domingo, 31 de dezembro de 2023

King of New York, Abel Ferrara, 1990

 


I'm not your problem. I'm just a businessman”

A obra de Abel Ferrara não é só isso, claro, e até cada vez menos o é, sobretudo a partir desta última década em que se radicou em Roma, mas convém não esquecer que ser “um cineasta de Nova Iorque” é uma das facetas importantes do seu trabalho. E dizer “um cineasta de Nova Iorque” significa, sobretudo, dizer, “um cineasta da história de Nova Iorque”. Entre Driller Killer (1976), um filme feito no encalço simbólico de Taxi Driver, e 4.44 – Last Day on Earth (2011), que há cerca de dez anos representou uma despedida, deliberada e voluntária, àquela cidade (foi depois dele que Ferrara se transplantou para a Europa), os filmes de Ferrara foram contando, periodicamente, o que foi acontecendo a Nova Iorque.

Sendo certo que falar do que foi acontecendo a Nova Iorque não significa apenas falar de uma cidade, mas de toda a América e, fatalmente, de todo o mundo ou de uma vasta e ocidental parte dele. King of New York é hoje porventura um filme mais facilmente localizável no tempo do que era na altura em que estreou. 1990, final de uma década marcada pelas presidências de Ronald Reagan, pela sacralização das políticas economicamente liberais, pela entronização enquanto figura heróica dos tempos modernos do “yuppy”, do “empreendedor”, do “businessman”; e mais localmente, no que a Nova Iorque diz respeito, da passagem da cidade “marginal” dos anos 70, viveiro artístico onde era possível sobreviver sem muito dinheiro, ao “playground” para ricos, gentrificado, em que a cidade começava a transformar-se (numa transformação acelerada pela eleição de Giuliani como “mayor” apenas quatro depois da estreia de King of New York, em 1994).

Honni soit qui mal y pense, também o “gangster” protagonista do filme de Ferrara, esse estranhíssimo e complicadíssimo Frank White a que Christopher Walken dá corpo e evanescência, acredita que tornar-se “mayor” de Nova Iorque é o passo em frente natural para as suas actividades de “businessman” da sombra e do submundo. A diluição das fronteiras entre a “sombra” (das actividades mafiosas) e a “luz” (dos negócios legítimos) é, obviamente, e de várias maneiras, um dos temas que cruzam o filme de Ferrara, e nesse sentido ele fica surpreendentemente próximo de outro filme estreado em 1990, o Godfather Part III de Coppola, que também tinha muito a dizer sobre essa diluição. E neste ponto, e já agora, um segundo honni soit qui mal y pense para a pequena história de King of New York: num filme sobre os negócios chiaroscuro de Nova Iorque no final dos anos 80, pleno daqueles ambientes de opulência enjoativa (os hoteis de luxo, as festas cheias de pós sortidos), esse figurão entretanto tornado global e chamado Donald Trump não pode estar muito longe, pensamos nós enquanto vemos o filme; pois bem, não está mesmo, aquelas cenas no Hotel Plaza são mesmo filmadas no Hotel Plaza, na altura propriedade de Trump, que deixou a equipa de Ferrara instalar-se lá e filmar à vontade, sem cobrar um tostão, satisfeito com a publicidade gratuita e com a condição – ao que tudo indica, cumprida – de Christopher Walken aceitar posar para uma fotografia com a sua mulher de então, Ivana...

Mas voltemos – se é que saímos delas – à luz e à sombra. Na mais estranha das cenas de King of New York, quando Frank White vai visitar o mafioso asiático, vemos um trecho do Nosferatu de Murnau, e com isso Ferrara, que nunca foi propriamente um cineasta “cinéfilo” a semear citações e referências pelos seus filmes, diz tudo sobre a relação do seu protagonista com a luz e a sombra, que como o vampiro de Murnau se perderá igualmente na passagem de uma coisa à outra, da sombra para a luz (e, poderíamos dizer, também sobre a relação entre o “alto” e o “baixo”, entre as alturas dos últimos andares do Plaza onde White instala o seu quartel-general, e os subterrâneos, como os do metropolitano, por que tem um genuíno afecto – porque o metro é a “realidade”, face à “ficção” do luxo do Plaza? Simplificadamente, sim). Mas essa cena é importante ainda a outro nível. Tudo aquilo tem um ar razoavelmente incrível (um mafioso a projectar clássicos mudos no seu cinema particular), e propicia a única tirada realmente cómica de todo o filme (quando White se vai embora, o mafioso diz-lhe: “já te vais embora? Olha que a seguir vamos projectar o Frankenstein”). Ora, este mafioso que afinal é um cinéfilo, cuja verdadeira paixão está no cinema, cumpre a dissociação que também está no coração do filme – todos eles são apenas businessmen, como White verbaliza, com um sentido prático de missão que faz dos “negócios” uma mera utilidade. Exploram um sistema económico que se tornou favorável, mas isso é a profissão; o que eles são é outra coisa, cinéfilos como o asiático, beneméritos (White paga um hospital, mostrando bem como a lavagem de dinheiro e a lavagem da consciência são irmãs) como a personagem de Walken julga ser, ele que num monólogo frente a frente com o polícia de Victor Argo (os polícias, já agora, são os únicos para quem a dissociação é impossível, como se vê bem no longo discurso da personagem de David Caruso sobre os salários, sobre o facto de o lado do “bem” ser, nesta guerra interminável com o “mal”, o que nunca tem uma compensação financeira digna) explicita o sentido de justiça social, e até moral, que atribui ao seu trabalho (“nunca matei ninguém que não merecesse morrer”).

Vale a pena dizer que este nome, White, não é um acaso num filme que encena a multiplicidade étnica de Nova Iorque (os negros, os hispânicos, os asiáticos, os italianos) e que tem esse homem duplamente branco – na pele e no nome – no topo da pirâmide (cinco anos antes, no Year of the Dragon, Cimino também chamara White ao polícia racista que protagonizava o filme) – e que portanto também sobre estas questões o filme de Ferrara diz, ou faz ecoar, alguma coisa.

Mas, para terminar, atentemos naqueles que são os momentos mais belos (e mais prolongados, num filme que vive quase sempre de sacudidelas) de King of New York, a morte lenta de Frank White. Como noutras personagens de Ferrara – sobretudo as escritas por Nicholas St.John, mas não só elas: um caso evidente é o do Bad Lieutenant – esta maldade cria-lhes uma espécie de curto-circuito espiritual que só encontra redenção, redenção total, na relação com a morte. Como se uma entrega, crística, digamos, à morte, em paz e aceitação, fosse a esponja que absorvesse todos os seus pecados. A espécie de arrasto com que Ferrara filma a morte do seu protagonista tem a ver com isso; e mais uma vez a sensação com que o espectador fica é a de que ele não foi bem morto, ele, sobretudo, deixou-se morrer.

LMO