segunda-feira, 14 de abril de 2014

Speak to God

MARY
de Abel Ferrara

A religião não é uma novidade na obra de Abel Ferrara. A temática e o imaginário católicos cruzam, de modo mais ou menos central consoante os casos, vários dos seus filmes. É mesmo o ponto em que o cinema de Ferrara mais se toca com o de outro célebre ítalo-americano novaiorquino, Martin Scorsese (e não haverá muitos mais pontos de contacto para além destes: a origem italiana, Nova Iorque, e o Catolicismo). O grande filme católico americano dos anos 90, que no entanto não era um “drama religioso”, foi Abel Ferrara quem o fez; chamou-se “O Tenente sem Lei”, tinha uma freira que perdoava aos seus violadores citando palavras da Bíblia sobre os “necessitados”, e sobretudo tinha um Harvey Keitel em fantástica entrega, na pele de um Cristo moderno, louco, drogado e desamparado (ou, o que vai dar quase ao mesmo, na pele de um drogado louco e desamparado que se tomava por um Cristo moderno).

“Mary” é, mais ostensivamente, um “drama religioso”. Em termos narrativos, mas até em termos científicos. Vários investigadores e especialistas em estudos do cristianismo tomam a palavra no filme, nos segmentos correspondentes ao programa de televisão coordenado pela personagem de Forest Whitaker. Ferrara oferece-lhes um tempo generoso para as suas intervenções – não para caucionar, nem mesmo para “explicar”, mas para adensar: o que eles dizem é importante, quer na textura do filme quer enquanto olhar sobre o próprio filme. E isto porque, falta dizer, “Mary” se constrói usando por base o Evangelho apócrifo de Maria Madalena, descoberto no Egipto em 1945, segundo o qual Maria Madalena seria a principal discípula de Cristo, primeira intérprete do seu pensamento e das suas palavras. Já se escreveu que esse Evangelho, fazendo duma mulher a primeira depositária das palavras de Cristo, era algo de extremamente subversivo para a organização tradicional das instituições religiosas católicas, e a partir daí também se tem escrito sobre “Mary” como um filme “feminista” – o que, sendo possivelmente verdade, não parece ser a tecla mais importante para Ferrara.

Esses momentos “documentais” em que a palavra dos investigadores configura uma espécie de olhar sobre o filme mas exterior a ele são também importantes como sinal do funcionamento de “Mary”. Como se um filme em “porta giratória”, em “Mary” está-se sempre a entrar ou a sair de qualquer coisa. É talvez a principal marca distintiva da estrutura narrativa de “Mary”, com Ferrara, cujos piores (ou menos interessantes) filmes são sempre aqueles formalmente mais “limpos”, a arriscar uma construção em “manta de retalhos”, conciliando registos heteróclitos e aproximando matérias narrativas de vária ordem. “Entrar” e “sair”: se o filme entra e sai das vidas das suas personagens saltitando entre elas, também entra e sai (como dissemos) do programa de televisão de Forest Whitaker, ou do “filme no filme” que é aquele que a personagem de Matthew Modine, um realizador, tem pronto a estrear, baseado no Evangelho de Maria Madalena. Esta circulação, de resto, é anunciada na brilhante sequência inicial do filme: Binoche, uma actriz chamada Mary que interpreta o papel de Maria Madalena no filme de Modine, justamente apanhada no ponto em que já não quer (ou já não sabe como) sair. Acabou a rodagem mas ela recusa-se a sair da personagem, a abandonar a pele de Maria Madalena – problema de “encarnação” ou sua superação: Binoche não emprestou um corpo à personagem, ofereceu-lhe um espírito. Uma espécie de iluminação ou revelação, em todo o caso um “encontro”. Ferrara já filmou vampiros mas isto nada tem a ver com vampirismo, é apenas a fé como entrega absoluta, uma “entrada sem saída”, um “no way out”. Em vez de voltar para Nova Iorque, segue para Jerusalém.

Pressentem-se – é o risco assumido da “manta de retalhos” – vários filmes a acotovelarem-se dentro de “Mary”, como aliás já deve ter dado para perceber. “Mary” tem um lado “crítica do mundo moderno”, que usa a personagem de Binoche como contraponto. Algum desse “mundo moderno” talvez seja um bocado palha no contexto do filme, ou por outra, talvez se dê demasiado a ver como “sinalização” (e pouco mais) desse “mundo moderno” (as alusões ao conflito israelo-palestiniano, os boicotes da direita religiosa ao filme de Modine, etc). Mas integra, e isso é mais interessante, uma “crítica do espectáculo”, e é sobretudo aqui que a personagem de Binoche é um contraponto absoluto. Especialmente quando oposta à personagem de Matthew Modine, realizador meio poltrão, indeciso entre o prestígio “arty” e um estrelato a maior escala; tem-se visto, e é fácil ver, uma alusão a Mel Gibson e à sua “Paixão de Cristo”, mas Ferrara é alguém demasiado auto-punitivo para se excluir completamente a si próprio do retrato. Se Modine é a vaidade e a vontade de um “não comprometimento” tão grande quanto lhe for possível, Forest Whitaker completa o desdobramento: personagem em perda na vida pessoal, é alguém “sem lei” (como o tenente do outro filme) porque a perdeu, algures entre os desejos de grandeza e as tentações da carne. O protagonista “ferrariano” típico surge cindido nas duas personagens masculinas – e face a elas Binoche, a personagem feminina, na sua plenitude (e no seu “acordo”) de corpo e alma, é uma espécie de projecção ideal e idealizada, alguém intocável mas que por sua vez, pode tocar. E o mistério desse toque, de maneira não negligenciável, está no cerne de “Mary”. Como essa cena em que Whitaker, desesperado pela possibilidade de o seu filho recém-nascido morrer, fala com Binoche ao telefone e ela lhe pede (como o Johannes do “Ordet” de Dreyer) que experimente “falar com Deus”. Ele não sabe como se fala com Deus, responde “I can’t speak to God”. Mais tarde entrará numa igreja. “Como entrar” – é o grande tema, e a grande dúvida, de “Mary”.