sábado, 5 de novembro de 2022

Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010

(Escrevi este texto para a revista online Lumière, em 2010, e nunca foi publicado em mais lado nenhum. Não fiquei muito contente com o texto, na altura, embora a uma releitura de doze anos depois ele me tenha parecido suficientemente aceitável para o recuperar e publicar aqui; do que gosto mais é das memórias adjacentes: de férias, na última vez que vi Manhattan, escrevi-o à mão na esplanada do Café Reggio em Greenwich Village. Por um par de horas fui um cliché do Woody Allen tornado realidade, e de todas as coisas que me falta ser ou fazer na vida, essa já não é uma delas).

CINEMA(S) DA HISTÓRIA

- de quoi parle-t-il?

- de cinéma

(diálogo de Nouvelle Vague, 1990)


1- Como sempre (desde, pelo menos, “Week-End”) a primeira dificuldade de se ser contemporâneo de um filme de Godard está em identificar de que ponto do tempo se nos dirige ele. A priori, podemos apenas intuir com certeza que se trata de um ponto mais próximo da catástrofe do que aquele em que, seus espectadores, nos encontramos ou julgamos encontrar. É inútil julgar realisticamente este velho pessimismo apocalíptico - porque ele não é senão, em primeira instância, a verdade da poesia de Godard, ou a poesia da sua verdade, vivida “dangereusement jusqu’au bout”. E, como tal, incontestável, tão incontestável como as cores dos girassóis de van Gogh, a quem ninguém ousaria dizer “mas não, meu caro Vincent, olhe que esse amarelo, francamente, não está muito correcto”.

Tornou-se comum critica-lo por estar “desligado do mundo” - afinal nem usa a internet, como dizia numa entrevista recente. Efectivamente, mas como virtude, não como motivo de critica. Para ver claramente é preciso encontrar a distância certa, o ponto de vista com a abrangência suficiente para que se vejam não só as coisas mas o espaço entre elas. Isto é velho, vinha no “Pierrot le Fou”. Mas aplicado ao espaço mediático, ou ao espaço entre as coisas mediáticas - ou seja: mais ou menos tudo o que existe - exige-se um verdadeiro retiro. Para ver com clareza os seus contornos e o seu núcleo, Godard retira-se da imensa nuvem que é, agora mais do que nunca, esse espaço mediático, com a sua sobrecarga de imagens, palavras e sentidos que alegremente (con)fundiu tudo: o político, o estético, o publicitário, o jornalístico, o televisivo, o cinematográfico. Etc, etc, etc. Para ver claramente é preciso ver para além (por cima, por baixo) desta nuvem, deste ecran baço e espesso que bloqueia a visão em vez de dar a ver. Em inglês, a palavra “screen” tanto serve para designar um ecran como uma cortina (como em “smoke screen”, por exemplo), tanto serve para aquilo que mostra como para aquilo que esconde. Pensa-se nisto durante a primeira parte de “Film Socialisme”, a bordo do paquete, onde abundam os ecrans - os monitores de computador, de telemóvel, de máquinas de casino - e as cortinas, como a janela de vidro contra a qual uma rapariga repetidamente embate. A sugestão é que, efectivamente, tudo se tornou o mesmo: os ecrans são como cortinas que bloqueiam a circulação, simultaneamente definindo um “out”e um “in”. Pensar a nuvem mediática é impossível sem pensar o mundo e a organização do mundo que ela propõe, reflecte ou, no mínimo, beneficia. Isto preocupa Godard há anos, e “Film Socialisme” participa inteiramente nessa preocupação.

Godard desliga-se do mundo, portanto, para o poder (re)ligar. Montage mon beau souci. Comparar o que não foi feito para ser comparado - como se ouve em “Film Socialisme”, num dos vários ecos de coisas que Godard já disse ou fez dizer nos seus filmes. Montar é inventar uma nova maneira de ligar dois termos, sejam eles de que natureza forem (Godard aprendeu-o, possivelmente, com os programas de Langlois na Cinemateca). E por isso, através da montagem, mais do que um discurso sobre o mundo, ergue-se uma intervenção sobre ele, como que uma reconstrução (é o lado demiúrgico de Godard). Um combate? Sim, um combate: pode o cinema ainda ousar - e conseguir - religar o mundo de acordo com os nossos desejos?


2- Entra-se em “Film Socialisme” pela água. Esplendorosas imagens de mar e de (velhas) vagas. A água, claro, é um elemento fundador, aquele de onde veio (de onde vem) a vida. Mas esta água não é uma abstracção mítica, é a água do Mediterrâneo, mar fundador, mar de cujas margens brotou a “civilização ocidental” e, mais tarde, a ideia de “Europa”. Pela circulação (de ideias e de artefactos culturais, entre outras coisas) que permitiu, pela “polenização” que suscitou, o Mediterrâneo foi a “primeira Internet” do mundo. Não é seguro que Godard não queira que pensemos exactamente nisto, uma vez que a circulação - a comunicação - como já vimos a propósito dos ecrans, é um tema importante em “Film Socialisme”. O espaço aquático do Mediterrâneo e o espaço mediático da modernidade conjugam a velha preocupação godardiana: se não se produz um efeito (recíproco) entre as partes, se não existir uma verdadeira afectação, existe realmente “comunicação” ou tudo não passa de mero empastelamento, uma simples ocupação do espaço para confirmar que - tecnicamente - o processo funciona? A maneira singularmente desafectada com que os passageiros do cruzeiro vivem a viagem - mais concentrados nos ecrans, ou nos “gadgets” do casino, do que no mar ou nas cidades - é um dos elementos mais desolados de “Film Socialisme”: um retrato do empastelamento indiferenciado, que se por si justifica o inesperado modo - digamos, documental - com que Godard filma o interior do barco - uma “natureza morta”? - também explica porque é que, havendo embora “personagens”e figuras definidas (do criminoso de guerra a Patti Smith), são aqueles rostos e corpos anónimos, movendo-se numa “Metropolis” de lazer, os que persistem, no espírito do espectador, como uma verdade fundamental de “Film Socialisme”. E no entanto, tudo isto se move: a vastidão “imutável” do mar é também a medida do movimento, pelas imagens da espuma criada pelo avanço do barco. “E la nave va”: este navio talvez esteja para a Europa do princípio do seculo XXI como o de Fellini estava para a Europa do princípio do seculo XX. Esperamos, então, que a tragédia (essa irmã ateniense da democracia) aconteça. Mas nada, nem mesmo (seria difícil, no Mediterrâneo) um iceberg como o do Titanic. Eis o mais inesperado: por uma vez, Godard detém-se antes da catástrofe. Talvez seja ainda mais assustador assim.

Dessa metáfora (?) da Europa contemporânea passamos (em todo o segmento intermédio) a algo de aparentemente muito mais “local” - tão “local”como a estação de televisão regional (regio=reggio? ah, como Godard refina o calembour...) que é uma das suas protagonistas. Mas, na verdade, todo o segmento, que é estilisticamente o mais classicamente godardiano (a composição, a montagem, o bricabraque dos diálogos e do som, a presença dos actores no plano, a ocupação do campo e do fora de campo - tudo vem do Godard de 80, post-”Sauve qui Peut”), reverbera de ecos e implicações muito para além-fronteiras. Historia de um “petit commerce” ameaçado de extinção, não é evidentemente fortuito que esse “commerce” se baseie em automóveis e gasolina - pois assim se toca no problema económico  que mais decidiu a geopolítica das últimas decadas. A “nuvem mediática” e - nemesis godardiana - a televisão são presenças “naturais”, mas mais significativas são a jornalista africana (em diálogos que trazem à memória certas passagens de “Week-End”), memória viva de um passado colonial cujas consequências as grandes (e pequenas) potências europeias prefeririam ignorar, e (primeira referência explicita ao “socialismo”?) o garoto com a t-shirt vermelha e a inscrição CCCP - talvez apenas “un enfant que joue à la Russie”, talvez um sinal da domesticação e “folclorização” da História em prol do seu apagamento - como quando Lemmy Caution, em “Allemagne Neuf Zero”, se perdia numa Alemanha “aplanada” (quer dizer, sem Leste nem Oeste) pela queda do muro. Estas questões voltarão, iluminadas ou obscurecidas, no terceiro segmento (1+1+1: o hegelianismo, para não dizer marxismo, de Godard), mas é preciso referir ainda a mais bela expressão deste entroncamento entre o particular e o geral contida no segundo segmento: o encontro entre o lama (animal “exótico”, animal “que vem de fora”) e o burro bressoniano. Aquele lama é o Balthasar para a era da globalização (e “pas par hasard”).

Na primeira parte já se tinha ouvido, num dialogo alusivo aos fonemas de Jakobson, que o som é inextricável do sentido. Afirmação sobre o cinema, bem entendido, em especial sobre o cinema de Godard (mesmo quando o som é “ruído”, e portanto ausência de sentido, como magistral e electronicamente explora essa primeira parte de “Film Socialisme”). Mas isto quer dizer também que a aparência das coisas contém já alguma da essência das coisas. E que, portanto, nas imagens do mundo está já contido algum do sentido do mundo. No seu terceiro andamento, “Film Socialisme” desagua numa pura questão cinematográfica. É o Godard das “Histoire(s) du Cinema”, ou o Godard do(s) cinema(s) da História, mestre montador que se apropria das imagens e dos sons criados por outros para, num exercício de magia (branca? negra? luz ou obscuridade?), provar pela enésima vez que a força do cinema residiu na maneira como ele soube (pode) conter o sentido do mundo, fazer corpo com ele, serem - o cinema e o século XX - “une histoire seule”. Todos estes fragmentos são fantasmas que se levantam - como a jornalista africana ou o miúdo da t-shirt soviética - em nome da História, ruinas visíveis de alguma coisa que aconteceu “dans le noir du temps”. Não como “testemunho” da Historia, mas como sua produção, activa e interveniente, memória que se joga contra o esquecimento fabricado pelos ecrans a bordo do paquete. Por isso, “Film Socialisme” e não, por exemplo, “Film Liberalisme”: em causa está a implicação, não a desimplicação, o gesto individual (de um homem ou de um filme) e o seu compromisso com um destino colectivo. Eisenstein, Rossellini, Godard.

Film Socialisme” termina com uma legenda - “no comment” - sobre fundo negro. “Não-comentário”, mas também “não-imagem”. Não há imagem, logo também não há o que comentar. Ausência do cinema, escuridão tumular. Que caia a noite.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Il Conformista, Bernardo Bertolucci, 1970



Para além do mais, O Conformista é uma história sobre mim

e Godard (…) Eu sou Marcello e faço filmes fascistas

e quero matar Godard que é um revolucionário, que faz

filmes revolucionários e que foi meu professor”

(Bernardo Bertolucci, 1971)

 

A frase de Bertolucci que aqui deixámos em epígrafe pode parecer uma afirmação estranha ou até, mais do que isso, deslocada. Um olhar sobre o fascismo italiano construído a partir de um romance de Alberto Moravia – como pode O Conformista ser “uma história sobre mim e Godard”? O certo é que não é só uma “boca” de que Bertolucci se tenha lembrado a posteriori. Sibilinamente, como uma “private joke” que em 1970 se calhar só o próprio e os membros do seu círculo de relações pessoais poderiam compreender, há uma alusão a Godard no interior do filme. É quando explicam a Marcello a sua missão: entrar em contacto com um opositor do regime fascista, o Professor António Quadri, que foi professor de Marcello na universidade, conquistar a sua confiança e matá-lo na primeira oportunidade. Quadri vive exilado em Paris – e quer a morada quer o número de telefone da sua residência são, exactamente, a morada e o número de telefone do apartamento parisiense onde Godard vivia nessa época.

Evidentemente, a frase de Bertolucci começa com um “para além do mais”. Il Conformista é, conscientemente, um filme vivido em desejo de emancipação cinematográfica por parte de Bertolucci, operando a vários níveis uma ruptura com o que fora o seu cinema dos anos 60, o de La Strategia del Ragno ou de Partner. Se Bertolucci queria matar o seu “pai cinematográfico”, queria matá-lo “para além do mais”, ou “para além dos demais”. O trajecto de Marcello (fabuloso Jean-Louis Trintignant) tem qualquer coisa do de um anjo exterminador, aniquilando tudo à sua volta. Os pais, as mães, os amigos – e em última análise, a si próprio, quando na derradeira cena, na noite da demissão de Mussolini, nega tudo o que fora até então (um fascista, menos por convicção do que, naquilo que constitui a mais cruel observação de Il Conformista, por ser “normal” ser fascista na Itália de 30) e encontra a negação daquele que sempre pensara ser o momento decisivo da sua vida quando descobre que o motorista Lino (que Marcello pensava ter morto muitos anos antes, ainda adolescente), afinal está vivo. Tudo o que ele foi, tudo o que ele julgava ser, era afinal uma mentira. Discutiu-se muito o sentido dos planos finais de Il Conformista, Marcello, já depois da sua violenta catarse, sentado, silencioso, algures numa esconsa rua romana, acabando a fitar directamente a objectiva como se ao mesmo tempo a desafiasse e a interrogasse (de maneira, aliás, um pouco reminiscente do plano final de Jean Seberg no… À Bout de Souffle de Godard). No livro de Morávia a história continuava mais um pouco, Bertolucci preferiu cortar ali. Menos um fecho do que uma suspensão, como se apesar de tudo houvesse uma hipótese ainda para Marcello e toda aquela indefinição final correspondesse a um conta-quilómetros de novo no zero, fim de um caminho mas também possibilidade de recomeça. Se Bertolucci diz “Marcello sou eu” talvez seja nesse momento de vazio potencialmente libertador que a identificação faça mais sentido.

Fora estes aspectos relacionados com um discurso pessoal de Bertolucci, a outra coisa que sobressai em Il Conformista é a sua pintura de um mundo devastado. O sonho de Mussolini era ressuscitar o Império Romano, e dir-se-ia que Bertolucci sinaliza a decadência representada pelo mundo fascista (mesmo na sua pujança) a partir de alusões figurativas ao mundo romano. Se a arquitectura, nas sequências em Roma, joga naturalmente um papel, a família de Marcello, em sinal da sua absoluta falência, surge envolta numa imagem que remete para a Roma antiga. A mãe, pintada como se viesse do Satyricon de Fellini, filmada numa cama cheia de cães de estimação num quarto atravancado; o pai, louco, internado num asilo que se parece estranhamente com um anfiteatro romano e a que Bertolucci, nos planos mais artificialistas de todo o filme, atribui uma aura teatralizada.

E claro, Trintignant. Talvez nunca ninguém o tenha dito assim, mas não é um exagero: é o maior actor do cinema europeu dos últimos cinquenta anos. O melhor plano de Il Conformista é-o por causa dele: a sua expressão, o vazio do seu olhar, quando dentro do carro permanece totalmente indiferente aos gritos da ensanguentada Dominique Sanda. É estreita e indefinível a linha que separa o homem frio do homem covarde, o homem cínico do homem impotente. E isso, que está por inteiro nesse plano, vindo de dentro dos olhos de Trintignant, talvez seja a moral da história de Il Conformista segundo Bertolucci.

 LMO

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Memoria, Apichatpong Weerasethakul, 2021

 


Sem querer estragar o prazer de ninguém, até porque não estou muito acompanhado nisto, o “Memoria” devia começar por saudar o espectador com uma legenda a dizer “welcome to the Apichatpong Academy”. Porque é exactamente isso, o filme da sua institucionalização, a sagração do esperanto weerasethakuliano, em diálogo fechado com o museu e as “art crowds”, e a ala mais dada ao tu cá tu lá ("ai o filme do Joe") da "cinefilia internacional". É mais outro cineasta a cair na frente de batalha, morto pela convicção de que só o cinema – seul le cinéma, dizia o outro – é coisa poucochinha, tem que ser “arte” e tem que ser “artista”, e sobretudo tem que se ver que é arte e que é artista, e tal não pode escapar nem ao mais bronco dos espectadores na sala, que no limite é a quem o filme, na sua lógica a+b+c, se dirige. Noblesse oblige, ninguém se institucionaliza sem baixar a fasquia. Só não acontece aos melhores.

Saudades do “Tropical Malady” ou do “Boonmee”, filmes irredutíveis a uma decomposição em partes, todo o contrário deste filme que funciona por acumulação de partes, planos mais ou menos brilhantes (contradição nenhuma existe em dizer que quase todos os planos de “Memoria” são “brilhantes”) em que a única expectativa é ver qual é o truque que lá está guardado, instalações ready-made, espécie de pão de forma daqueles que se compram já fatiados. Um avanço em staccato arbitrário, autómato, de efeito em efeito (aquelas patadas na banda sonora) até ao efeito final (a nave espacial, consumação de “Memoria” como um “Arrival” high brow, Denis Villeneuve de festival).

Naquele plano em que, finalmente, alguma coisa vive (ou alguém: a Balibar, com aquela cara de Charlot gozão a fazer tangentes desafiantes ao regard-caméra enquanto mastiga uma sandes e segura uma lata de cerveja), tem-se a breve esperança de que o filme se volte a interessar pela dimensão infalsificável de uma presença humana. Vã ilusão, no momento seguinte volta a plastificação do mundo. O final até faz, portanto, sentido: quando já não há mundo e só sobra plástico, a nave espacial descola. Provavelmente, para o próximo filme.

Apichatpong, Weerasethamoncul!


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

The Cat's Meow, Peter Bogdanovich, 2001

 


Há muito, muito tempo que não estreava em Portugal um filme de Peter Bogdanovich. A última vez que isso aconteceu foi com Texasville, que chegou a Portugal no princípio dos anos 90 e ficou como o mais belo filme que nessa década por cá se viu. Os filmes seguintes de Bogdanovich, Noises Off... e The Thing Called Love, não chegaram às salas portuguesas, ficaram-se pela edição videográfica. Depois, Bogdanovich passou o resto dos anos 90 sem filmar para cinema (limitou-se a uns quantos telefilmes), até que em 2001 surgiu o “come back” com este The Cat's Meow que agora, felizmente, se estreia.

Bogdanovich, que em finais da década de 60 e princípios da década de 70 foi uma espécie de “boy wonder” entre a geração dos “movie brats”, foi também aquele que, dessa geração, mais depressa ficou para trás. Em Hollywood Ending, o filme de Woody Allen que ainda está em cartaz, há logo ao princípio um “gag” cruel cuja “punchline” envolve Bogdanovich, realizador hoje em dia tão “queimado” quanto a personagem interpretada por Allen. Uma série de falhanços, uma ambição desmedida, e uma arrogância relativamente ostensiva (Bogdanovich era odiado por quase toda a gente da “nova Hollywood”, muito por causa das suas amizades “exclusivistas” com os velhos gigantes como Orson Welles e John Ford) – tudo junto funcionou como um “cocktail molotov” que pegou fogo à sua carreira. Foi uma pena, porque Peter Bogdanovich estava seguramente entre os mais talentosos realizadores da sua geração, além de que a sua cinefilia e profundo conhecimento do cinema clássico (era o mais cinéfilo e conhecedor deles todos) faziam com que o cinema de Bogdanovich funcionasse como o mais límpido traço de união entre a “velha” Hollywood e a “nova”, dos anos 70.

The Cat's Meow não é só o regresso de Bogdanovich ao cinema, é também o seu regresso, justamente, a uma temática cinéfila, ele que, até ao princípio dos anos 80, não deixou de filmar, evocar e refazer quer a memória da Hollywood clássica quer os seus géneros. Aqui, viaja até aos anos 20, para abordar um dos mais míticos e obscuros episódios daquela década – The Cat's Meow mergulha-nos em plena “Babilónia de Hollywood” esse ninho de intrigas e segredos de alcova que fizeram (e continuam a fazer, vem aí um terceiro tomo de “Hollywood Babylon”) as delícias de Kenneth Anger. O episódio em causa, sobre o qual rios de tinta especulativa correram nos últimos 70 e tal anos, é o do célebre fim de semana passado a bordo do barco de William Randolph Hearst, que culminou com a morte, em circunstâncias nunca cabalmente esclarecidas, do lendário Thomas H. Ince – o “rival” de David Wark Griffith na luta pelo título de mais decisivo realizador da Hollywood dos primórdios.

Pretexto para mera nostalgia cinéfila? Alguma haverá, sim, e não parece que haja nisso algum mal. Mas The Cat's Meow é acima de tudo uma “period piece” sobre os loucos anos 20 hollywoodianos, enformada por um sentido trágico que é a verdadeira razão de ser do filme: digamos que o que dissolve a nostalgia é o facto de Bogdanovich filmar menos um episódio revelador do fim de uma hipotética inocência primordial de Hollywood do que um conto terrivelmente amoral que nega a hipótese de Hollywood alguma vez ter tido esse tipo de inocência. O barco onde se desenrola o permanente carrossel que é aquele fim de semana tem óbvias propriedades metafóricas: tanto sintetiza “toda a Hollywood” como a retrata enquanto mundo à parte, regido por leis e motivações obscuras. A lei da selva, ou a lei do mais forte – William Randolph Hearst, ironicamente, é “promovido” por Bogdanovich à condição de maior “metteur en scène” da Hollywood clássica.

Todos são prisioneiros da lógica de Hollywood, que é um bocadinho a suspensão de todas as lógicas, ou, como conta uma personagem, todos são vítimas da “maldição de Hollywood”, que é como quem diz da mais completa transfiguração moral. Nesse sentido, curiosamente, o filme que The Cat's Meow mais parece evocar é o Fedora de Billy Wilder – a voz “off” da personagem de Joanna Lumley, no fim, torna quase explícita a associação daquele fim de semana e daquela gente à atmosfera letal de uma “skeleton dance”. É por isso também que, apesar da agilidade narrativa de Bogdanovich (que conta a intriga no ritmo e no estilo de uma “short story” de mistério), se vai progressivamente desprendendo uma espécie de “gravidade” que puxa sempre as personagens para baixo (veja-se o subtil tratamento dos espaços do navio), e que faz sempre preceder o mito da humanidade que lhe dá origem. Característica aliás, particularmente visível no tratamento da figura de Charles Chaplin (um magnífico e surpreendente Eddie Izzard), personagem pesada, obsessiva, quase doentia, em todo o caso bastante diferente do retrato que Richard Attenborough (e Robert Downey Jr.) dele propuseram em Chaplin. Tem que ser assim, o olhar de Bogdanovich tem que ser dessacralizador, o que ele filma é uma corrida desenfreada rumo ao vazio – porque, como explica uma personagem, se pararem de correr descobrem que já lá chegaram, ao vazio. E esse infernal “merry go round” é, no fundo, o grande tema de The Cat's Meow.

LMO

Noises Off..., Peter Bogdanovich, 1992

 


Não temos os dados à mão para o afirmar taxativamente, mas é de crer que Texasville tenha sido um enorme “flop” (também) em Portugal. Depois dele – que em Portugal se estreou em 1991 – o único Bogdanovich visto em sala foi, já nos anos 2000, The Cat’s Meow*. Este hiato apressou a noção, entre nós, do “fim” de Bogdanovich, e da sua conversão em pau para toda a obra (televisiva), apenas pontualmente contrariada (no caso de The Cat’s Meow, justamente) pela oportunidade de rodar um filme minimamente pessoal. Essa desgraçada conversão não sucedeu, no entanto, logo a seguir a Texasville. E, bem pelo contrário, num ritmo que já não lhe era permitido desde os anos 70, Bogdanovich entrou em pleno vapor na década de 90: a Texasville sucederam-se Noises Off… (1992) e The Thing Called Love (1993). Depois, sim, terá sido, aparentemente, o “fim”. Mas em Portugal qualquer destes dois títulos seguiu directamente para o mercado vídeo sem passar pelas salas. Memória desses tempos – memórias de videoclube… - faz-nos lamentar especialmente a ausência neste ciclo de The Thing Called Love, de que guardamos óptima impressão (mas não se encontrou rasto de cópias disponíveis para circulação). Por outro lado, o confronto com a memória desses tempos torna mais agradável do que esperávamos o reencontro com Noises Off…. Não é que tenha “melhorado” (e foi um filme bastante atacado pela crítica americana do seu tempo), porque patenteia exactamente as mesmas virtudes e defeitos que eram visíveis em 1992. Mas talvez nos seja hoje mais fácil relevar as virtudes e esquecer os defeitos, e acima de tudo notar quão insólitas (ou quão solitárias: neste contexto as palavras tornam-se sinónimas) são algumas das suas características.

Noises Off… faz do teatro o seu centro. É uma adaptação de uma peça de Michael Frayn, uma farsa que já era, em si mesma, “meta-teatral”, e mostrava como o teatro se deixa atravessar pela vida; neste caso, pela vida de todos os envolvidos (encenador, actores, técnicos de bastidores), numa teia de relações pessoais conflituosas que se adensa a cada novo ensaio e a cada nova representação, progressivamente sabotando e desfigurando o curso inicialmente pensado. Não é claro o que é que a este mecanismo – um “desconstrutivismo lúdico”, por assim dizer – Bogdanovich acrescentou para além da sua própria descrição, que de resto parece impecável, a tal ponto que se pode dizer (no desconhecimento do texto original da peça de Frayn ou de alguma das suas representações) que o principal óbice do filme (uma certa sensação de inconsequência) é ele próprio “importado” da peça. Já parece mais claro é que, ao “teatro no teatro”, Bogdanovich se lembrou de acrescentar o cinema, e que o seu filme tenta intensificar o jogo de espelhos: não apenas “teatro no teatro” (ou “filme no filme”), mas sobretudo “filme no teatro” ou “teatro no filme”).

É por isso que, num filme ostensivamente “teatral”, a memória que mais ocorre não é a de teatro algum mas antes a da comédia cinematográfica americana clássica. É óbvio que Bogdanovich pensou sobretudo na “screwball comedy” (a velocidade vertiginosa a que tudo acontece, para além do tipo de quiproquós narrativos) e no burlesco (a comédia como uma questão de mecânica, de “timings”, de conflito permanente entre personagens, e entre personagens e décors e adereços). Pensou mesmo no “slapstick”, essa raiz primitiva de praticamente tudo o que entendemos por “comédia cinematográfica americana clássica”: ou não é aquele “segundo acto” de Noises Off… com a acção (mais uma representação da peça) vista do lado dos bastidores, onde toda a gente é forçada a manter silêncio, a última comédia muda americana, mais “silent movie” (e mais homenagem aos “silent movies”) do que o Silent Movie que Mel Brooks rodou nos anos 70? Bogdanovich não se limitou a fazer um filme sobre o teatro, mas aproveitou a peça de Frayn para conceber um exercício (até um pouco teórico) sobre o teatro como raiz de uma tradição cinematográfica.

Mesmo que seja fácil reconhecer-lhe uma certa frivolidade, o exercício é brilhantemente executado – a “coreografia” nunca falha, os tempos estão sempre certos, a “simulação do fracasso” é perfeita, e isto tudo vale por dizer que o domínio de Bogdanovich sobre a mise en scène (e sobre a “mise en scène da mise en scène”, e mesmo sobre a “mise en scène da ausência de mise en scène”, expressões que parecerão menos rebuscadas a quem tiver visto o filme) é total e absoluto. O que é que é levemente frustrante, então, quando a cortina desce pela última vez? Talvez o facto de esta lógica de decomposição, subjacente a todo o filme, não ser levada até ao seu corolário, e in extremis se volver em “recomposição”. Tudo está bem quando acaba bem. Mas e daí, o “happy end” é outra das mais antigas tradições hollywoodianas…

LMO

*o texto é de 2010. Mais de dez anos depois, estreou em Portugal She's Funny That Way.