quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Love With the Proper Stranger



O reencontro com um filme tão belo – entre ele e Baby the Rain Must Fall le coeur balance - como Love with the Proper Stranger não pode senão confirmar a especificidade e a delicadeza de Mulligan, e a que ponto a segunda (a delicadeza) decidia grande parte da primeira (a especificidade). Em absoluto, mas também em termos relativos, quando se trata de devolver Mulligan ao seu tempo (e a este tempo, os “early sixties” do cinema americano) e de o integrar no grupo de realizadores a que ele é normalmente associado (a chamada “geração da televisão”).

Se o “realismo” e a “rua” eram tendências cada vez mais vincadas no cinema americano dos anos 60, esta história nova-iorquina concilia-as (e tudo o que vem por acréscimo, em particular a matéria “social”) com uma justeza de tom que faz a ponte com as melhores tradições clássicas do melodrama e da love story – não é um acaso que o título do filme seja partilhado com uma canção de Johnny Mercer, e que dela seja extraída a expressão (“bells and banjoes”) que terá uma importância literal no desenlace (inesperado, divertido e comovente, tudo ao mesmo tempo), já depois de ter tido uma importância metafórica: “sinos e banjos” como arquétipo, ou estereotipo, de uma visão romântica do amor, importada do imaginário cinematográfico e musical. A canção de Mercer é, passe a expressão, uma “meta-lovesong”, uma “canção de amor sobre as canções de amor”, parecida com as que Stephin Merritt hoje compõe. E  o filme embebe-se do seu espírito, e da sua distância ao mesmo tempo desconfiada e comovida: Love with the Proper Stranger está sempre em zigue-zague, girando entre o cepticismo de quem não acredita nos “sinos e banjos” e a suspeita de que, como as bruxas, “los haya” – e de facto, eles aparecem, mesmo que para isso McQueen tenha tido que os enfiar pelos olhos (e ouvidos) de Natalie Wood adentro, naquela fabulosa sequência final que não nos deixa perceber se nos apetece mais rir ou se nos apetece mais chorar.

É certo, mas isso só mostra a subtileza de Mulligan, que tudo isto (os “sinos e os banjos”, justamente) só distrai a atenção sobre aquele que era suposto ser o “tema” do seu filme: o aborto. E claro, da mensagem inerente, timidamente “liberal”: o aborto deve ser uma escolha possível, sim, mas é melhor não a escolher, fazer um esforço para arranjar as coisas de outra maneira. A única hipótese de este subtexto medianamente moralizante ser contrariado era, justamente, tornar a “outra maneira” suficientemente difícil, mas também suficientemente verdadeira, para transformar a questão do aborto num mero detalhe narrativo. Coisa perfeitamente conseguida. Mas a este respeito, nada como citar as belíssimas palavras de Michel Mardore nos Cahiers, já depois de ter aproximado o filme de Mulligan do espírito do jovem cinema francês (algo que, como ele explica, não era “un mince hommage”): “Jamais cette lutte du mensonge et de l’amour (y compris la tendresse de l’auteur pour ses personnages) ne se relâche. Il faudrait citer en détáil les scènes (…) pour comprende comment un prêchi-prêcha se transforme, avec mille et une mines de rien, en une planche d’écorché vif, ou l’approche des larmes fait trembler le sourire de la cocasserie et du courage”.

Haveria de facto muitas cenas “qu’il faudrait citer en détail”: o primeiro encontro entre Wood e McQueen, onde ela já traz tanta coisa, e tão contraditória, no olhar; a maneira como, pelas cambiantes desse mesmíssimo olhar, percebemos que é na verdade dum reencontro que se trata, e que antes houve uma noite que ela não consegue esquecer e de que ele não se consegue lembrar; as personagens secundárias, de Edie Adams (a “Bárbara de Sevilha”, divertida “rima” para o apelido, Rossini, da família de Natalie) ao pretendente de Natalie Wood, esse solitário tão cruelmente varrido do filme, passando pela família italiana dela; a violência, crua e nua, física e moral, da cena na casa de abortos clandestinos; os jogos de sedução entre McQueen e Wood, mais o décor da loja de animais do Macy’s; o jantar que Wood, enfim “mulherzinha independente”, oferece a McQueen, com os beijos no sofá e o discurso decisivo (dela) sobre os “sinos e os banjos”; e no fim, obviamente, os sinos e os banjos (sem aspas, porque literais).


Mas preferimos dedicar as últimas linhas às duas verdades mais evidentes de Love with the Proper Stranger. Que McQueen, com os seus modos de boxeur abandonado, nunca foi tão comovente nem tão frágil. E que Natalie Wood (que foi filmada pelos melhores, Ford e Ray à cabeça) nunca esteve simultaneamente tão bonita e tão “real” – como diria Mardore, “ce n’est pas lá un mince hommage qui est rendu à Robert Mulligan”.