sexta-feira, 7 de março de 2014

O "CENTRO HISTÓRICO" E O MOMENTO HISTÓRICO


CENTRO HISTÓRICO
De Aki Kaurismaki, Pedro Costa, Victor Erice e Manoel de Oliveira
A Capital Europeia da Cultura, Guimarães 2012, desencadeou um plano de produção cinematográfica relativamente vasto, com dezenas de filmes, curtos e longos, encomendados a realizadores portugueses e estrangeiros. De entre toda esta produção – muita ainda por estrear – um filme como Centro Histórico faz figura de pequena (grande) jóia da coroa, quanto mais não seja pelo extraordinário rol de realizadores que congrega. Aki Kaurismaki, finlandês, Victor Erice, espanhol, Pedro Costa e Manoel de Oliveira, portugueses. Quatro realizadores fundamentais no panorama do cinema contemporâneo, quatro dos maiores cineastas em actividade. Na presença dos três primeiros – Oliveira, embora vontade não lhe faltasse, não teve autorização dos médicos para viajar – Centro Histórico teve estreia mundial na sexta-feira passada, incluido no programa da noite de abertura do Festival de Cinema de Roma. Belíssimo filme, Centro Histórico é uma vitória de Guimarães.
A liberdade concedida aos realizadores implicava apenas uma premissa, que de resto nem todos  levaram à letra: os filmes tinham que se passar, ao menos parcialmente, no cenário do centro histórico da “cidade-berço”. Oliveira – já lá iremos – foi quem levou a regra mais literalmente, incluindo D. Afonso Henriques e tudo; Costa quem mais se afastou dela, mas depois de – como explicou aos jornalistas italianos – ter pedido autorização (concedida) para filmar perto das pessoas e dos lugares (Grande Lisboa e arredores) que tem consistentemente filmado ao longo da última década e meia. Em todo o caso, uma maior ou menor fidelidade à premissa não tolheu ninguém: os quatro episódios trazem estampada, desde o primeiro plano de cada um deles, a personalidade artística dos seus autores. O que não faz de Centro Histórico apenas uma colecção de quatro filmes sem relação profunda entre eles. Pelo contrário, os filmes encontram-se algures, se não num lugar, num tempo, se não num “centro histórico”, num “momento histórico” – este momento, o de agora, em Portugal e na Europa, onde claramente há um mundo a cair sobre outro e a substitui-lo. Todos os filmes são atravessados por isto, na relação que têm com a História e com o presente, e todos eles, com mais dramatismo ou mais irrisão, são filmes feridos por isto. Um jornalista italiano perguntou aos realizadores se Centro Histórico era, “como o cinema europeu”, uma “polifonia”; e Kaurismaki (“em todas as famílias deve haver um ‘clown’ e nesta ocasião sou eu”), muito pedagogicamente, respondeu que “o cinema europeu não é uma polifonia, o cinema europeu é uma catástrofe”. Toda a gente subentendeu, abusivamente ou não, que Kaurismaki estava a dizer que a Europa é uma catástrofe. Em derradeira análise, esta catástrofe é o centro da história de Centro Histórico.
Que começa por Kaurismaki, justamente. O Tasqueiro, fábula sobre os desvalidos e o seu melancólico estoicismo que conjuga em Guimarães os termos (e os temas) habituais do cinema do finlandês. Há um homem (Ilkka Koivula, “importado” de outros filmes de Kaurismaki) que tem uma tasca no centro histórico de Guimarães mas não vai lá ninguém – ninguém com dinheiro, pelo menos. Os clientes preferem coisas mais à moda, como a ementa do restaurante ao lado. O nosso homem tenta adaptar-se aos novos tempos – até copiando o menu da concorrência – e depois desiste (só Kaurismaki, de facto, para rimar “desistência” com “resistência”). É só isto, contado sem diálogos, trocados por olhares e “raccords” de olhares (e por fados e uma canção “pimba” em vez do rock e dos tangos habituais), com a enervante “cultura gourmet” que agora está por todo o lado transformada em símbolo de “modernidade” ou, o que kaurismakianamente vai dar ao mesmo, em símbolo do Mal. Kaurismaki diz que sabe do que fala, porque “é filho dum operário” e porque “vive em Portugal há 23 anos”. Claro que sabe.
A seguir entra Costa, e entra numa espécie de “expressionismo” (ele ri-se quando lhe falamos disto: “adoro quando vocês vêm com essas coisas”). O episódio dele chama-se Sweet Exorcist como um disco de Curtis Mayfield, mas também se podia chamar qualquer coisa como, por exemplo, “Ventura tem um Pesadelo”. Porque Ventura, imponente como sempre, tem mesmo um pesadelo, encerrado dentro dum elevador com um homem-estátua que é como o cadáver desenterrado (aqui, o zombie “doesn’t walk”) de um soldado português vindo de Àfrica ou de Abril de 74. Ventura treme, ventura sua, Ventura ouve vozes e conversa com fantasmas – fantasmas dele, fantasmas nossos, fantasmas de agora e fantasmas de 74, fantasmas de um ror de esperanças não cumpridas. É como um exorcismo, de facto, um transe delirante e dolorido, um grande pingue-pongue (o diálogo, sempre em crioulo, a sua estrutura, a relação com a “bruitage”: tudo magnífico) onde os lamentos são devolvidos em acusações e as recriminações em sussurros, numa potência emocional impressionante, fisicamente até quase esgotante. Depois a tempestade passa, e parece que tudo fica calmo. Em todo o caso, é muito a forte a sensação de que Costa abriu aqui uma porta que ainda não tinha aberto (e por onde, mais que provavelmente, no futuro entrará).
E é a vez de Victor Erice, com um “falso documentário” ou uma “falsa ficção” (como ele diz, citando Oliveira, “o cinema é o fantasma da realidade”) sobre os operários de uma fábrica de vidro (Vidros Partidos, chama-se o filme) encerrada em 2002. E sobre uma fotografia, uma grande fotografia, tirada algures durante as primeiras décadas do século XX (a fábrica inaugurou no século XIX), que mostra os operários na messe durante uma refeição (ou no fim dela: como alguém diz no filme, “têm que voltar ao trabalho, é por isso que têm um ar tão triste”) , e que perto do fim a câmara percorrerá demorada e detalhadamente. Vidros Partidos estrutura-se numa série de “depoimentos” – encenados para a câmara, convertidos em “texto” dito de memória pelos actores ou não-actores como em monólogos biográficos – que evocam a relação de um conjunto de trabalhadores com aquela fábrica, mas sempre subtilmente a alargar o contexto, para uma reflexão (de um poder emocional inesperado: é de caras o mais comovente dos quatro filmes) sobre o modo de vida operário, suas conquistas e derrotas, suas forças e fraquezas, também à luz do insidioso panorama contemporâneo (a China, a mão de obra que é barata porque a alternativa é a morte à fome, o encolhimento dos direitos laborais, etc.). Belíssimo.
E finalmente, para “salvar o dia” (como alguém dizia), chega Oliveira, pleno de humor sarcástico, para fechar o filme com um esgar de D. Afonso Henriques. Chama-se O Conquistador Conquistado e é em primeiro lugar sobre a “turistificação” da História e dos seus símbolos – quem “conquista” o “conquistador” é a bateria de máquinas fotográficas que os turistas fazem indiferentemente disparar sobre a estátua de D. Afonso Henriques à menção de que se trata do “primeiro rei de Portugal”. E depois é sobre o contracampo disto: o olhar da estátua de D. Afonso Henriques sobre esta patetice toda. Esse grande plano, em contra-picado, do rosto da estátua, que fecha o filme, é talvez o mais bizarro contracampo da obra de Oliveira – mas também é, de certeza, uma interpelação tão mais perturbante quanto mais derrisória. O que é vocês andam a fazer com esta espada?, parece perguntar o velho Afonso. E assim se instala, sobre o Centro Histórico, o mais gelado dos risos.
LMO