sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

The Cat's Meow, Peter Bogdanovich, 2001

 


Há muito, muito tempo que não estreava em Portugal um filme de Peter Bogdanovich. A última vez que isso aconteceu foi com Texasville, que chegou a Portugal no princípio dos anos 90 e ficou como o mais belo filme que nessa década por cá se viu. Os filmes seguintes de Bogdanovich, Noises Off... e The Thing Called Love, não chegaram às salas portuguesas, ficaram-se pela edição videográfica. Depois, Bogdanovich passou o resto dos anos 90 sem filmar para cinema (limitou-se a uns quantos telefilmes), até que em 2001 surgiu o “come back” com este The Cat's Meow que agora, felizmente, se estreia.

Bogdanovich, que em finais da década de 60 e princípios da década de 70 foi uma espécie de “boy wonder” entre a geração dos “movie brats”, foi também aquele que, dessa geração, mais depressa ficou para trás. Em Hollywood Ending, o filme de Woody Allen que ainda está em cartaz, há logo ao princípio um “gag” cruel cuja “punchline” envolve Bogdanovich, realizador hoje em dia tão “queimado” quanto a personagem interpretada por Allen. Uma série de falhanços, uma ambição desmedida, e uma arrogância relativamente ostensiva (Bogdanovich era odiado por quase toda a gente da “nova Hollywood”, muito por causa das suas amizades “exclusivistas” com os velhos gigantes como Orson Welles e John Ford) – tudo junto funcionou como um “cocktail molotov” que pegou fogo à sua carreira. Foi uma pena, porque Peter Bogdanovich estava seguramente entre os mais talentosos realizadores da sua geração, além de que a sua cinefilia e profundo conhecimento do cinema clássico (era o mais cinéfilo e conhecedor deles todos) faziam com que o cinema de Bogdanovich funcionasse como o mais límpido traço de união entre a “velha” Hollywood e a “nova”, dos anos 70.

The Cat's Meow não é só o regresso de Bogdanovich ao cinema, é também o seu regresso, justamente, a uma temática cinéfila, ele que, até ao princípio dos anos 80, não deixou de filmar, evocar e refazer quer a memória da Hollywood clássica quer os seus géneros. Aqui, viaja até aos anos 20, para abordar um dos mais míticos e obscuros episódios daquela década – The Cat's Meow mergulha-nos em plena “Babilónia de Hollywood” esse ninho de intrigas e segredos de alcova que fizeram (e continuam a fazer, vem aí um terceiro tomo de “Hollywood Babylon”) as delícias de Kenneth Anger. O episódio em causa, sobre o qual rios de tinta especulativa correram nos últimos 70 e tal anos, é o do célebre fim de semana passado a bordo do barco de William Randolph Hearst, que culminou com a morte, em circunstâncias nunca cabalmente esclarecidas, do lendário Thomas H. Ince – o “rival” de David Wark Griffith na luta pelo título de mais decisivo realizador da Hollywood dos primórdios.

Pretexto para mera nostalgia cinéfila? Alguma haverá, sim, e não parece que haja nisso algum mal. Mas The Cat's Meow é acima de tudo uma “period piece” sobre os loucos anos 20 hollywoodianos, enformada por um sentido trágico que é a verdadeira razão de ser do filme: digamos que o que dissolve a nostalgia é o facto de Bogdanovich filmar menos um episódio revelador do fim de uma hipotética inocência primordial de Hollywood do que um conto terrivelmente amoral que nega a hipótese de Hollywood alguma vez ter tido esse tipo de inocência. O barco onde se desenrola o permanente carrossel que é aquele fim de semana tem óbvias propriedades metafóricas: tanto sintetiza “toda a Hollywood” como a retrata enquanto mundo à parte, regido por leis e motivações obscuras. A lei da selva, ou a lei do mais forte – William Randolph Hearst, ironicamente, é “promovido” por Bogdanovich à condição de maior “metteur en scène” da Hollywood clássica.

Todos são prisioneiros da lógica de Hollywood, que é um bocadinho a suspensão de todas as lógicas, ou, como conta uma personagem, todos são vítimas da “maldição de Hollywood”, que é como quem diz da mais completa transfiguração moral. Nesse sentido, curiosamente, o filme que The Cat's Meow mais parece evocar é o Fedora de Billy Wilder – a voz “off” da personagem de Joanna Lumley, no fim, torna quase explícita a associação daquele fim de semana e daquela gente à atmosfera letal de uma “skeleton dance”. É por isso também que, apesar da agilidade narrativa de Bogdanovich (que conta a intriga no ritmo e no estilo de uma “short story” de mistério), se vai progressivamente desprendendo uma espécie de “gravidade” que puxa sempre as personagens para baixo (veja-se o subtil tratamento dos espaços do navio), e que faz sempre preceder o mito da humanidade que lhe dá origem. Característica aliás, particularmente visível no tratamento da figura de Charles Chaplin (um magnífico e surpreendente Eddie Izzard), personagem pesada, obsessiva, quase doentia, em todo o caso bastante diferente do retrato que Richard Attenborough (e Robert Downey Jr.) dele propuseram em Chaplin. Tem que ser assim, o olhar de Bogdanovich tem que ser dessacralizador, o que ele filma é uma corrida desenfreada rumo ao vazio – porque, como explica uma personagem, se pararem de correr descobrem que já lá chegaram, ao vazio. E esse infernal “merry go round” é, no fundo, o grande tema de The Cat's Meow.

LMO

Noises Off..., Peter Bogdanovich, 1992

 


Não temos os dados à mão para o afirmar taxativamente, mas é de crer que Texasville tenha sido um enorme “flop” (também) em Portugal. Depois dele – que em Portugal se estreou em 1991 – o único Bogdanovich visto em sala foi, já nos anos 2000, The Cat’s Meow*. Este hiato apressou a noção, entre nós, do “fim” de Bogdanovich, e da sua conversão em pau para toda a obra (televisiva), apenas pontualmente contrariada (no caso de The Cat’s Meow, justamente) pela oportunidade de rodar um filme minimamente pessoal. Essa desgraçada conversão não sucedeu, no entanto, logo a seguir a Texasville. E, bem pelo contrário, num ritmo que já não lhe era permitido desde os anos 70, Bogdanovich entrou em pleno vapor na década de 90: a Texasville sucederam-se Noises Off… (1992) e The Thing Called Love (1993). Depois, sim, terá sido, aparentemente, o “fim”. Mas em Portugal qualquer destes dois títulos seguiu directamente para o mercado vídeo sem passar pelas salas. Memória desses tempos – memórias de videoclube… - faz-nos lamentar especialmente a ausência neste ciclo de The Thing Called Love, de que guardamos óptima impressão (mas não se encontrou rasto de cópias disponíveis para circulação). Por outro lado, o confronto com a memória desses tempos torna mais agradável do que esperávamos o reencontro com Noises Off…. Não é que tenha “melhorado” (e foi um filme bastante atacado pela crítica americana do seu tempo), porque patenteia exactamente as mesmas virtudes e defeitos que eram visíveis em 1992. Mas talvez nos seja hoje mais fácil relevar as virtudes e esquecer os defeitos, e acima de tudo notar quão insólitas (ou quão solitárias: neste contexto as palavras tornam-se sinónimas) são algumas das suas características.

Noises Off… faz do teatro o seu centro. É uma adaptação de uma peça de Michael Frayn, uma farsa que já era, em si mesma, “meta-teatral”, e mostrava como o teatro se deixa atravessar pela vida; neste caso, pela vida de todos os envolvidos (encenador, actores, técnicos de bastidores), numa teia de relações pessoais conflituosas que se adensa a cada novo ensaio e a cada nova representação, progressivamente sabotando e desfigurando o curso inicialmente pensado. Não é claro o que é que a este mecanismo – um “desconstrutivismo lúdico”, por assim dizer – Bogdanovich acrescentou para além da sua própria descrição, que de resto parece impecável, a tal ponto que se pode dizer (no desconhecimento do texto original da peça de Frayn ou de alguma das suas representações) que o principal óbice do filme (uma certa sensação de inconsequência) é ele próprio “importado” da peça. Já parece mais claro é que, ao “teatro no teatro”, Bogdanovich se lembrou de acrescentar o cinema, e que o seu filme tenta intensificar o jogo de espelhos: não apenas “teatro no teatro” (ou “filme no filme”), mas sobretudo “filme no teatro” ou “teatro no filme”).

É por isso que, num filme ostensivamente “teatral”, a memória que mais ocorre não é a de teatro algum mas antes a da comédia cinematográfica americana clássica. É óbvio que Bogdanovich pensou sobretudo na “screwball comedy” (a velocidade vertiginosa a que tudo acontece, para além do tipo de quiproquós narrativos) e no burlesco (a comédia como uma questão de mecânica, de “timings”, de conflito permanente entre personagens, e entre personagens e décors e adereços). Pensou mesmo no “slapstick”, essa raiz primitiva de praticamente tudo o que entendemos por “comédia cinematográfica americana clássica”: ou não é aquele “segundo acto” de Noises Off… com a acção (mais uma representação da peça) vista do lado dos bastidores, onde toda a gente é forçada a manter silêncio, a última comédia muda americana, mais “silent movie” (e mais homenagem aos “silent movies”) do que o Silent Movie que Mel Brooks rodou nos anos 70? Bogdanovich não se limitou a fazer um filme sobre o teatro, mas aproveitou a peça de Frayn para conceber um exercício (até um pouco teórico) sobre o teatro como raiz de uma tradição cinematográfica.

Mesmo que seja fácil reconhecer-lhe uma certa frivolidade, o exercício é brilhantemente executado – a “coreografia” nunca falha, os tempos estão sempre certos, a “simulação do fracasso” é perfeita, e isto tudo vale por dizer que o domínio de Bogdanovich sobre a mise en scène (e sobre a “mise en scène da mise en scène”, e mesmo sobre a “mise en scène da ausência de mise en scène”, expressões que parecerão menos rebuscadas a quem tiver visto o filme) é total e absoluto. O que é que é levemente frustrante, então, quando a cortina desce pela última vez? Talvez o facto de esta lógica de decomposição, subjacente a todo o filme, não ser levada até ao seu corolário, e in extremis se volver em “recomposição”. Tudo está bem quando acaba bem. Mas e daí, o “happy end” é outra das mais antigas tradições hollywoodianas…

LMO

*o texto é de 2010. Mais de dez anos depois, estreou em Portugal She's Funny That Way.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Let It Be, Michael Lindsay-Hogg, 1970

 


I’d like to say “thank you” on behalf of the group and ourselves, and I hope we passed the audition.

(John Lennon, na última frase do filme, a última frase dos Beatles)

 

Quando, em Janeiro de 1969, os Beatles entraram em estúdio para gravar canções para um álbum chamado Let It Be ao mesmo tempo em que se deixavam filmar para um filme homónimo, estavam já, enquanto grupo, presos por arames. Ocuparia demasiado espaço explicar porquê, e de qualquer modo sobre o assunto a bibliografia é vasta. Havia várias tensões entre os membros do grupo, provocadas, resumidamente, pelo aprofundamento de “clivagens idiossincráticas” (mormente entre John Lennon e Paul McCartney), pela crescente importância das vidas pessoais de cada um deles (John trazer Yoko para o estúdio não era uma coisa bem vista pelos outros, mas o certo é que em Let It Be também vemos a família de Paul McCartney), pelos problemas advindos dos erros de gestão da sua aventura empresarial (a Apple Corps, de resto a entidade produtora do filme). Ou, de maneira ainda mais resumida, os Beatles estavam cansados de serem os Beatles, algo também confirmado pelo cada vez maior envolvimento deles em projectos musicais pessoais e à margem do grupo.

Let It Be, sendo uma espécie de “última valsa” dos Beatles, tem este interesse acrescido. Concebido ainda como veículo celebratório do grupo, acabou por documentar, se não o fim dos Beatles, alguma coisa que já vinha de trás e que se pode identificar hoje, muito concretamente, como o “princípio do fim”. O facto de sabermos que quando o filme se estreou o grupo já se tinha efectivamente dissolvido lança uma sombra sobre tudo o que vemos em Let It Be (que, no entanto, não documenta a derradeira reunião dos Beatles em estúdio, visto que no Verão desse ano de 1969 ainda gravariam Abbey Road, que seria editado antes da saída do Let It Be filme e do Let It Be álbum). Se toda a gente olha para Let It Be à procura de “premonições”, e as encontra com a facilidade que a retrospectiva sempre permite (nos desentendimentos, como na célebre discussão entre Paul e George, ou na distância entre Paul, cada vez mais “líder”, e John, cada vez mais longe, sendo um facto curioso eles não aparecerem assim tantas vezes dentro do mesmo plano), talvez a mais estarrecedora metáfora (que só pode ser um acaso, mas nunca fiando) seja aquele breve plano, ainda no início, em que por cima do piano de Paul McCartney vislumbramos uma maçã, igualzinha ao logótipo da Apple que aparecia nos discos dos Beatles, mas… toda roída. Talvez seja a mais singela, mas mais eficaz, imagem para o fim dos Beatles: não havia, simplesmente, mais por onde roer.

Outra ironia é que a própria produção do filme acentuou o desconforto entre o grupo. Por obrigações de rodagem, os Beatles trocaram de horários e começaram a encontrar-se no estúdio às primeiras horas daqueles dias do Inverno londrino, em vez das sessões nocturnas a que estavam habituados. Há no filme (nas roupas, por exemplo) uma presença do frio, meteorológico, que também não está longe de ser um elemento catalisador de uma frieza mais metafórica mas igualmente palpável. E ainda nesta perspectiva “simbólico-premonitória”, como não ver a escolha do telhado da própria “casa” dos Beatles (os escritórios da Apple, em Savile Row) para lugar do seu derradeiro concerto como mais um sinal, um sinal de que os Beatles já não estavam dispostos a ir muito longe por si próprios, e pelo contrário apenas tão perto quanto possível?

Tudo isto é certo, e está mais ou menos inegavelmente contido no filme. Mas também estão outras coisas, e num filme que passou à história como o documento da “morte dos Beatles” talvez o mais entusiasmante seja descobrir o modo como ele captou a “vida” que ainda havia. Não é só o (fenomenal) concerto do telhado que ocupa os derradeiros vinte minutos do filme, são todos aqueles momentos, quase “back to basics”, em que a música toma conta de Paul, John, George e Ringo e se percebe que ali ainda resistia qualquer coisa, que ainda podia haver uma “jouissance” (e até os “ad libs” de John parecem uma coisa entusiasmada, não simples expressões de um “detachment” eventualmente cínico).

E para além da “beatle-iana”, que interesse tem Let It Be? Diríamos que mais do que estávamos à espera. Por feliz coincidência, boa parte do mais interessante cinema documental moderno seguiu por caminhos semelhantes aos tomados por Michael Lindsay-Hogg: imersão numa realidade estrita e definida, ausência de explicações e de comentários evidentes, opção pelo “fragmento” e pelo “descontínuo”, pelo anedótico e pelo aparentemente não-essencial, por uma montagem que “decompõe” tanto quanto “aproxima” – para chegar a um retrato (de grupo, propriamente) que palpita de justeza e credibilidade. Seja em que contexto for, Let It Be não faz nem fará má figura.

LMO

sexta-feira, 9 de julho de 2021

La Collectionneuse, Eric Rohmer, 1967

 

Como se sabe, Eric Rohmer definiu a série dos Contos Morais (de que La Collectionneuse é o quarto filme) como algo em que era menos importante aquilo que se passava do que o modo como as personagens (ou uma de entre elas) descreviam aquilo que se passava. “Mon intention n’était pas de filmer des événements bruts, mais le récit que quelqu’un faisait d’eux”. E consequentemente, o mais importante passa-se, acrescentava Rohmer, “dans la tête du narrateur”.

La Collectionneuse é um excelente exemplo do que isto quer dizer, e igualmente um excelente exemplo de tudo o que um tal princípio permite a Rohmer. Tudo funciona a partir de uma décalage: filmar o récit produzido pelo narrador não quer dizer que apenas vejamos esse récit, nem que o carácter real (“brut”) dos acontecimentos descritos possa ser posto em causa. O que vemos não é “imaginado”, não há razão para crer que, a esse nível, haja qualquer confusão entre o objectivo e o subjectivo. O que há, num procedimento que Rohmer utilizou variadíssimas vezes (em quase toda a série das Quatro Estações, para ficarmos por aí), é a criação de um efeito de mecânica cómica, gerado (e gerada, a mecânica) pelo simples facto de vermos e ouvirmos, de no mesmo plano coexistirem o “événement brut” e o “récit”, o objectivo e o subjectivo, a acção e a reflexão (ou a justificação). E, por cima disso, o facto, sumamente perverso, de o ponto de vista da câmara não corresponder ao do narrador – este tem poder sobre o microfone, não sobre a máquina de filmar (porque se tivesse, aí sim, poderíamos falar num nível imaginário, numa subjectividade da imagem). Por muito que conceda a palavra ao seu “narrador” (aqui, Patrick Bauchau), Rohmer não abdica de ser, ele próprio, uma espécie de narrador escondido, que guarda para si próprio a “última palavra”, metaforicamente proferida sem recurso a qualquer oralidade – apenas “mise en scène”, ângulos de câmara, escolha dos planos. Um exemplo? Toda a sequência final de La Collectionneuse, quando Bauchau deixa Haydée para trás e o seu monólogo em “off” refere em tons quase épicos que esse acto significou para ele “uma liberdade exercida na sua plenitude”, fala da solidão escolhida para o resto das férias, evoca, entusiasmado, “a total disponibilidade de si”. E o que é que vemos, depois? Uma espécie de anti-climax: Bauchau espreitando pela janela da vivenda, Bauchau deitado na cama, Bauchau vagueando pelo jardim, Bauchau, em suma, sem saber como ocupar o seu tempo. Até que, no plano final, sem qualquer “aviso” ou explicação do Bauchau narrador, o vemos a pegar no telefone e a perguntar às informações do Aeroporto de Nice a que horas há voos para Londres, “naquele mesmo dia”.

No seu livro (edição dos Cahiers du Cinema) sobre o cineasta, Pascal Bonitzer escreve a dado passo que as personagens de Rohmer “agem como se tivessem lido em demasia, e acabam por julgar ser outras pessoas”. Há, de facto, uma dimensão de heroísmo auto-reivindicado nas personagens de Rohmer, como se eles acreditassem – quando escolhem a renúncia, quando escolhem a privação, quando se dedicam ao prazer – haver em qualquer das suas escolhas ou dos seus actos um sinal da sua própria “superioridade moral”; a posteriori, há sempre uma justificação de teor filosófico-moral para o mais simples dos seus gestos, há sempre – mesmo, ou sobretudo, quando os comportamentos são erráticos e ao sabor das circunstâncias – uma tentativa de inclusão de qualquer acção num quadro de premeditação e estratégia (como se as personagens estivessem, de facto, a escrever o romance, o récit, da suas próprias vidas). Em La Collectionneuse, quando finalmente Bauchau parece disposto a ceder ao (evidente, para todos menos para ele) desejo que sente por Haydée, escuda-se na premeditação de “uma história estritamente balizada no tempo e no espaço”, que para ele significa o cúmulo da aventura, “a aventura absoluta”.

Essa questão, a do desejo e da sua justificação racional, está sempre presente no cinema de Rohmer, com especial acuidade nos Contos Morais e em particular neste filme – cuja “intriga” se poderia resumir à atracção que dois amigos sentem pela mesma rapariga e aos esforços que fazem, entre eles e para si próprios, para a negar. São duas personagens em constante representação, numa verdadeira “mise en scène” da negação (veja-se Daniel no seu número de teatro a insultar Haydée, ele que fora sensível, no princípio do filme, à conversa sobre a “elegância” e sobre a preocupação, supostamente em desuso, com a imagem de si que um indivíduo projecta perante os outros). Numa entrevista a propósito de outro filme, Rohmer citou um antigo professor seu que costumava dizer que “o inconsciente é o corpo”; de certa maneira, La Collectionneuse é um filme sobre isso, sobre a impossibilidade racional de dominar o que é da ordem do irracional. Mas essa impossibilidade é o que nós, espectadores, vemos, e neste caso é o que Haydée parece saber; até prova em contrário, as personagens de Bauchau e Pommereulle continuarão, até muito depois do filme, a viver a ilusão do seu próprio “récit”.

LMO

domingo, 4 de julho de 2021

North by Northwest, Alfred Hitchcock, 1959

 



Por coincidência, ontem a sessão caseira do serão foi com o “North by Northwest”. São estes filmes que a gente julga conhecer de cor e salteado os mais traiçoeiros (quando teria sido a última vez que o vi? 20 anos, talvez mais?). Bateu-me o primitivismo da organização do filme, que é a razão por que ele parece tão moderno: blocos de acção onde há sempre um problema específico a resolver, e um cenário que as personagens precisam de dominar para não serem engolidos por ele (e como, por exemplo, no burlesco keatoniano, é a relação física entre personagens e décor que está na origem de toda a acção, ou mais do que isso, de cada acção; no cinema contemporâneo de primeira linha, e é a razão porque acho bastante piada à série, só a dupla McQuarrie/Cruise segue este preceito, com razoável felicidade, nas “Missão Impossível”). “North by Northwest” são, por isso, e sem desprimor para o Monte Rushmore, as aventuras do homo hitchcockianus na paisagem da arquitectura moderna, ou modernista, do recém inaugurado edifício novaiorquino das Nações Unidas à casa do vilão James Mason, que Hitchcock queria que Frank Lloyd Wright desenhasse (mas quando o arquitecto pediu o equivalente a dez por cento do orçamento total do filme foram os set designers de Hitch a desarrincar uma mais do que convincente imitação de Wright). Estruturas, portanto, estruturas que são apenas a explicitação da “estrutura” que abafa as personagens (e que, narrativamente, é dínamo do filme, mais ou menos “mcguffin”). A rima indirecta mais forte é entre o plano “vertical” do topo do edifício das NU e o plano “horizontal” da estrada e da planície onde Cary Grant espera pelo contacto de George Kaplan (essa personagem que, sem existência real, é também ele pura “estrutura”); em ambos, a paisagem, urbana ou rural, se revela como uma espécie de quadriculado, e em ambos a figura humana é reduzida a pontinhos ínfimos dentro desse quadriculado. “North by Northwest” é como um pressentimento de um mundo a transformar-se em forma e em estrutura, onde se passa da primazia do indivíduo ao predomínio da “organização”, da legibilidade imediata à opacidade burocrática (e daí a importância da confusão de identidades Roger Thornhill/George Kaplan). Neste sentido, é o mais languiano, o mais “Metropolis” dos filmes de Hitchcock, nessa transferência para o espaço arquitectónico (quer dizer, organizado) da expressão de um ambiente social, político ou, liminarmente, pela omnipresença e pela omnisciência, policial, onde o indivíduo é roda da engrenagem e, para se desengrenar, tem que se transformar no grão de areia da engrenagem (e cobrir-se de “areia” é o que Grant tem que fazer na cena do avião, ou o que Grant e Eva Marie Saint têm que fazer na poeira rochosa do Mount Rushmore – como se, num mundo asséptico, a salvação estivesse na sujidade). Por isso, apenas um ano depois de “Vertigo”, este filme é a antitese do romantismo desse filme – mesmo a relação Grant/Eva Marie Saint é feita de fisicalidade, de contactos e de (uma sucessão de) contratos de onde estão ausentes quaisquer propriedades “fantasmáticas”, um amor “pragmático” de objectivos (como num contrato) bem definidos (e por isso a necessidade do plano final com o comboio a entrar no túnel: contrato selado).

Seriam precisos quinze anos para alguém pegar no testemunho deixado por este pressentimento da modernidade. Foi, e já do outro lado do pressentimento, num tempo em que a modernidade já era a água do aquário, Alan J. Pakula, nas suas ficções “paranóicas” da primeira metade dos anos 70, sobretudo “The Parallax View”, porventura o mais “North by Nortwest” de todos os filmes não chamados “North by Nortwest”.

Quanto a Hitchcock, passaria no ano seguinte, daquele buraco do plano final por onde entra o comboio ao buraco mais pequenino por onde entra o olhar de Norman Bates em “Psycho”.

LMO


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Road to Nowhere (Monte Hellman, 2011)

 


Two Lane Blacktop, a obra-prima de Monte Hellman, um dos grandes filmes americanos dos anos 70, e o “road movie” que por si mesmo consagrou o género como uma metafísica da apatia, ou coisa parecida, terminava com a película a arder. A última coisa que se via era um fotograma incendiado, o filme a desfazer-se à nossa frente – como se fosse a única maneira de acabar com aquilo, porque “a estrada não tem fim” (como dizia o título português de Two Lane Blacktop) e assim sendo é uma estrada para lugar nenhum, uma “road to nowhere”.

Quase quarenta anos depois, e perante um filme chamado, justamente, Road to Nowhere, é inevitável pensar que Monte Hellman brinca aos encadeados: da película de Blacktop ao DVD que está no centro do primeiro plano deste filme (rodado já não em película mas em vídeo), um DVD onde o título do filme está escrito a caneta (como num vulgar DVD pirata) e que é posto a rodar num computador portátil. Primeiro sinal labiríntico. Depois, a câmara de Hellman mergulha em zoom sobre o ecran do portátil, até que as margens do enquadramento do filme e do filme no filme sejam coincidentes – e a partir desse momento o labirinto é mais do que um sinal, é o território, bifurcado, incerto, especular, sem saída, que Road to Nowhere habita até ao fim (e desta vez há um “fim”, embora tudo possa sempre voltar ao princípio: ao último plano do filme, podia suceder-se o primeiro, a rodela a ser inserida no leitor, e tudo a começar outra vez). As primeiras imagens do “filme no filme” (ou será, apenas, do “filme”) são um longo, longuíssimo, plano de uma rapariga sentada na cama, a usar um secador de cabelo. Na banda sonora, o ruído do secador coexiste com uma canção melancólica sobre “ajuda para passar a noite”. É uma introdução fabulosa por várias razões, também pelo facto de nos “introduzir” ao filme sem verdadeiramente avançar qualquer coisa de explícito sobre ele ou sobre a sua narrativa: apenas o poder, “hipnótico”, de prender o espectador ao écran com um mínimo de “signos”, desprovidos de qualquer contexto narrativo. Se Road to Nowhere acabasse no fim desse plano com o secador já tinha minutos que bastassem para que só tivéssemos vontade de bater palmas.

Depois, continuamos a ter vontade. Porque esses minutos, como um daqueles “sumários” ao género dos que Hitchcock gostava de fazer, condensam a matéria que Road to Nowhere tem para explorar: a componente reflexiva, de filme sobre o cinema, sobre o cinema como ele se faz e se vê hoje (os ecrans eletrónicos, os aparelhos de vídeo, etc) e sobre o cinema como ele sempre foi (coisa abissal, mergulho sobre o ecran, fascínio e perdições, espelhos e reflexos); e, não negligenciemos isto, uma infinita paciência para seguir, registar, deixar-se hipnotizar, pelos mais ínfimos e anódinos gestos da actriz principal, Shannyn Sossamon, ora luz ora sombra, quer dizer, actriz em “chiaroscuro” (o “casting”, o “casting” e o “casting” são as três tarefas mais importantes de um cineasta, diz o realizador do filme no filme, que se chama Mitchell Haven e tem, caso não se note, as mesmas iniciais que Monte Hellman). Nesse ponto, o filme e o filme no filme tocam-se: são ambos dominados pelo inexorável fascínio por uma mulher, dúplice e misteriosa.

Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico “monólito negro” na paisagem do cinema americano contemporâneo, Road to Nowhere só pode ser comparado com algum Lynch (o de Inland Empire, mas sem o sobrenatural e sem a psicanálise), na sua relação/reinvenção com uma mitologia hollywoodiana (e mais do que hollywoodiana: menciona-se por exemplo Samuel Fuller, o “maverick” por excelência, e até Bergman é explicitamente citado), e pelo seu lado vertiginosamente reflexivo e terminal (tudo acaba com um movimento de câmara a perder-se dentro dos contornos negros de um poster da protagonista), com o Cigarette Burns de John Carpenter. Ou seja, com os grandes filmes americanos sobre a cinefilia no século XXI, ainda mais imbuída de um “sentido do fim”, de um espírito “necrológico” , do que a cinefilia do século XX. Monte Hellman disse que era um filme que precisava de ser visto “mais do que duas vezes”: não necessariamente pela sua narrativa (tão complexa e, ao mesmo tempo, tão irrelevante como a do The Big Sleep de Hawks), mas porque a cada revisão descobre mais uma ala desta diabólica casa de espelhos, onde o “cinema” e a “vida” se reflectem e repetem “ad infinitum”.

LMO

domingo, 11 de abril de 2021

The Servant, Joseph Losey, 1963

O filme mais discutido e “interpretado” de sempre continuará a ser, por muitos e longos anos, o 2001 de Kubrick. Mas, embora de modo mais discreto (é também um filme muito menos conhecido), The Servant não ficaria muito atrás do filme do monólito numa hipotética lista dos filmes mais “interpretados” e “re-interpretados” da história do cinema. Ainda hoje, as explicações sobre o que de facto ocorre em The Servant e sobre o que é que o filme realmente diz ou quer dizer são variadíssimas. E o passar do tempo, se naturalmente vai privilegiando umas teorias em desfavor de outras, também vai gerando novas explicações. Mormente no que toca à presença de Harold Pinter na autoria do argumento (mesmo que este seja baseado num romance dum sobrinho de Somerset Maugham). Em 1963 o recentemente “nobelizado” dramaturgo era ainda um “jovem autor”, e o seu nome facilmente se “apagava” perante o de Joseph Losey, realizador consagrado no cinema americano e que para mais gozava ainda da aura de “exilado”, depois da perseguições e da “lista negra” do senador McCarthy. Mas, quarenta anos depois, há quem pergunte (e responda), com toda a pertinência, se a “chave” para um entendimento de The Servant não estará mais em Pinter do que em Losey, defendendo que as principais linhas de força do filme reflectem mais o universo temático “pinteriano” do que outra coisa qualquer (a questão do poder e das relações de poder aplicadas a um nível humano muito básico e despojado: apenas o confronto entre dois indivíduos e a aniquilação de um pelo outro). O que faz, inegavelmente, pelo menos algum sentido.

Mas The Servant, aclamadíssimo na altura em que estreou, duma maneira que hoje provavelmente já poucos seriam capazes de aclamar (é um filme um pouco envelhecido, e aquilo que na mise en scène de Losey passou à época por uma “austeridade gelada” parece hoje o resultado de uma afectação estilística um tanto maneirista), foi normalmente enquadrado numa grelha temática bastante mais “sociológica” do que “autorística”. 

A história prestava-se a isso. Basicamente, a narrativa de The Servant não é mais do que a história de um jovem aristocrata (James Fox) que contrata um criado ou um valete ou um mordomo (a expressão inglesa “servant” ou “manservant” designa uma função muito específica e muito tradicionalmente britânica que talvez não tenha tradução portuguesa tão precisa), que por sua vez, sem fazer nada de especial, conduzirá o jovem a um estado de absoluta submissão. Fox acaba o filme como uma marioneta, sem vontade própria e incapaz de qualquer movimento que não seja induzido ou apoiado pela personagem de Dirk Bogarde (absolutamente excepcional nos seus modos suaves e ambíguos, na psicologia indefinível, e na sombra sinistra que é capaz de investir na personagem com um simples e angelical sorriso). A leitura mais comum de The Servant teve sempre a ver com a “luta de classes”, que o filme reduziria simultaneamente directa e alegórica, palpável e abstracta. Outras houve – como a que metia a homossexualidade ao barulho, porventura apoiando-se na extrema ambiguidade de Bogarde (homem de vários papéis sexualmente ambíguos quando não explicitamente homossexuais, para além de ser ele próprio um homossexual que nunca publicamente o assumiu). A “luta de classes”, na configuração muito específica suscitada pela organização classista da sociedade britânica, é provavelmente o tema mais velho do cinema inglês (e da literatura inglesa), e ainda hoje não passou de moda. Em 1963, com o cinema inglês tomado de assalto pela geração do “free cinema” e pela sua observação crua da realidade social e da vida das “lower classes”, The Servant ajustava-se que nem uma luva ao espírito do tempo: uma espécie de fábula, venenosa quanto baste, sobre a decadência da aristocracia e a degenerescência das chamadas “upper classes”. Com mais ou menos metáforas, é evidente que esta dimensão estava presente no filme e não se diluiu com o tempo. 

O que ele tem de melhor, no entanto, é o ambiente de opressão psicológica. Essencialmente “pinteriano” ou não, The Servant pode ser visto como um conto terrificante sobre a apropriação e o esvaziamento de uma personalidade. Nesse aspecto é quase um filme de terror que deixasse o terror sempre em surdina. Os ambientes estilizados, a fotografia gelada e contrastada (notável trabalho de Douglas Slocombe), a espécie de deliberada recusa da “humanidade” das personagens, mantidas sempre em silhueta. Tudo isso nos aproxima de um “ensaio sobre o vampirismo”, crudelíssimo, mordaz e terrivelmente irónico.

LMO