(s) cinema(s) da História, mestre montador que se apropria das imagens e dos sons criados por outros para, num exercício de magia (branca? negra? luz ou obscuridade?), provar pela enésima vez que a força do cinema residiu na maneira como ele soube (pode) conter o sentido do mundo, fazer corpo com ele, serem - o cinema e o século XX - “une histoire seule”. Todos estes fragmentos são fantasmas que se levantam - como a jornalista africana ou o miúdo da t-shirt soviética - em nome da História, ruinas visíveis de alguma coisa que aconteceu “dans le noir du temps”. Não como “testemunho” da Historia, mas como sua produção, activa e interveniente, memória que se joga contra o esquecimento fabricado pelos ecrans a bordo do paquete. Por isso, “Film Socialisme” e não, por exemplo, “Film Liberalisme”: em causa está a implicação, não a desimplicação, o gesto individual (de um homem ou de um filme) e o seu compromisso com um destino colectivo. Eisenstein, Rossellini, Godard.

Film Socialisme” termina com uma legenda - “no comment” - sobre fundo negro. “Não-comentário”, mas também “não-imagem”. Não há imagem, logo também não há o que comentar. Ausência do cinema, escuridão tumular. Que caia a noite.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Il Conformista, Bernardo Bertolucci, 1970



Para além do mais, O Conformista é uma história sobre mim

e Godard (…) Eu sou Marcello e faço filmes fascistas

e quero matar Godard que é um revolucionário, que faz

filmes revolucionários e que foi meu professor”

(Bernardo Bertolucci, 1971)

 

A frase de Bertolucci que aqui deixámos em epígrafe pode parecer uma afirmação estranha ou até, mais do que isso, deslocada. Um olhar sobre o fascismo italiano construído a partir de um romance de Alberto Moravia – como pode O Conformista ser “uma história sobre mim e Godard”? O certo é que não é só uma “boca” de que Bertolucci se tenha lembrado a posteriori. Sibilinamente, como uma “private joke” que em 1970 se calhar só o próprio e os membros do seu círculo de relações pessoais poderiam compreender, há uma alusão a Godard no interior do filme. É quando explicam a Marcello a sua missão: entrar em contacto com um opositor do regime fascista, o Professor António Quadri, que foi professor de Marcello na universidade, conquistar a sua confiança e matá-lo na primeira oportunidade. Quadri vive exilado em Paris – e quer a morada quer o número de telefone da sua residência são, exactamente, a morada e o número de telefone do apartamento parisiense onde Godard vivia nessa época.

Evidentemente, a frase de Bertolucci começa com um “para além do mais”. Il Conformista é, conscientemente, um filme vivido em desejo de emancipação cinematográfica por parte de Bertolucci, operando a vários níveis uma ruptura com o que fora o seu cinema dos anos 60, o de La Strategia del Ragno ou de Partner. Se Bertolucci queria matar o seu “pai cinematográfico”, queria matá-lo “para além do mais”, ou “para além dos demais”. O trajecto de Marcello (fabuloso Jean-Louis Trintignant) tem qualquer coisa do de um anjo exterminador, aniquilando tudo à sua volta. Os pais, as mães, os amigos – e em última análise, a si próprio, quando na derradeira cena, na noite da demissão de Mussolini, nega tudo o que fora até então (um fascista, menos por convicção do que, naquilo que constitui a mais cruel observação de Il Conformista, por ser “normal” ser fascista na Itália de 30) e encontra a negação daquele que sempre pensara ser o momento decisivo da sua vida quando descobre que o motorista Lino (que Marcello pensava ter morto muitos anos antes, ainda adolescente), afinal está vivo. Tudo o que ele foi, tudo o que ele julgava ser, era afinal uma mentira. Discutiu-se muito o sentido dos planos finais de Il Conformista, Marcello, já depois da sua violenta catarse, sentado, silencioso, algures numa esconsa rua romana, acabando a fitar directamente a objectiva como se ao mesmo tempo a desafiasse e a interrogasse (de maneira, aliás, um pouco reminiscente do plano final de Jean Seberg no… À Bout de Souffle de Godard). No livro de Morávia a história continuava mais um pouco, Bertolucci preferiu cortar ali. Menos um fecho do que uma suspensão, como se apesar de tudo houvesse uma hipótese ainda para Marcello e toda aquela indefinição final correspondesse a um conta-quilómetros de novo no zero, fim de um caminho mas também possibilidade de recomeça. Se Bertolucci diz “Marcello sou eu” talvez seja nesse momento de vazio potencialmente libertador que a identificação faça mais sentido.

Fora estes aspectos relacionados com um discurso pessoal de Bertolucci, a outra coisa que sobressai em Il Conformista é a sua pintura de um mundo devastado. O sonho de Mussolini era ressuscitar o Império Romano, e dir-se-ia que Bertolucci sinaliza a decadência representada pelo mundo fascista (mesmo na sua pujança) a partir de alusões figurativas ao mundo romano. Se a arquitectura, nas sequências em Roma, joga naturalmente um papel, a família de Marcello, em sinal da sua absoluta falência, surge envolta numa imagem que remete para a Roma antiga. A mãe, pintada como se viesse do Satyricon de Fellini, filmada numa cama cheia de cães de estimação num quarto atravancado; o pai, louco, internado num asilo que se parece estranhamente com um anfiteatro romano e a que Bertolucci, nos planos mais artificialistas de todo o filme, atribui uma aura teatralizada.

E claro, Trintignant. Talvez nunca ninguém o tenha dito assim, mas não é um exagero: é o maior actor do cinema europeu dos últimos cinquenta anos. O melhor plano de Il Conformista é-o por causa dele: a sua expressão, o vazio do seu olhar, quando dentro do carro permanece totalmente indiferente aos gritos da ensanguentada Dominique Sanda. É estreita e indefinível a linha que separa o homem frio do homem covarde, o homem cínico do homem impotente. E isso, que está por inteiro nesse plano, vindo de dentro dos olhos de Trintignant, talvez seja a moral da história de Il Conformista segundo Bertolucci.

 LMO

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Memoria, Apichatpong Weerasethakul, 2021

 


Sem querer estragar o prazer de ninguém, até porque não estou muito acompanhado nisto, o “Memoria” devia começar por saudar o espectador com uma legenda a dizer “welcome to the Apichatpong Academy”. Porque é exactamente isso, o filme da sua institucionalização, a sagração do esperanto weerasethakuliano, em diálogo fechado com o museu e as “art crowds”, e a ala mais dada ao tu cá tu lá ("ai o filme do Joe") da "cinefilia internacional". É mais outro cineasta a cair na frente de batalha, morto pela convicção de que só o cinema – seul le cinéma, dizia o outro – é coisa poucochinha, tem que ser “arte” e tem que ser “artista”, e sobretudo tem que se ver que é arte e que é artista, e tal não pode escapar nem ao mais bronco dos espectadores na sala, que no limite é a quem o filme, na sua lógica a+b+c, se dirige. Noblesse oblige, ninguém se institucionaliza sem baixar a fasquia. Só não acontece aos melhores.

Saudades do “Tropical Malady” ou do “Boonmee”, filmes irredutíveis a uma decomposição em partes, todo o contrário deste filme que funciona por acumulação de partes, planos mais ou menos brilhantes (contradição nenhuma existe em dizer que quase todos os planos de “Memoria” são “brilhantes”) em que a única expectativa é ver qual é o truque que lá está guardado, instalações ready-made, espécie de pão de forma daqueles que se compram já fatiados. Um avanço em staccato arbitrário, autómato, de efeito em efeito (aquelas patadas na banda sonora) até ao efeito final (a nave espacial, consumação de “Memoria” como um “Arrival” high brow, Denis Villeneuve de festival).

Naquele plano em que, finalmente, alguma coisa vive (ou alguém: a Balibar, com aquela cara de Charlot gozão a fazer tangentes desafiantes ao regard-caméra enquanto mastiga uma sandes e segura uma lata de cerveja), tem-se a breve esperança de que o filme se volte a interessar pela dimensão infalsificável de uma presença humana. Vã ilusão, no momento seguinte volta a plastificação do mundo. O final até faz, portanto, sentido: quando já não há mundo e só sobra plástico, a nave espacial descola. Provavelmente, para o próximo filme.

Apichatpong, Weerasethamoncul!


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

The Cat's Meow, Peter Bogdanovich, 2001

 


Há muito, muito tempo que não estreava em Portugal um filme de Peter Bogdanovich. A última vez que isso aconteceu foi com Texasville, que chegou a Portugal no princípio dos anos 90 e ficou como o mais belo filme que nessa década por cá se viu. Os filmes seguintes de Bogdanovich, Noises Off... e The Thing Called Love, não chegaram às salas portuguesas, ficaram-se pela edição videográfica. Depois, Bogdanovich passou o resto dos anos 90 sem filmar para cinema (limitou-se a uns quantos telefilmes), até que em 2001 surgiu o “come back” com este The Cat's Meow que agora, felizmente, se estreia.

Bogdanovich, que em finais da década de 60 e princípios da década de 70 foi uma espécie de “boy wonder” entre a geração dos “movie brats”, foi também aquele que, dessa geração, mais depressa ficou para trás. Em Hollywood Ending, o filme de Woody Allen que ainda está em cartaz, há logo ao princípio um “gag” cruel cuja “punchline” envolve Bogdanovich, realizador hoje em dia tão “queimado” quanto a personagem interpretada por Allen. Uma série de falhanços, uma ambição desmedida, e uma arrogância relativamente ostensiva (Bogdanovich era odiado por quase toda a gente da “nova Hollywood”, muito por causa das suas amizades “exclusivistas” com os velhos gigantes como Orson Welles e John Ford) – tudo junto funcionou como um “cocktail molotov” que pegou fogo à sua carreira. Foi uma pena, porque Peter Bogdanovich estava seguramente entre os mais talentosos realizadores da sua geração, além de que a sua cinefilia e profundo conhecimento do cinema clássico (era o mais cinéfilo e conhecedor deles todos) faziam com que o cinema de Bogdanovich funcionasse como o mais límpido traço de união entre a “velha” Hollywood e a “nova”, dos anos 70.

The Cat's Meow não é só o regresso de Bogdanovich ao cinema, é também o seu regresso, justamente, a uma temática cinéfila, ele que, até ao princípio dos anos 80, não deixou de filmar, evocar e refazer quer a memória da Hollywood clássica quer os seus géneros. Aqui, viaja até aos anos 20, para abordar um dos mais míticos e obscuros episódios daquela década – The Cat's Meow mergulha-nos em plena “Babilónia de Hollywood” esse ninho de intrigas e segredos de alcova que fizeram (e continuam a fazer, vem aí um terceiro tomo de “Hollywood Babylon”) as delícias de Kenneth Anger. O episódio em causa, sobre o qual rios de tinta especulativa correram nos últimos 70 e tal anos, é o do célebre fim de semana passado a bordo do barco de William Randolph Hearst, que culminou com a morte, em circunstâncias nunca cabalmente esclarecidas, do lendário Thomas H. Ince – o “rival” de David Wark Griffith na luta pelo título de mais decisivo realizador da Hollywood dos primórdios.

Pretexto para mera nostalgia cinéfila? Alguma haverá, sim, e não parece que haja nisso algum mal. Mas The Cat's Meow é acima de tudo uma “period piece” sobre os loucos anos 20 hollywoodianos, enformada por um sentido trágico que é a verdadeira razão de ser do filme: digamos que o que dissolve a nostalgia é o facto de Bogdanovich filmar menos um episódio revelador do fim de uma hipotética inocência primordial de Hollywood do que um conto terrivelmente amoral que nega a hipótese de Hollywood alguma vez ter tido esse tipo de inocência. O barco onde se desenrola o permanente carrossel que é aquele fim de semana tem óbvias propriedades metafóricas: tanto sintetiza “toda a Hollywood” como a retrata enquanto mundo à parte, regido por leis e motivações obscuras. A lei da selva, ou a lei do mais forte – William Randolph Hearst, ironicamente, é “promovido” por Bogdanovich à condição de maior “metteur en scène” da Hollywood clássica.

Todos são prisioneiros da lógica de Hollywood, que é um bocadinho a suspensão de todas as lógicas, ou, como conta uma personagem, todos são vítimas da “maldição de Hollywood”, que é como quem diz da mais completa transfiguração moral. Nesse sentido, curiosamente, o filme que The Cat's Meow mais parece evocar é o Fedora de Billy Wilder – a voz “off” da personagem de Joanna Lumley, no fim, torna quase explícita a associação daquele fim de semana e daquela gente à atmosfera letal de uma “skeleton dance”. É por isso também que, apesar da agilidade narrativa de Bogdanovich (que conta a intriga no ritmo e no estilo de uma “short story” de mistério), se vai progressivamente desprendendo uma espécie de “gravidade” que puxa sempre as personagens para baixo (veja-se o subtil tratamento dos espaços do navio), e que faz sempre preceder o mito da humanidade que lhe dá origem. Característica aliás, particularmente visível no tratamento da figura de Charles Chaplin (um magnífico e surpreendente Eddie Izzard), personagem pesada, obsessiva, quase doentia, em todo o caso bastante diferente do retrato que Richard Attenborough (e Robert Downey Jr.) dele propuseram em Chaplin. Tem que ser assim, o olhar de Bogdanovich tem que ser dessacralizador, o que ele filma é uma corrida desenfreada rumo ao vazio – porque, como explica uma personagem, se pararem de correr descobrem que já lá chegaram, ao vazio. E esse infernal “merry go round” é, no fundo, o grande tema de The Cat's Meow.

LMO