quinta-feira, 13 de agosto de 2020

La Jalousie ("Ciúme"), Philippe Garrel, 2013


Em Garrel, como saberão os mais atentos, tudo se encadeia. Encadeia-se a vida pessoal e o cinema, quer porque ele vem daquela geração que não sabia distinguir uma coisa da outra quer porque, de forma mais explícita ou mais implícita, a autobiografia é um dos motores essenciais da sua obra. E encadeiam-se, consequentemente, os filmes uns nos noutros, deixando sempre a sensação de que perder um é perder o fio à meada. Se "Un Été Brulant" (curiosamente o único filme a cores de entre os últimos cinco do cineasta) era porventura o seu filme menos conseguido em muito tempo, tinha pelo menos uma ocasião determinante: era o momento em que Garrel, em cenas de uma gravidade brutal (as melhores do filme), se despedia do pai Maurice, presença intermitente nos seus filmes desde o início (a curta "Les Enfants Desacordées", de 1964, que Philippe realizou com apenas 16 anos).

Ora, se "Ciúme" não tem aparentemente, nada a ver com Maurice, tem imenso a ver com a paternidade. Garrel disse - mas isso, enfim, é matéria extra-filme - que "Ciúme" se baseava em episódios da vida do pai, no início da carreira dele, e de facto também estamos entre (jovens) actores neste filme. Mas pode-se não saber dessa inspiração e o tema da paternidade continua a saltar por todos os lados. É o protagonista - Louis Garrel, filho de Philippe e neto de Maurice - e a sua filha pequena; é a cena em que a filha diz que a pessoa que o pai mais ama é "son papa a lui", o pai dele; são os dois velhos do filme, dois "mentores" visitados pour Louis (a personagem tem o mesmo do actor) que dizem coisas que parecem significativas para o filme - que ele "compreende melhor as personagens de ficção do que as pessoas que o rodeiam", assim levantando o tema da confusão entre "vida" e "representação da vida"; e que "o que é bom na vida é que ninguém é obrigado a sofrê-la".

Frase, esta última, que muito evidentemente levanta a questão do suicídio, grande fantasma garreliano - fora de resto assim que o deixáramos, com o suicídio de Louis no final de "A Fronteira da Alvorada". Numa cena admiravalmente filmada - as mãos de Louis e o revólver, depois o tiro fora de campo - "Ciúme" não deixa de passar pelo suicídio, ainda que ("spoiler"...) enquanto tentação falhada. Espécie de anti-climax, se quisermos, que faz todo o sentido porque "Ciúme" é muito mais um filme sobre a continuação (da vida e das coisas da vida) do que sobre a sua interrupção, é um filme sobre gente que escolheu "sofrer a vida". E talvez até com um pouco mais do que apenas "sofrimento", a julgar pela estranha paz dos planos finais, ainda que eles pareçam, não menos estranhamente, assombrados (há sempre sombras em Garrel, são as sombras do "chiaroscuro" do cinema mudo, e é através delas que mesmo a "paz" ou a "felicidade", quando existem, existem sob ameaça).

Chegamos aqui e ainda nada dissemos que tenha remotamente a ver com "ciúmes". Vale que o filme, de certa forma, também não tem - "jalousie", em francês, também pode signficar "inveja", e talvez seja até o próprio Garrel, mais do que todos, quem inveje, quem inveje ciumentamente (o título português não deixa de soar justo) alguma coisas nas personagens. Quando a questão é verbalizada (Louis a perguntar à namorada, que é Anna Mouglalis, "se eu te traisse preferias que te contasse ou não te contasse?") a resposta é o mais "anti-ciumento" possível ("só quero que nos amemos e estejamos bem um com o outro"). Mas quem trai, ou enfim, quem trai a sério, é ela, até talvez por motivação mesquinha. A cena dessa traição é admirável na sua construção em elipse, como em elipse fica, no filme todo, o essencial da motivação psicológica das personagens, sobretudo da dela, uma "parede" que ama e se angustia, se zanga e maltrata, e a certa altura se vai embora sem apelo nem agravo. O filme tinha começado com uma separação, dada quase sem palavras - o choro da mãe da filha de Louis - e para uma separação se encaminha, enquanto retrato de uma relação tumultuosa, cheia de altos e baixos e enigmas que ficam por resolver. Talvez mais uma manifestação de outro fantasma garreliano, a sua relação com Nico nos anos 70, que ele incessantemente evoca deste então. Como evocava em "A Fronteira da Alvorada", na sua estrutura "bipartida", onde a uma primeira parte tumultuosa (cujo modelo era, à evidência, Nico) se seguia a entrada numa vida banalmente familiar (que o protagonista, de resto, não aguentava). Misturando as coisas, esses são ainda os termos de "Ciúme", que em narração alternada vai dando a violência - em todos os sentidos, bons e maus - da relação entre Louis e a namorada, e a placidez (os passeios, e sobretudo as cenas dos jantares a três) das reuniões temporárias em casa da mãe da filha. Imaginamos, talvez mal, "Ciúme" como uma continuação da "Fronteira", num mundo "alternativo" em que o protagonista tivesse resolvido "sofrer" a banalidade da vida. Imaginamos, talvez ainda mal, que "Ciúme" é o "A Mãe e a Puta" de Garrel, a sua aproximação ao "fantasma" do suicida Jean Eustache. Não precisamos de imaginar, porque a vemos, a desolada beleza de "Ciúme" (incluindo a desolada beleza do preto e branco de Willy Kurant), a complexidade, construida com pequenos nadas, das suas personagens, o irresolúvel mistério da sua tristeza: se "a felicidade não é alegre", a infelicidade também não. Talvez "Ciúme" só fale disto.

LMO

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta, José Mojica Marins, 1969-80



Quando, no final dos anos 60, rodou Ritual dos Sádicos (e lá iremos à questão do título alternativo), Mojica Marins já era uma pequena celebridade, assim como o seu alter-ego Zé do Caixão (que aqui ficou, como diz Mojica, “no cemitério”, embora haja sinais dele por todo o lado, na banda desenhada, na rua, como se o rasto dele fosse inescapável). Mas com este filme atingiria o clímax da sua fama de “maldito”. Ritual dos Sádicos foi de mais para a censura, que não só o proibiu como quis destruir todos os materiais existentes, entre cópias e negativos. O filme escapou in extremis à aniquilação, mas ficou invisível durante anos – e só nos anos 80, já rebaptizado (por Mojica) como O Despertar da Besta, se assistiu à sua recuperação, para uma carreira em circuitos alternativos (festivais & etc) que nunca teve paragem na distribuição comercial “normal”.

É um filme que tem tanto a afastá-lo de outros Mojicas mais explícitos na inscrição num "género" (por exemplo, À Meia-Noite Levarei sua Alma) como a aproximá-lo. Aqui, Mojica ensaia um modelo de “falso documentário”, a pretexto de um pretenso inquérito sociológico (o consumo de drogas nas grandes metrópoles brasileiras e suas consequências, num quadro que aos olhos de Mojica é sempre ambiguamente paranóico e conspirativo). A sua própria figura, como dissemos, era já largamente reconhecível, e o filme joga com isso, na maneira como Mojica / Zé do Caixão aparecem e desaparecem constantemente, sem nunca realmente aparecerem ou desaparecerem. Diga-se, aliás, que umas das mais bizarras sequências com Mojica é totalmente factual, embora pareça oriunda da mais delirante ficção: falamos daquele trecho em que o filme inclui imagens de um programa de televisão onde Mojica está a ser “julgado” pelo que se anuncia como “o tribunal popular da verdade” (é absolvido, por seis votos contra um). Isto passou-se realmente, aquele programa (e aquele “julgamento”) existiram mesmo…

Duma maneira que não é totalmente diversa do que, na América, um “independente” como Russ Meyer praticava, Ritual / Despertar é um filme onde o “exploitation” e a crítica do “exploitation” coexistem numa ambiguidade sem fim. Caricatura da sociedade de consumo, da comercialização das relações entre pessoas (entre homens e mulheres, sobretudo), de um ambiente politica e moralmente opressivo, das próprias lógicas do espectáculo (nomeadamente no que toca à representação das mulheres e das figuras femininas), essa caricatura confunde-se, de facto, com a exploração dos seus limites – que é, de resto, o que provoca maior desconcerto. Tanto mais que, se entendermos este filme como uma “crítica da modernidade” (a liberalização dos costumes, as influências culturais estrangeiras, o consumo de estupefacientes) a ambiguidade do olhar de Mojica é, de facto, infinita. Pelo Brasil “antigo”, rural e fechado, não tinha, em filmes precedentes, deixado de mostrar uma enorme severidade. Sobre este Brasil “moderno”, urbano e libertário, o seu olhar anda algures entre o fascínio e o temor. Há sempre uma impressão de medo a pairar pelo filme (talvez reflexo do clima político), mas é um medo que amiúde, e apesar de todas as suas liberdades (todas as cenas de sexo, todas as mulheres despidas), é um medo de puritano. E é por este medo que se justifica o “mau gosto”, a fealdade de tantas e tantas sequências, a espécie de sublimação permanente (a cena do homem a esfregar a roupa enquanto olha para as raparigas, algo que mutatis mutandis podia estar num Buñuel mexicano) e, muito importante, uma absoluta e omnipresente frustração (logo ao princípio, o olhar impotente dos homens perante o strip-tease da loura), como se todos fossem vítimas de qualquer coisa.

Mesmo se não parece – no seu caos multi-direccionado, na sua estrutura fragmentada herdeira dos “quadrinhos”, área em que trabalhava o co-argumentista Ricchetti – um filme tão conseguido como outros Mojicas, é inegável que a liberdade e a criatividade do realizador são indescritíveis, e que em cada plano, em cada “raccord”, há uma ideia qualquer, um efeito qualquer a perseguir, seja no som seja na imagem, seja ainda na montagem. Ritual dos Sádicos / Despertar da Besta fervilha de coisas para ver (e ouvir), e como outros filmes do cineasta teria um lugar numa hipotética história de um “cinema do feio”. Poucos se acercaram da fealdade (da fealdade em todos os sentidos, o estético como o ético) com a potência com que Mojica o fez.

LMO