Entrevistado por Michel Ciment,
que lhe perguntou como acontecia a decisão de aproveitar determinada história
que estivesse a ler como base para um filme, Robert Bresson respondeu: “No caso de A Nota Falsa soube imediatamente. Vi o filme
imediatamente, porque a história se relacionava com a minha vontade de fazer um
filme sobre uma reacção em cadeia conducente a um grande desastre. Uma nota de
banco que acaba por assassinar uma quantidade de gente. Porque é que Julien
Sorel matou Madame de Renal [personagens d’O Vermelho e o Negro, de Stendhal]? Saberia cinco minutos antes de o fazer que o ia fazer? Claro que não.
Que aconteceu nesse momento preciso? As forças da rebelião libertam-se
subitamente no interior de um indivíduo, todo o ódio escondido que se vai
acumulando lá dentro. Interessava-me mais o relato que Tolstoi fazia disto do
que as suas ideias religiosas (…)”. Na mesma entrevista, mas noutro ponto
(anterior, curiosamente), explicou como e porquê se afastou da história de
Tolstoi: “Há uma altura em que me liberto
completamente, como um cavalo com a rédea solta, e deixo a minha imaginação
conduzir-me aonde quiser. A história de Tolstoi é bastante diferente [do
filme]. (…) No princípio Tolstoi
refere-se a Deus e aos Evangelhos. Não podia seguir por aí porque o meu filme é
sobre a indiferença inconsciente dos nossos dias, em que as pessoas só pensam
nelas próprias e nas suas famílias”.
Não sendo, obviamente (quando se
trata de um filme como L’Argent), as
únicas pistas possíveis, Bresson apontou e “autorizou” assim aquelas que foram
(e são ainda) as duas principais pistas seguidas por exegetas e comentadores da
sua obra e, em particular, deste seu derradeiro filme.
Por um lado, o irracional, o
inexplicável, a explosão (o “grande desastre”) que se segue a uma “reacção em
cadeia” – algo que, por definição, tem a ver com a física ou com a química, com
a ideia de um mecanismo autónomo e auto-suficiente, que pelo menos uma vez
posto em marcha escapa a qualquer controlo ou vontade humana. Evidentemente,
não somos os primeiros, nem seremos com certeza os últimos, a associar por este
tema Le Diable Probablement e L’Argent, como se os dois últimos
filmes de Bresson olhassem um para o outro, com possível extensão a Au Hasard Balthasar, que tem uma
estrutura a vários títulos aproximável da de L’Argent, partilhando aquilo a que alguns comentadores chamaram uma
“estética do caos” (e que, no fim de contas, é apenas outro nome para a
“reacção em cadeia” descrita por Bresson).
Por outro, a questão social, ou o
tema da sociedade descrita (e criticada) como frio mecanismo triturador de
indivíduos, com o dinheiro como móbil (Bresson também falou disso: “tudo o que
importa a toda a gente é o dinheiro”). Que prato pesa mais na balança de L’Argent? A “metafísica” ou a
“política”? Será possível dissociá-las ou, neste caso concreto, enformam-se uma
à outra? Há um texto muito curioso (e, eventualmente, muito contestável) de
Alberto Moravia que propõe, com bastante originalidade, a interligação dos dois
termos. Partindo do pressuposto de que em L’Argent
“o mal” era “a própria existência do dinheiro, independentemente de ser falso
ou não”, Moravia concluía que Bresson encontrava “o bem”, em referência às
sequências de Yvon com a família rural, “nas
antigas virtudes da civilização francesa, aquela tradicional mistura de rigor,
análise e racionalismo – a marca distintiva do génio nacional. Por outras
palavras, o ‘bem’ transforma-se em ‘estilo’. Daqui chegamos à curiosa conclusão
de que o mal se encontra na vida, enquanto o bem está no modo como essa vida é
representada. O machado sangrento com que o assassino mata as suas vítimas é um
objecto mau, mas a imagem do machado é benéfica. Em resumo, o estilo exorciza o
mal”.
É interessante que Moravia use o
machado como exemplo para ilustrar a questão do “estilo”, porque os planos dos
assassínios (o machado propriamente dito, a elipse do candeeiro e das manchas
de sangue no papel de parede) estão entre os mais “estilizados” de L’Argent. O “humano” quase desaparece,
ficam os objectos (o machado) e as marcas do seu trabalho (as manchas de
sangue). Como se fosse uma maneira de mostrar um “mal” em abstracção, algo que
não está nos homens mas se serve deles, que faz deles “veículos”. Em termos
figurativos, o “estilo” talvez não seja o que “exorciza” o mal mas o que
permite a sua representação e, de alguma maneira, a sua objectivação. Nesse
sentido “utilitário”, desde os que mentem em tribunal aos que são mortos,
passando por aquele que mata (Yvon), todos são vítimas.
Vítimas, e sem redenção. Bresson
disse que gostaria de ter filmado a redenção de Yvon mas que isso “estragaria o
ritmo do filme”. Que se conclui assim –
e não esqueçamos, também a obra de Bresson, mesmo que não tenha sido um fim
premeditado – com um dos mais terrificantes planos de todo o seu cinema. Levado
pela polícia, Yvon sai de campo, e a pouca luz do plano é logo a seguir cortada
pelo “negro” final, sem música e sem genérico de fecho. Ou seja, uma espécie de
“nada”. Não há nenhum “drôle de chemin” que leve Yvon para junto de quem quer
que seja. Jeanne, a possível Jeanne de Yvon, foi-se embora a meio do filme,
estava Yvon na prisão como Michel em Pickpocket.
LMO