quarta-feira, 21 de abril de 2021

Road to Nowhere (Monte Hellman, 2011)

 


Two Lane Blacktop, a obra-prima de Monte Hellman, um dos grandes filmes americanos dos anos 70, e o “road movie” que por si mesmo consagrou o género como uma metafísica da apatia, ou coisa parecida, terminava com a película a arder. A última coisa que se via era um fotograma incendiado, o filme a desfazer-se à nossa frente – como se fosse a única maneira de acabar com aquilo, porque “a estrada não tem fim” (como dizia o título português de Two Lane Blacktop) e assim sendo é uma estrada para lugar nenhum, uma “road to nowhere”.

Quase quarenta anos depois, e perante um filme chamado, justamente, Road to Nowhere, é inevitável pensar que Monte Hellman brinca aos encadeados: da película de Blacktop ao DVD que está no centro do primeiro plano deste filme (rodado já não em película mas em vídeo), um DVD onde o título do filme está escrito a caneta (como num vulgar DVD pirata) e que é posto a rodar num computador portátil. Primeiro sinal labiríntico. Depois, a câmara de Hellman mergulha em zoom sobre o ecran do portátil, até que as margens do enquadramento do filme e do filme no filme sejam coincidentes – e a partir desse momento o labirinto é mais do que um sinal, é o território, bifurcado, incerto, especular, sem saída, que Road to Nowhere habita até ao fim (e desta vez há um “fim”, embora tudo possa sempre voltar ao princípio: ao último plano do filme, podia suceder-se o primeiro, a rodela a ser inserida no leitor, e tudo a começar outra vez). As primeiras imagens do “filme no filme” (ou será, apenas, do “filme”) são um longo, longuíssimo, plano de uma rapariga sentada na cama, a usar um secador de cabelo. Na banda sonora, o ruído do secador coexiste com uma canção melancólica sobre “ajuda para passar a noite”. É uma introdução fabulosa por várias razões, também pelo facto de nos “introduzir” ao filme sem verdadeiramente avançar qualquer coisa de explícito sobre ele ou sobre a sua narrativa: apenas o poder, “hipnótico”, de prender o espectador ao écran com um mínimo de “signos”, desprovidos de qualquer contexto narrativo. Se Road to Nowhere acabasse no fim desse plano com o secador já tinha minutos que bastassem para que só tivéssemos vontade de bater palmas.

Depois, continuamos a ter vontade. Porque esses minutos, como um daqueles “sumários” ao género dos que Hitchcock gostava de fazer, condensam a matéria que Road to Nowhere tem para explorar: a componente reflexiva, de filme sobre o cinema, sobre o cinema como ele se faz e se vê hoje (os ecrans eletrónicos, os aparelhos de vídeo, etc) e sobre o cinema como ele sempre foi (coisa abissal, mergulho sobre o ecran, fascínio e perdições, espelhos e reflexos); e, não negligenciemos isto, uma infinita paciência para seguir, registar, deixar-se hipnotizar, pelos mais ínfimos e anódinos gestos da actriz principal, Shannyn Sossamon, ora luz ora sombra, quer dizer, actriz em “chiaroscuro” (o “casting”, o “casting” e o “casting” são as três tarefas mais importantes de um cineasta, diz o realizador do filme no filme, que se chama Mitchell Haven e tem, caso não se note, as mesmas iniciais que Monte Hellman). Nesse ponto, o filme e o filme no filme tocam-se: são ambos dominados pelo inexorável fascínio por uma mulher, dúplice e misteriosa.

Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico “monólito negro” na paisagem do cinema americano contemporâneo, Road to Nowhere só pode ser comparado com algum Lynch (o de Inland Empire, mas sem o sobrenatural e sem a psicanálise), na sua relação/reinvenção com uma mitologia hollywoodiana (e mais do que hollywoodiana: menciona-se por exemplo Samuel Fuller, o “maverick” por excelência, e até Bergman é explicitamente citado), e pelo seu lado vertiginosamente reflexivo e terminal (tudo acaba com um movimento de câmara a perder-se dentro dos contornos negros de um poster da protagonista), com o Cigarette Burns de John Carpenter. Ou seja, com os grandes filmes americanos sobre a cinefilia no século XXI, ainda mais imbuída de um “sentido do fim”, de um espírito “necrológico” , do que a cinefilia do século XX. Monte Hellman disse que era um filme que precisava de ser visto “mais do que duas vezes”: não necessariamente pela sua narrativa (tão complexa e, ao mesmo tempo, tão irrelevante como a do The Big Sleep de Hawks), mas porque a cada revisão descobre mais uma ala desta diabólica casa de espelhos, onde o “cinema” e a “vida” se reflectem e repetem “ad infinitum”.

LMO