segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Casa de Lava



Everything good dies here, even the stars

Quando Casa de Lava estreou em 1995, ninguém, nem mesmo os que imediatamente o reconheceram como um título capital, podia imaginar o rasto – o rastilho – que este filme deixaria na obra de Pedro Costa. Esse rastilho ainda não deixou de arder, como sabe quem tem acompanhado essa obra, e como pôde confirmar quem já tiver visto o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro. Mas em 1995 era inimaginável a consequência que Casa de Lava teria, ou a descendência: num certo sentido que não é preciso rebuscar muito, quase o que tudo o que Costa fez entre Ossos e Cavalo Dinheiro é um “filho” deste filme.

Rebuscando um bocadinho mais, aqueles planos do vulcão em erupção, o fogo na Ilha do Fogo, que abrem Casa de Lava (e que são extraídos a Erupção da Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro), têm hoje um duplo sentido: não anunciam apenas a natureza de um território específico, a ilha caboverdeana onde o essencial do filme decorre, anunciam também essa “lava” que Pedro Costa ainda não deixou de trabalhar. O espectador que nunca tenha visto Casa de Lava, mas conheça a obra posterior do realizador, não deixará de se espantar com a quantidade de coisas – por exemplo a carta dos “cem mil cigarros” – que aqui se prefiguram ou que depois serão liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes.

É um filme que “corta”, evidentemente, assim como o som dos violinos (o primeiro som do filme) vem cortar o silêncio que nos primeiros instantes acompanhara as imagens do vulcão. Pedro Costa referiu, ao longo dos anos e por várias vezes, a que ponto Casa de Lava representou uma tentativa de “fuga” ao cinema, às suas convenções de produção e de narração, e até em termos de fuga a um imaginário, estritamente português e interiormente português, que ainda era o de O Sangue, a sua belíssima primeira-obra. Por acaso ou não, se esse desejo de “fuga” está estampado em Casa de Lava, também está o seu reverso, a “atracção”. Todo o filme, mesmo narrativamente, vive desta tensão inexorável – a história de Inês Medeiros, a história de Edith Scob, a história de Isaach de Bankolé, a história de todos aqueles que sonham em partir e vir viver para Sacavém. Mais que um vulcão, é de um campo magnético que se trata, da “descrição de uma ilha” como um implacável centro de gravidade – tão implacável que, no princípio da história, começa por “chamar” Leão do alto de um andaime. Mas implacável também nessa relação com o cinema, a que volta sempre: se Pedro Costa começou pelo desejo, mais ou menos “lato”, de fazer um “remake” de I Walked With a Zombie (de que ficou, mais do que um “remake” da narrativa, a evocação de um ambiente, a evocação de uma “ilha dos mortos” como a que o filme de Tourneur também citava, um sítio onde “tudo é que é bom morre, até as estrelas”), da sua matéria constam ainda alguns outros encontros, ou algumas outras atracções: é, por exemplo, a presença de Edith Scob na mais “exógena” das personagens de Casa de Lava, que foi os “olhos sem rosto” de Franju e que aqui é, não só mas também, uma máscara, ou toda a sequência com Inês de Medeiros pela encosta do vulcão acima, sequência que é também uma espécie de “remake”, ou de evocação colorida (“rouge et noir”, vermelho contra preto) do final do Stromboli de Rossellini, outra filme de uma ilha como campo magnético e possessivo.

Diríamos que este movimento, ou esta colisão entre movimentos, está presente também no filme no modo como ele se relaciona com uma “verdade” histórica e social. Ficar com ela – com o passado português, o Tarrafal e a “morte lenta”, com o presente das grandes cidades portuguesas, essa Sacavém que depois Costa viria a encontrar no Bairro das Fontaínhas – ou abandoná-la, e partir rumo a um domínio de “fantasmas”. Também sobre isto gira Casa de Lava, e talvez seja mesmo o seu essencial: um encontro entre a “terra queimada” e os espíritos que dela brotam. No seu mais feliz, o encontro consubstancia-se na música, e nas maravilhosamente escuras cenas com as “mornas”.

LMO