domingo, 4 de julho de 2021

North by Northwest, Alfred Hitchcock, 1959

 



Por coincidência, ontem a sessão caseira do serão foi com o “North by Northwest”. São estes filmes que a gente julga conhecer de cor e salteado os mais traiçoeiros (quando teria sido a última vez que o vi? 20 anos, talvez mais?). Bateu-me o primitivismo da organização do filme, que é a razão por que ele parece tão moderno: blocos de acção onde há sempre um problema específico a resolver, e um cenário que as personagens precisam de dominar para não serem engolidos por ele (e como, por exemplo, no burlesco keatoniano, é a relação física entre personagens e décor que está na origem de toda a acção, ou mais do que isso, de cada acção; no cinema contemporâneo de primeira linha, e é a razão porque acho bastante piada à série, só a dupla McQuarrie/Cruise segue este preceito, com razoável felicidade, nas “Missão Impossível”). “North by Northwest” são, por isso, e sem desprimor para o Monte Rushmore, as aventuras do homo hitchcockianus na paisagem da arquitectura moderna, ou modernista, do recém inaugurado edifício novaiorquino das Nações Unidas à casa do vilão James Mason, que Hitchcock queria que Frank Lloyd Wright desenhasse (mas quando o arquitecto pediu o equivalente a dez por cento do orçamento total do filme foram os set designers de Hitch a desarrincar uma mais do que convincente imitação de Wright). Estruturas, portanto, estruturas que são apenas a explicitação da “estrutura” que abafa as personagens (e que, narrativamente, é dínamo do filme, mais ou menos “mcguffin”). A rima indirecta mais forte é entre o plano “vertical” do topo do edifício das NU e o plano “horizontal” da estrada e da planície onde Cary Grant espera pelo contacto de George Kaplan (essa personagem que, sem existência real, é também ele pura “estrutura”); em ambos, a paisagem, urbana ou rural, se revela como uma espécie de quadriculado, e em ambos a figura humana é reduzida a pontinhos ínfimos dentro desse quadriculado. “North by Northwest” é como um pressentimento de um mundo a transformar-se em forma e em estrutura, onde se passa da primazia do indivíduo ao predomínio da “organização”, da legibilidade imediata à opacidade burocrática (e daí a importância da confusão de identidades Roger Thornhill/George Kaplan). Neste sentido, é o mais languiano, o mais “Metropolis” dos filmes de Hitchcock, nessa transferência para o espaço arquitectónico (quer dizer, organizado) da expressão de um ambiente social, político ou, liminarmente, pela omnipresença e pela omnisciência, policial, onde o indivíduo é roda da engrenagem e, para se desengrenar, tem que se transformar no grão de areia da engrenagem (e cobrir-se de “areia” é o que Grant tem que fazer na cena do avião, ou o que Grant e Eva Marie Saint têm que fazer na poeira rochosa do Mount Rushmore – como se, num mundo asséptico, a salvação estivesse na sujidade). Por isso, apenas um ano depois de “Vertigo”, este filme é a antitese do romantismo desse filme – mesmo a relação Grant/Eva Marie Saint é feita de fisicalidade, de contactos e de (uma sucessão de) contratos de onde estão ausentes quaisquer propriedades “fantasmáticas”, um amor “pragmático” de objectivos (como num contrato) bem definidos (e por isso a necessidade do plano final com o comboio a entrar no túnel: contrato selado).

Seriam precisos quinze anos para alguém pegar no testemunho deixado por este pressentimento da modernidade. Foi, e já do outro lado do pressentimento, num tempo em que a modernidade já era a água do aquário, Alan J. Pakula, nas suas ficções “paranóicas” da primeira metade dos anos 70, sobretudo “The Parallax View”, porventura o mais “North by Nortwest” de todos os filmes não chamados “North by Nortwest”.

Quanto a Hitchcock, passaria no ano seguinte, daquele buraco do plano final por onde entra o comboio ao buraco mais pequenino por onde entra o olhar de Norman Bates em “Psycho”.

LMO