quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Cinema tem espinhas - conversa com Aki Kaurismaki



Aki Kaurismaki, finlandês, cinquenta anos, já tem uma costela portuguesa. Há muitos anos que passa cá o Inverno, numa casa no Minho. Chega por volta de Setembro ou de Outubro, e volta para a Finlândia no princípio da Primavera. Duas coisas denunciam imediatamente essa costela: um muito razoável domínio da língua portuguesa, embora para a entrevista propriamente dita prefira conversar em inglês; e, sobretudo, um emblemazinho do Futebol Clube do Porto ostentado na lapela. Uma vez, há cerca de dois anos, iniciou a apresentação de um filme seu na Cinemateca perguntando quantos portistas havia na sala – a sua filiação clubística portuguesa é algo que ele leva a sério. Os assuntos desportivos irromperam diversas vezes durante a conversa que mantivemos com ele a propósito da estreia do seu mais recente filme, “Luzes no Crepúsculo”: Kaurismaki é um conversador inteligente e divertido, lacónico e caótico, e apreciador da cumplicidade.

É pelo desporto, aliás, que Kaurismaki resolve um eventual problema de identidade. “Fui ao estádio ver o Finlândia-Portugal em Helsínquia [jogo de qualificação para o campeonato da Europa de futebol]. Tinha numa mão uma bandeira da Finlândia e na outra uma de Portugal. Mas quando o jogo começou o sangue falou mais alto e comecei a torcer pela Finlândia. Acho que no Dragão [o Portugal-Finlândia de quarta-feira, de que o leitor já saberá o resultado] vai acontecer o mesmo”. Conversa puxa conversa, mas não necessariamente em sequência, outro assunto desportivo caro a Kaurismaki e aos finlandeses em geral, o automobilismo, ainda veio à baila. “Era estúpido tirarem-lhe o título [a Kimi Raikkonen, finlandês campeão do mundo de fórmula 1 em 2007, cujo título ficou durante algumas semanas pendente da investigação dum imbróglio técnico-legal] por causa daquilo, não era?”. (Julgámos ver-lhe um olhar reconfortado quando concordámos com ele). “Por que é que somos tão bons nos automóveis? Porque somos estúpidos: sabemos que está ali o pedal do travão mas preferimos ignorá-lo”.

Mas não era para falar de futebol e de fórmula 1 que ali estávamos. O assunto era “Luzes no Crepúsculo”, terceiro tomo de uma trilogia iniciada em “Nuvens Passageiras” e depois continuada em “O Homem sem Passado”. Ou, como Kaurismaki, prefere chamar-lhe, “a sexta parte de duas trilogias”. Uma para os anos 80, terminada com um dos seus filmes mais célebres, “A Rapariga da Fábrica de Fósforos” (1990), outra para os anos 90 entrando pelo século XXI. São filmes, e trilogias, sobre os deserdados do “sonho finlandês”, sobre aqueles que ficaram esquecidos pelo chamado milagre económico finlandês que teve a Nokia por ponta de lança. Personagens extraídas àquilo a que antigamente se chamava a “classe operária” ou o “proletariado”. Diz Aki: “Já ninguém lhes chama assim, mas eles ainda ‘operam’, não se tornaram capitalistas”. E têm, aparentemente, cada vez menos espaço – em “Nuvens Passageiras” as personagens abriam um restaurante bem sucedido, em “O Homem sem Passado” o protagonista refazia a vida depois de uma crise de amnésia, mas a personagem principal de “Luzes no Crepúsculo” está sempre a bater contra a parede, nada lhe corre bem e acaba num ermo. “É minha ideia acabar as trilogias assim, com filmes rápidos, bruscos e tristes, praticamente sem humor nenhum”. Ao contrário de “O Homem Sem Passado” (que era uma “comédia”, embora se possa pensar que no cinema de Kaurismaki a diferença entre uma comédia e um drama depende de pormenores minimais), “Luzes no Crepúsculo” é trágico e pessimista como um conto russo. Na primeira cena, o protagonista ouve a conversa de três tipos que descem a rua a conversar sobre escritores russos, como se decidissem qual deles o mais desesperado – e fixam-se em Pushkin que (dizem eles) “mal nasceu já estava morto”. É um aviso, um anúncio, para a personagem e para os espectadores? “Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia. Escreva que sim. É um aviso”.

Mas o espaço, o urbanismo e a arquitectura imaculadamente modernas, brilhantes e envidraçadas de Helsínquia, algures entre o “Alphaville” de Godard e o “Playtime” de Tati – este espaço também é um protagonista do filme. “A minha ideia era que a personagem fosse sendo sacudida e cuspida, rejeitada pelo cenário. Já não há lugares em Helsínquia. A única hipótese é o campo, mas mesmo ele já foi estragado. Vocês têm sorte, aqui em Portugal ainda há alguns lugares”. Nos filmes anteriores, Kaurismaki encontrava e filmava uma espécie de “traseiras” desta nova Helsínquia, havia um refúgio para as personagens. Em “Luzes do Crepúsculo” o monstro urbano engole-as. “Helsínquia tornou-se uma cidade feia, mas feia num sentido mesquinho [‘in a small way’]. Quanto maior, mais provinciana. Não me incomodam os lugares feios, aliás gosto de lugares feios. Mas aborrecem-me os lugares feios e chatos. E filmei na parte mais chata de Helsínquia. Até fui supreendido, porque escrevi o filme aqui em Portugal, e quando fui para Helsínquia essa parte da cidade tinha-se tornado ainda mais chata do que o que era. Acho que quem vê o filme percebe que há melhores cidades para se ir passar férias”. O pessimismo de “Luzes no Crepúsculo” é reforçado pelo facto de Kaurismaki não conceder à sua personagem a bênção de partir para outro lugar no fim do filme. “Este estava demasiado ferido, demasiado espancado. Mas dei-lhe o amor, isso não basta?” Kaurismaki está-se a referir ao último plano do filme, muito bonito e muito curto – as mãos dadas do protagonista e da rapariga que não o abandona (e é um plano curtíssimo, dos mais curtos planos finais que já vimos – “filmei em Junho e só havia vinte minutos de escuridão em Helsínquia”, diz Aki, “não volto a filmar em Helsínquia no Verão, a menos, claro, que queira o Verão”). O realizador pensou mesmo matar a personagem (“penso sempre em matar as personagens, mas depois comovo-me e não consigo”), e filmou dois finais, com morte e sem morte, e para a última sequência acabou por usar material de ambos. Em todo o caso, o pessimismo nem permite a provocação – como em “Sombras no Paraíso” (“o meu filme mais optimista de sempre”), que terminava com os protagonistas a apanharem um “ferry” para a Estónia (então, anos 80, parte da URSS). “Era uma maneira de dizer que tudo era melhor do que ficar na Finlândia. E era uma citação de um filme finlandês dos anos 50, que acabava com as personagens num ‘ferry’ para a Suécia. Nessa altura muitos finlandeses emigravam para a Suécia”.

Mas esta Finlândia existe mesmo, ou corremos o risco de a confundir com aquilo a que Peter von Bagh (ex-director da cinemateca finlandesa, crítico, historiador e enciclopedista) chamou uma vez a “Kaurismakilândia”, espécie de manto lançado por Aki sobre o país e os seus lugares, mas não necessariamente coincidente? “Não sei dizer. Estou demasiado dentro. É como quando as pessoas me perguntam se o meu humor é finlandês. Respondo que deve ser finlandês, visto que eu próprio sou finlandês”. O que não o impede de falar do seu país como de um marasmo letal. “Nós nem temos nada a que nos opor, politicamente. É uma coisa que faz muita falta. Mas até os nossos políticos são desesperantemente honestos. Não roubam, não são corruptos. Quer dizer, roubam, mas dentro da legalidade”. Esse marasmo ajuda a perceber histórias como a do miúdo que há poucas semanas disparou indiscriminadamente sobre colegas e professores do seu liceu? “É uma história muito triste. Mas acho normal. Se queremos importar a cultura americana temos que importar tudo. Não podemos importar só o lado bom”.

Aki não faz, de resto, muita fé na juventude. Perguntamos-lhe pela sala de cinema que detém, em sociedade com o seu irmão Mika (igualmente cineasta), em Helsínquia. Durante anos tentou manter uma programação alternativa. Mas sem viabilidade comercial. “É impossível. A sala está aberta, mas quase só para festivais e coisas do género. Há uns tempos exibimos um programa duplo de Jean Vigo, com ‘Zero de Conduite’ e ‘L’Atalante’, mas não dá. Aparecem alguns, mas não em número suficiente. É mais fácil comer um hamburger. O cinema tem espinhas, é complicado”. Por falar em coisas fáceis de mastigar, lembramos Aki de que uma das mais bizarras ocorrências no cinema mundial dos últimos anos foi o ouvir o seu nome ser pronunciado em plena cerimónia dos óscares, quando “O Homem sem Passado” foi nomeado para melhor filme em língua estrangeira. Kaurismaki põe um ar envergonhado: “Não pude evitar. O filme tinha uma participação da Finnish Film Foundation, que é um organismo estatal e para eles era importante, hoje toda a gente vive obcecada com os óscares. Eu nem fui lá, não quero saber daquilo para nada”. Kaurismaki tem uma ideia muito precisa sobre o que não gosta na Hollywood contemporânea. “Nos anos 40, as estrelas eram adultos, hoje são crianças grandes. Quando se pensa que, por exemplo, James Stewart esteve na II Guerra Mundial, a pilotar bombardeiros sobre a Alemanha…”. De facto, é totalmente irrealista imaginar Brad Pitt a ir para o Iraque e a voltar com o cabelo grisalho – realmente grisalho, como o Stewart de depois da guerra, não a patética “make up” de “Babel”. “Brad Pitt, pfff… James Stewart comia ‘starlets’ como ele ao pequeno almoço”.


Lee Marvin, esse sim, era um homem. Kaurismaki rebusca a carteira, à procura do cartão de membro dos “Filhos de Lee Marvin”, sociedade secreta (“ninguém sabe ao certo quantos membros tem”) de que primeiro se ouviu falar há uns vinte anos, anunciada por Jim Jarmusch (Nick Cave, Tom Waits, John Lurie, são supostamente outros membros, mas nada disto é certo, para além de ser secreto). Mas não encontra o cartão: “aposto que o Peter von Bagh mo roubou, porque foi a última pessoa a quem o mostrei”. Terá que ficar para a próxima. Provavelmente numa altura em que “já teremos vendido o Quaresma e o Lucho – os presidentes dos clubes de futebol deviam ser todos despedidos”.

LMO (em 2007; como o tempo passa)