sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Noises Off..., Peter Bogdanovich, 1992

 


Não temos os dados à mão para o afirmar taxativamente, mas é de crer que Texasville tenha sido um enorme “flop” (também) em Portugal. Depois dele – que em Portugal se estreou em 1991 – o único Bogdanovich visto em sala foi, já nos anos 2000, The Cat’s Meow*. Este hiato apressou a noção, entre nós, do “fim” de Bogdanovich, e da sua conversão em pau para toda a obra (televisiva), apenas pontualmente contrariada (no caso de The Cat’s Meow, justamente) pela oportunidade de rodar um filme minimamente pessoal. Essa desgraçada conversão não sucedeu, no entanto, logo a seguir a Texasville. E, bem pelo contrário, num ritmo que já não lhe era permitido desde os anos 70, Bogdanovich entrou em pleno vapor na década de 90: a Texasville sucederam-se Noises Off… (1992) e The Thing Called Love (1993). Depois, sim, terá sido, aparentemente, o “fim”. Mas em Portugal qualquer destes dois títulos seguiu directamente para o mercado vídeo sem passar pelas salas. Memória desses tempos – memórias de videoclube… - faz-nos lamentar especialmente a ausência neste ciclo de The Thing Called Love, de que guardamos óptima impressão (mas não se encontrou rasto de cópias disponíveis para circulação). Por outro lado, o confronto com a memória desses tempos torna mais agradável do que esperávamos o reencontro com Noises Off…. Não é que tenha “melhorado” (e foi um filme bastante atacado pela crítica americana do seu tempo), porque patenteia exactamente as mesmas virtudes e defeitos que eram visíveis em 1992. Mas talvez nos seja hoje mais fácil relevar as virtudes e esquecer os defeitos, e acima de tudo notar quão insólitas (ou quão solitárias: neste contexto as palavras tornam-se sinónimas) são algumas das suas características.

Noises Off… faz do teatro o seu centro. É uma adaptação de uma peça de Michael Frayn, uma farsa que já era, em si mesma, “meta-teatral”, e mostrava como o teatro se deixa atravessar pela vida; neste caso, pela vida de todos os envolvidos (encenador, actores, técnicos de bastidores), numa teia de relações pessoais conflituosas que se adensa a cada novo ensaio e a cada nova representação, progressivamente sabotando e desfigurando o curso inicialmente pensado. Não é claro o que é que a este mecanismo – um “desconstrutivismo lúdico”, por assim dizer – Bogdanovich acrescentou para além da sua própria descrição, que de resto parece impecável, a tal ponto que se pode dizer (no desconhecimento do texto original da peça de Frayn ou de alguma das suas representações) que o principal óbice do filme (uma certa sensação de inconsequência) é ele próprio “importado” da peça. Já parece mais claro é que, ao “teatro no teatro”, Bogdanovich se lembrou de acrescentar o cinema, e que o seu filme tenta intensificar o jogo de espelhos: não apenas “teatro no teatro” (ou “filme no filme”), mas sobretudo “filme no teatro” ou “teatro no filme”).

É por isso que, num filme ostensivamente “teatral”, a memória que mais ocorre não é a de teatro algum mas antes a da comédia cinematográfica americana clássica. É óbvio que Bogdanovich pensou sobretudo na “screwball comedy” (a velocidade vertiginosa a que tudo acontece, para além do tipo de quiproquós narrativos) e no burlesco (a comédia como uma questão de mecânica, de “timings”, de conflito permanente entre personagens, e entre personagens e décors e adereços). Pensou mesmo no “slapstick”, essa raiz primitiva de praticamente tudo o que entendemos por “comédia cinematográfica americana clássica”: ou não é aquele “segundo acto” de Noises Off… com a acção (mais uma representação da peça) vista do lado dos bastidores, onde toda a gente é forçada a manter silêncio, a última comédia muda americana, mais “silent movie” (e mais homenagem aos “silent movies”) do que o Silent Movie que Mel Brooks rodou nos anos 70? Bogdanovich não se limitou a fazer um filme sobre o teatro, mas aproveitou a peça de Frayn para conceber um exercício (até um pouco teórico) sobre o teatro como raiz de uma tradição cinematográfica.

Mesmo que seja fácil reconhecer-lhe uma certa frivolidade, o exercício é brilhantemente executado – a “coreografia” nunca falha, os tempos estão sempre certos, a “simulação do fracasso” é perfeita, e isto tudo vale por dizer que o domínio de Bogdanovich sobre a mise en scène (e sobre a “mise en scène da mise en scène”, e mesmo sobre a “mise en scène da ausência de mise en scène”, expressões que parecerão menos rebuscadas a quem tiver visto o filme) é total e absoluto. O que é que é levemente frustrante, então, quando a cortina desce pela última vez? Talvez o facto de esta lógica de decomposição, subjacente a todo o filme, não ser levada até ao seu corolário, e in extremis se volver em “recomposição”. Tudo está bem quando acaba bem. Mas e daí, o “happy end” é outra das mais antigas tradições hollywoodianas…

LMO

*o texto é de 2010. Mais de dez anos depois, estreou em Portugal She's Funny That Way.