sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Matewan



Matewan foi um dos primeiros pontos altos na carreira de John Sayles como realizador de cinema. Oriundo das “oficinas” de Roger Corman, estivera ligado (como argumentista) a alguns filmes muito célebres de Joe Dante (com quem voltaria a colaborar), como Piranha ou The Howling (e pelo menos neste último título, a sua marca é tão importante como a de Dante). Matewan, a quarta longa-metragem que Sayles realizou, foi julgado suficientemente importante para constar da cerimónia dos oscars desse ano, através da nomeação (justíssima) para o prémio de melhor fotografia (a cargo do veterano Haskell Wexler). Nesses termos, foi de facto o primeiro filme “importante” de Sayles, que até então tinha dirigido algumas séries B (muito na linha de Corman) e apenas um filme de “série A”, Baby It’s You, uma comédia romântica com Rosanna Arquette, primeira (e quase única) experiência do cineasta com um grande estúdio hollywoodiano.

Foi, podemos dizê-lo, o momento em que se tornou plenamente evidente a dimensão política dos filmes de Sayles, característica que daí para a frente poucas vezes largou o seu cinema (um dos seus últimos filmes, Silver City, que em Portugal saiu directamente para DVD sem passar pelas salas, é uma brilhante sátira aos “anos Bush”). Centra-se num episódio sucedido em 1920 e passado à história como o “massacre de Matewan”, momento emblemático das lutas sociais nos Estados Unidos (neste caso, da luta pelos direitos dos trabalhadores, e especificamente, pelo direito dos mineiros de Matewan, pequena cidade da Virgínia, à sindicalização). Acabou tudo num banho de sangue, quando os mineiros e a comunidade local, com a cabeça em água, receberam à carabina o grupo de “detectives” (hoje, chamar-lhes-íamos uma espécie de segurança privada) com que a “companhia” proprietária de quase tudo o que havia em Matewan (das minas às casas dos mineiros) pretendia resolver o assunto – “the hard way”, como diz um deles – e remeter os mineiros às boas maneiras (comer e calar) que as ideias “socialistas” importadas da Europa tinham posto em causa. Depois do “massacre”, e como a narração “off” diz no final do filme, a “companhia” ainda encontrou uma forma de conseguir uma pequena vingança, mas é significativo que Sayles deixe esse detalhe para um posfácio não-visto, porque assim Matewan fica o contrário de um choradinho (como demasiadas vezes acontece em filmes de temática semelhante), que em vez de mostrar os trabalhadores como “vítimas” narra, sem paternalismo algum, o momento em que eles reagem – com ferro e com fogo, é caso para dizê-lo – contra as opressões e as injustiças.

Parece que Sayles, que escreveu o argumento sozinho, tomou algumas liberdades históricas, e em vez de escolher entre a “lenda” e o “facto” resolveu ficar com o melhor das duas coisas. A “lenda” e o “facto”: Sayles não é o mais fordiano dos cineastas, mas Matewan, e isto não pode deixar de ser um elogio, exala uma “justeza”, um sentido de decência elementar, na descrição da comunidade e das relações entre os seus membros (e das relações entre os seus membros e os “ogres” enviados pela empresa: a dupla Hickey/Griggsy é um bocado como Liberty Valance e os seus capangas), que torna pertinente a lembrança de Ford. E já agora, quão estoicamente fordiana é a sequência em que o jovem pregador (Will Oldham, futuro Bonnie Prince Billy, um dos grandes “songwriters” americanos da actualidade) se serve de uma parábola bíblica para, durante uma cerimónia, avisar os seus camaradas da injustiça que estão prestes a cometer. A galeria de personagens, de resto, é fenomenal – o sindicalista “red” de Chris Cooper, o esquivo, mas tão corajoso, polícia de David Strathairn, a silenciosa Mary McDonnell, a infeliz Bridy Mae de Nancy Mette… E todos os secundários, incluindo os grupos de negros e italianos (que a “companhia” trazia para as minas para baixar os salários a toda a gente), que o filme trata como “nuvens” sem ao mesmo tempo impedir que eles se individualizem e se humanizem (e algum humor, um pouco… fordiano, na maneira como o filme trata as tensões entre os brancos, os negros e os italianos).


São imensas personagens importantes, de facto, e esse é um elemento tipicamente “saylesiano”: quem é o “protagonista” de Matewan? Cooper, Oldham (a quem, percebemos claramente no final, pertence a voz da narração “off”), Strathairn, McDonnell?... Ou é o “grupo”, a comunidade, em todas as suas harmonias e contradições? Dominando plenamente, como é seu hábito e traço distintivo, a montagem paralela, Sayles constrói o filme numa particularíssima gestão do tempo narrativo, sempre em “atraso”, sempre preferindo a “simultaneidade” da acção à sua ostensiva “progressão” – como outros filmes de Sayles, ou escritos por ele (o The Howling de Dante também é assim), em Matewan parece que se avança mais para os lados do que para a frente. Mas também é isso que torna tão poderosa – como uma descarga de energia acumulada, que apanha o espectador no seu próprio desejo de maniqueísmo – a cena do “shoot-out” final.

LMO