Matewan foi um dos primeiros pontos altos na carreira de John
Sayles como realizador de cinema. Oriundo das “oficinas” de Roger Corman,
estivera ligado (como argumentista) a alguns filmes muito célebres de Joe Dante
(com quem voltaria a colaborar), como Piranha
ou The Howling (e pelo menos neste
último título, a sua marca é tão importante como a de Dante). Matewan, a quarta longa-metragem que
Sayles realizou, foi julgado suficientemente importante para constar da
cerimónia dos oscars desse ano, através da nomeação (justíssima) para o prémio
de melhor fotografia (a cargo do veterano Haskell Wexler). Nesses termos, foi
de facto o primeiro filme “importante” de Sayles, que até então tinha dirigido
algumas séries B (muito na linha de Corman) e apenas um filme de “série A”, Baby It’s You, uma comédia romântica
com Rosanna Arquette, primeira (e quase única) experiência do cineasta com um
grande estúdio hollywoodiano.
Foi, podemos dizê-lo, o momento
em que se tornou plenamente evidente a dimensão política dos filmes de Sayles,
característica que daí para a frente poucas vezes largou o seu cinema (um dos
seus últimos filmes, Silver City,
que em Portugal saiu directamente para DVD sem passar pelas salas, é uma
brilhante sátira aos “anos Bush”). Centra-se num episódio sucedido em 1920 e
passado à história como o “massacre de Matewan”, momento emblemático das lutas
sociais nos Estados Unidos (neste caso, da luta pelos direitos dos
trabalhadores, e especificamente, pelo direito dos mineiros de Matewan, pequena
cidade da Virgínia, à sindicalização). Acabou tudo num banho de sangue, quando
os mineiros e a comunidade local, com a cabeça em água, receberam à carabina o
grupo de “detectives” (hoje, chamar-lhes-íamos uma espécie de segurança
privada) com que a “companhia” proprietária de quase tudo o que havia em
Matewan (das minas às casas dos mineiros) pretendia resolver o assunto – “the
hard way”, como diz um deles – e remeter os mineiros às boas maneiras (comer e
calar) que as ideias “socialistas” importadas da Europa tinham posto em causa.
Depois do “massacre”, e como a narração “off” diz no final do filme, a
“companhia” ainda encontrou uma forma de conseguir uma pequena vingança, mas é
significativo que Sayles deixe esse detalhe para um posfácio não-visto, porque
assim Matewan fica o contrário de um
choradinho (como demasiadas vezes acontece em filmes de temática semelhante),
que em vez de mostrar os trabalhadores como “vítimas” narra, sem paternalismo
algum, o momento em que eles reagem – com ferro e com fogo, é caso para dizê-lo
– contra as opressões e as injustiças.
Parece que Sayles, que escreveu o
argumento sozinho, tomou algumas liberdades históricas, e em vez de escolher
entre a “lenda” e o “facto” resolveu ficar com o melhor das duas coisas. A
“lenda” e o “facto”: Sayles não é o mais fordiano dos cineastas, mas Matewan, e isto não pode deixar de ser
um elogio, exala uma “justeza”, um sentido de decência elementar, na descrição
da comunidade e das relações entre os seus membros (e das relações entre os
seus membros e os “ogres” enviados pela empresa: a dupla Hickey/Griggsy é um
bocado como Liberty Valance e os seus capangas), que torna pertinente a
lembrança de Ford. E já agora, quão estoicamente fordiana é a sequência em que
o jovem pregador (Will Oldham, futuro Bonnie Prince Billy, um dos grandes
“songwriters” americanos da actualidade) se serve de uma parábola bíblica para,
durante uma cerimónia, avisar os seus camaradas da injustiça que estão prestes
a cometer. A galeria de personagens, de resto, é fenomenal – o sindicalista
“red” de Chris Cooper, o esquivo, mas tão corajoso, polícia de David
Strathairn, a silenciosa Mary McDonnell, a infeliz Bridy Mae de Nancy Mette… E
todos os secundários, incluindo os grupos de negros e italianos (que a
“companhia” trazia para as minas para baixar os salários a toda a gente), que o
filme trata como “nuvens” sem ao mesmo tempo impedir que eles se individualizem
e se humanizem (e algum humor, um pouco… fordiano, na maneira como o filme
trata as tensões entre os brancos, os negros e os italianos).
São imensas personagens
importantes, de facto, e esse é um elemento tipicamente “saylesiano”: quem é o
“protagonista” de Matewan? Cooper,
Oldham (a quem, percebemos claramente no final, pertence a voz da narração
“off”), Strathairn, McDonnell?... Ou é o “grupo”, a comunidade, em todas as
suas harmonias e contradições? Dominando plenamente, como é seu hábito e traço
distintivo, a montagem paralela, Sayles constrói o filme numa particularíssima
gestão do tempo narrativo, sempre em “atraso”, sempre preferindo a
“simultaneidade” da acção à sua ostensiva “progressão” – como outros filmes de
Sayles, ou escritos por ele (o The
Howling de Dante também é assim), em Matewan
parece que se avança mais para os lados do que para a frente. Mas também é isso
que torna tão poderosa – como uma descarga de energia acumulada, que apanha o
espectador no seu próprio desejo de maniqueísmo – a cena do “shoot-out” final.
LMO