terça-feira, 11 de novembro de 2014

Blind Date



Blind Date pode ser um filme “tardio” de Blake Edwards, mas o que ele propõe é uma espécie de retorno aos fundamentos do burlesco cinematográfico, por um lado, e aos fundamentos da comédia “edwardsiana”. Que é como quem diz, a duas palavras: “disrupção” e “destruição”. Como The Party, mais que provavelmente o supra-sumo da obra de Blake Edwards, muito bem mostrou, para o cineasta os bons cenários e adereços são os cenários e aos adereços que se podem partir, subverter, destruir. Uma boa maneira de ver Blind Date é ir contando mentalmente a quantidade de “props” que são destruídas – dos bolsos dos casacos (sequência do jantar com o empresário japonês) a portas e vidros de automóveis. Tudo é para partir, literalmente, até a cama de Kim Basinger, na cena em que Bruce Willis a reencontra depois da noite demolidora (em todos os sentidos) que passaram juntos: e é justamente por não haver nenhuma razão dramática para que os pés da cama se partam, deixando-a inclinada, que a cena é genial – porque isso permite a Blake Edwards filmar Kim Basinger a escorregar colchão abaixo e colchão acima, e esse deslizamento constante torna-se o núcleo da cena, muito mais do que o diálogo mantido pelas personagens (pouco depois de ver o filme já ninguém se lembra do que é que eles disseram, mas toda a gente conserva na memória a imagem de Basinger a debater-se com a inclinação do seu colchão).

E a “disrupção”, a perturbação, o grão de areia que vem catalisar e promover a desordem, mesmo quando não é o seu agente directo. A personagem de Basinger, nesse sentido, é perfeitamente edwardsiana, conjunção do Inspector Clouseau e do Hrundi V. Bakshi (a personagem de Peter Sellers em The Party) num corpo feminino. É ela, com a sua fraca tolerância ao álcool, que lança o caos na vida do pobre Willis e de todos os outros com quem se cruza – antes de, na sequência final, quando é a vez dela ser a “pobre” Basinger, forçada a um casamento que não deseja, ser resgatada por Willis exactamente através das mesmas armas: o caos e a confusão instalados no que devia ser uma mera formalidade (a cerimónia nupcial). Estamos, portanto, num território de subversão total, um território físico e social que só existe enquanto domínio pronto a ser subvertido – este é todo o princípio subjacente a Blind Date, o que mostra bem como, em 1987, Blake Edwards continuava a ser Blake Edwards.

Para mais, com as ressonâncias sociais muito concretas que lhe advém da época em que foi feito, aqueles anos 80 que foram, na América, a década “yuppie”. Blind Date partilha ligações muito concretas com outros filmes desses anos, que também jogaram aquele pragmatismo, muito cinzento e muito certinho, duma personagem “yuppie”, contra o poder desregulador de outra personagem, normalmente feminina (um parentesco evidente de Blind Date é o Something Wild, de Jonathan Demme, quase contemporâneo; outro podia ser o After Hours de Scorsese, realizado um par de anos antes).

Subversão, ainda, no muito pouco politicamente correcto (já naquela altura, hoje mais ainda) papel do álcool nesta história. Blake Edwards (no primeiro Pink Panther), já tinha feito o maior “gag” da história com champanhe e garrafas de champanhe. Aqui o champanhe, mola para o descontrolo de Basinger, tem outra um vez papel primordial, e e toda a primeira parte de Blind Date é pura “comédia alcóolica” encenada sem qualquer moralismo ou advertência. Ironia, ainda mais se pensarmos que, nos anos 60, em Days of Wine and Roses, Edwards abordara o álcool e o alcoolismo de maneira série e, evidentemente, muito mais dramática.


Claro que, perante tantos e tão grandes exemplos do superlativo talento de Blake Edwards, dizer que Blind Date, filme um tanto “lasso” e com vários momentos bastante indiferentes, emparelha com o melhor da obra do realizador seria um pouco exagerado. Mas os momentos perante os quais a indiferença é impossível valem bem o resto: cenas ou sequências como as do primeiro encontro Willis / Basinger, com as luzes a apagadas a retardarem a revelação do rosto dela, as do caótico jantar com o japonês ou a da noite que precede o casamento não deixam dúvidas: sim, Blind Date é um filme do mesmo cineasta de Pink Panther ou The Party, e a mão dele está aqui inteirinha. No final dos anos 80 já não se fazia muito disto.

LMO