sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

The Cat's Meow, Peter Bogdanovich, 2001

 


Há muito, muito tempo que não estreava em Portugal um filme de Peter Bogdanovich. A última vez que isso aconteceu foi com Texasville, que chegou a Portugal no princípio dos anos 90 e ficou como o mais belo filme que nessa década por cá se viu. Os filmes seguintes de Bogdanovich, Noises Off... e The Thing Called Love, não chegaram às salas portuguesas, ficaram-se pela edição videográfica. Depois, Bogdanovich passou o resto dos anos 90 sem filmar para cinema (limitou-se a uns quantos telefilmes), até que em 2001 surgiu o “come back” com este The Cat's Meow que agora, felizmente, se estreia.

Bogdanovich, que em finais da década de 60 e princípios da década de 70 foi uma espécie de “boy wonder” entre a geração dos “movie brats”, foi também aquele que, dessa geração, mais depressa ficou para trás. Em Hollywood Ending, o filme de Woody Allen que ainda está em cartaz, há logo ao princípio um “gag” cruel cuja “punchline” envolve Bogdanovich, realizador hoje em dia tão “queimado” quanto a personagem interpretada por Allen. Uma série de falhanços, uma ambição desmedida, e uma arrogância relativamente ostensiva (Bogdanovich era odiado por quase toda a gente da “nova Hollywood”, muito por causa das suas amizades “exclusivistas” com os velhos gigantes como Orson Welles e John Ford) – tudo junto funcionou como um “cocktail molotov” que pegou fogo à sua carreira. Foi uma pena, porque Peter Bogdanovich estava seguramente entre os mais talentosos realizadores da sua geração, além de que a sua cinefilia e profundo conhecimento do cinema clássico (era o mais cinéfilo e conhecedor deles todos) faziam com que o cinema de Bogdanovich funcionasse como o mais límpido traço de união entre a “velha” Hollywood e a “nova”, dos anos 70.

The Cat's Meow não é só o regresso de Bogdanovich ao cinema, é também o seu regresso, justamente, a uma temática cinéfila, ele que, até ao princípio dos anos 80, não deixou de filmar, evocar e refazer quer a memória da Hollywood clássica quer os seus géneros. Aqui, viaja até aos anos 20, para abordar um dos mais míticos e obscuros episódios daquela década – The Cat's Meow mergulha-nos em plena “Babilónia de Hollywood” esse ninho de intrigas e segredos de alcova que fizeram (e continuam a fazer, vem aí um terceiro tomo de “Hollywood Babylon”) as delícias de Kenneth Anger. O episódio em causa, sobre o qual rios de tinta especulativa correram nos últimos 70 e tal anos, é o do célebre fim de semana passado a bordo do barco de William Randolph Hearst, que culminou com a morte, em circunstâncias nunca cabalmente esclarecidas, do lendário Thomas H. Ince – o “rival” de David Wark Griffith na luta pelo título de mais decisivo realizador da Hollywood dos primórdios.

Pretexto para mera nostalgia cinéfila? Alguma haverá, sim, e não parece que haja nisso algum mal. Mas The Cat's Meow é acima de tudo uma “period piece” sobre os loucos anos 20 hollywoodianos, enformada por um sentido trágico que é a verdadeira razão de ser do filme: digamos que o que dissolve a nostalgia é o facto de Bogdanovich filmar menos um episódio revelador do fim de uma hipotética inocência primordial de Hollywood do que um conto terrivelmente amoral que nega a hipótese de Hollywood alguma vez ter tido esse tipo de inocência. O barco onde se desenrola o permanente carrossel que é aquele fim de semana tem óbvias propriedades metafóricas: tanto sintetiza “toda a Hollywood” como a retrata enquanto mundo à parte, regido por leis e motivações obscuras. A lei da selva, ou a lei do mais forte – William Randolph Hearst, ironicamente, é “promovido” por Bogdanovich à condição de maior “metteur en scène” da Hollywood clássica.

Todos são prisioneiros da lógica de Hollywood, que é um bocadinho a suspensão de todas as lógicas, ou, como conta uma personagem, todos são vítimas da “maldição de Hollywood”, que é como quem diz da mais completa transfiguração moral. Nesse sentido, curiosamente, o filme que The Cat's Meow mais parece evocar é o Fedora de Billy Wilder – a voz “off” da personagem de Joanna Lumley, no fim, torna quase explícita a associação daquele fim de semana e daquela gente à atmosfera letal de uma “skeleton dance”. É por isso também que, apesar da agilidade narrativa de Bogdanovich (que conta a intriga no ritmo e no estilo de uma “short story” de mistério), se vai progressivamente desprendendo uma espécie de “gravidade” que puxa sempre as personagens para baixo (veja-se o subtil tratamento dos espaços do navio), e que faz sempre preceder o mito da humanidade que lhe dá origem. Característica aliás, particularmente visível no tratamento da figura de Charles Chaplin (um magnífico e surpreendente Eddie Izzard), personagem pesada, obsessiva, quase doentia, em todo o caso bastante diferente do retrato que Richard Attenborough (e Robert Downey Jr.) dele propuseram em Chaplin. Tem que ser assim, o olhar de Bogdanovich tem que ser dessacralizador, o que ele filma é uma corrida desenfreada rumo ao vazio – porque, como explica uma personagem, se pararem de correr descobrem que já lá chegaram, ao vazio. E esse infernal “merry go round” é, no fundo, o grande tema de The Cat's Meow.

LMO