terça-feira, 25 de novembro de 2014

Le Horla



Sonho com um "double bill" composto por The Thing, o filme de John Carpenter sobre um “inominável” (a “coisa”) e sobre os modos da sua impossível apreensão e revelação, e por Le Horla. Também no centro do filme de Jean-Daniel Pollet encontramos a “coisa”, a “coisa invisível”, não por acaso com origem literária na mais delirante escrita “fantástica” (não importa quão opiácea) de Guy de Maupassant. Em Le Horla, filme com apenas uma personagem, construído à base de "flash-backs" e "flash-forwards" (que aqui são acima de tudo uma maneira de saltar por cima do tempo, de o anular, de o tornar, por sua vez, “invisível”), onde praticamente não há "acção" mas apenas relato narrado para um gravador (ou ouvido a partir dele), a "coisa invisível" está destinada a permanecer enquanto tal: como no conto de Maupassant, a sua monstruosidade é, sem chegar a ser uma metáfora, uma figuração ou prefiguração da morte, o elemento imaginário (mas singularmente desprovido de imagem possível) que vem introduzir a angústia de uma extinção iminente. Num belo texto sobre o filme, Serge Daney escreveu que Pollet "filma entre a condenação e a morte: tudo é sobressalto, agonia próxima, última palavra antes do silêncio". Ainda segundo Daney, "para Pollet, cineasta do inexorável, fazer um filme consistiria em ganhar um pouco de tempo, em retardar um desfecho", sabendo sempre que a morte acabará por chegar e por se impor. Nestas palavras se resume admiravelmente a “dramaturgia” de Le Horla. Laurent Terzieff é o único, ou o último homem no mundo, entre recordações (a casa, e as cores, tão vivas, fortíssimos apelos aos sentidos, assim se constituindo em fortíssimos reflexos do que “ainda está vivo”) e ruínas (o magistral aproveitamento daqueles “bunkers” que os alemães construíram nas costas do Norte de França durante a II Guerra, sinal de uma presença humana que, no filme, é em si mesma um indício de exterminação). O que, no conto de Maupassant, era alucinação, produto de uma mente alterada, no filme de Pollet adquire uma substância muito mais concreta (dir-se-ia “objectivada”, em oposição à subjectiva primeira pessoa do Horla de Maupassant). Não há nenhuma razão para acreditar que Terzieff delire, nenhum juízo sobre a sua sanidade – porque o filme, mostrando-nos o mundo vazio, o mundo “que fica”, inevitavelmente a confirma. O gravador no barco amarelo (plano repetido, e porventura o plano decisivo) contém o registo da agitação e da resistência da personagem, um registo que de certa maneira é o próprio filme. O cinema, a fotografia, o som gravado, as “artes técnicas”: vã ilusão de uma permanência, visto que não há ninguém à vista para o receber em legado.