terça-feira, 15 de abril de 2014

A moral da farsa

SEIS CONTOS MORAIS
De Eric Rohmer
Eric Rohmer, nascido em 1920, era o mais velho dos cineastas da “nouvelle vague”, e um pouco por essa razão, reforçada por outras (formação, interesses), como é confirmado por alguns episódios quase psico-dramáticos (o “golpe de estado” nos Cahiers encabeçado por Jacques Rivette), também o corpo mais estranho nesse bloco só superficialmente compacto. Era o mais culto de todos, em sentido convencional e mesmo propriamente “académico”, e o que tinha uma relação mais sólida com a literatura, por oposição ao diletantismo auto-didacta (não importa quão brilhante) dos sues colegas mais jovens. Ora se a literatura, e já estamos a chegar aos “Contos Morais”, foi a frustração, o “peso”, que conduziu os rapazes da “nouvelle vague” ao cinema (na célebre formulação de Godard, “como podíamos esperar escrever melhor do que Joyce ou Rilke?”), quem mais nela avançou foi Rohmer. Todos os seis “Contos Morais” começaram por ser projectos literários, escritos durante as décadas de 40 e 50, numa época em que Rohmer estava longe de imaginar vir a ser realizador de cinema. Muito mais tarde, já depois de estreados todos os filmes da série, os “Contos” foram publicados em livro (a edição portuguesa é da Cotovia), e no prefácio Rohmer fazia uma confissão de fracasso, com ironia “ma non troppo”: “se os filmei, foi porque não fui capaz de os escrever”. Morreu o escritor falhado, nasceu o grande cineasta.
Os “Contos Morais” também representaram a imposição (tardia, mais uma vez por relação com os parceiros de movimento) de Rohmer como realizador. Não deixa de ser curioso que um “fracasso” tenha remediado outro fracasso – este menos relativo e sem aspas: “Le Signe du Lion”, primeira longa-metragem de Rohmer, fora uma má experiência pessoal, passara sem grande atenção, e ainda hoje é provavelmente o menos conhecido dos filmes iniciais da “nouvelle vague”. Para resolver o impasse, Rohmer lembrou-se de puxar da cartola os seus devaneios literários da juventude. Com a ajuda do muito jovem Barbet Schroeder, que praticamente fundou a “Les Films du Losange” só para produzir o projecto de Rohmer, atirou-se aos “Contos Morais”, a princípio num artesanato quase amadorístico mas muito “nouvelle vague” (entre os primeiros filmes, “A Padeira de Monceau” e “A Carreira de Suzanne”, para todos os efeitos uma curta e uma média-metragem respectivamente, e os últimos, “O Joelho de Claire” e “O Amor às Três da Tarde” há uma gritante diferença de “aspecto”, ou se preferirem, de valores de produção). Os “Contos” ocuparam Rohmer durante todos os anos 60, entre 1963 e 1972 (apesar de ser uma década em que o cineasta fez muito trabalho para televisão), e garantiram-lhe definitivamente a notoriedade a partir dos terceiro e quarto episódios (“A Coleccionadora” e “A Minha Noite em Casa de Maud”, rodados e estreados por ordem inversa do seu posicionamento na série). Foi a primeira série de Rohmer, que depois repetiu esse princípio estruturante nos anos 80 (as “Comédias e Provérbios”) e nos anos 90 (os “Contos das Quatro Estações”).
“Serialista”, Rohmer é também um “geómetra” da narrativa. Todos os “Contos” assentam numa, chamemos-lhe, proposição triangular: um homem, uma mulher, outra mulher, de novo a primeira mulher. Profundo admirador de Murnau, Rohmer terá baseado estes movimentos em triângulo no arquétipo estabelecido pelo “Sunrise” do cineasta alemão – mas o certo é que (e visto que arquétipos são arquétipos) se pensa mais, durante o visionamento dos “Contos”, em variações sobre o modelo das “screwballs” americanas e das “comédias do re-casamento”. O humor, de resto, nunca está longe em nenhum dos “Contos”, autênticas comédias sem sinais exteriores de comédia, talvez com excepção do último, “O Amor às Três da Tarde”, que sendo o filme com o tom mais uniformemente grave é aquele em que com mais propriedade se pode falar em “re-casamento”. De resto, ao longo da série a faixa etária das personagens vai subindo: na “Padeira” e na “Suzanne” são miúdos, têm 18 anos, no último é um homem de meia-idade acometido de claustrofobia matrimonial.

Evidentemente, o tema central dos “Contos” é o desejo masculino, e a sua volatilidade face às circunstâncias. Não é a primeira vez, nem será a última, que citamos uma frase de Rohmer, homem demasiado antigo (e dirão alguns, demasiado reaccionário) para não desconfiar da psicanálise: “o inconsciente é o corpo”. Isto é a chave de muito Rohmer, e seguramente a principal chave dos “Contos”. Como lida o homem urbano, civilizado, “intelectual”, com as flutuações do desejo, com o aleatório dos sentimentos e dos acontecimentos? Obviamente, racionaliza: se os “Contos” são “Morais” é porque todos os protagonistas fazem um esforço para integrar tudo (as hesitações, os acasos, as vacilações) numa ordem de premeditação que tanto é uma âncora para a sua existência como a reivindicação de uma “superioridade moral” perante os outros (e as outras). Diz, resumindo quase todos os outros “Contos”, o jovem protagonista de “A Padeira de Monceau”, depois por um acaso em que não foi tido nem achado troca uma mulher por outra: “fiz uma escolha moral”. A história dos “Contos” é a história desta “moral”, uma “moral” que (talvez à excepção do caso do protagonista de “A Minha Noite em Casa de Maud”, que é quase um ensaio sobre a santidade) no fundo não é mais do que uma ficção essencial à sobrevivência, uma permanente “mise en scène” da negação. O génio de Rohmer é conseguir filmá-la dando a ver em cada plano uma situação e, ao mesmo tempo, a sua leitura: o “falsamente objectivo” e o “falsamente subjectivo” equivalem-se, andam de braço dado, habitam o mesmo corpo e o mesmo olhar. O corpo e o olhar do cinema, pois o que os “Contos” mostram é que, quando se trata de justificar o seu lugar num mundo entre mulheres, cada homem é um cineasta, cada homem inventa o seu filme, consigo no lugar do herói. O que eles projectam como drama, Rohmer filma como farsa (mas sem danificar o drama deles). Genial, claro. Mas mais importante do que isso, único. Rever os “Contos” é um prazer, descobri-los uma maravilha.