Absolute Power, que veio a seguir a Bridges of the Madison County, e foi estreado uns meses antes de Midnight in the Garden of Good and Evil
(1997 foi a terceira vez em que Clint Eastwood estreou dois filmes no mesmo ano;
a quarta seria o ano de The Changeling e Gran Torino),
sofre como alguns outros eastwoods (o magnífico True Crime, por exemplo) do período pós-consagração com o facto de
não parecer especialmente significativo.
Não tem nenhum grande tema que se imponha por si próprio, não parece conter
nenhuma reflexão particularmente aguda sobre a figura do próprio Clint
(infinita matéria), não evidencia
nenhum “tour de force” em termos de interpretação ou de realização. Não é raro
sentir-se uma certa subalternização de Absolute
Power, visto como um thriller dirigido com mestria mas relativamente
rotineiro.
Rotineiro seria com certeza nas
mãos da esmagadora maioria dos realizadores hollywoodianos potencialmente
atraídos por material como este – uma história excelente, adaptada por William
Goldman (um dos principais argumentistas na Hollywood das últimas décadas)
segundo indicações precisas de Clint Eastwood (que implicaram alterações
substanciais ao romance-base: no livro, a personagem de Clint morria pouco
depois do meio), mas ainda assim uma história não muito diferente, na essência
pelo menos, da de muitos outros thrillers. Só que, francamente, de rotineiro em
Absolute Power não conseguimos ver
nada, apenas uma imensa mestria e bastante significado.
E um significado não especialmente reiterativo, visto que o filme, trabalhando,
é certo, sobre um recorte típico de personagem eastwoodiana, ajuda a precisar
esse recorte e mais ainda a precisar a relação dessas personagens típicas com o
Poder.
Isto, para além da eventual
“private joke”. O motivo por que Luther Withney (a personagem de Eastwood)
passa dias no museu a copiar quadros clássicos será rapidamente explicado pela narrativa,
mas não conseguimos deixar de ver a primeira cena de Absolute Power, com o “don’t give up” da rapariga (por acaso ou
não, Alison Eastwood, filha de Clint), como uma declaração de irónica modéstia:
eis “o últimos dos clássicos” (como por esta altura já se tinha tornado chavão)
a aperfeiçoar o traço observando e imitando os… clássicos. Pode ser mera
coincidência, mas esta cena, tendo o condão de evocar o “Eastwood metteur en
scène” através do “Eastwood actor”, parece ainda prefigurar uma característica
da personagem e do seu envolvimento narrativo: como o terço final deixará
claro, Luther Withney, personagem esquiva (comparam-no, a certa altura, a uma
enguia), é uma espécie de “encenador” na sombra (as pequenas ajudas à vida
doméstica da filha), e será como “encenador”, pela capacidade de dispor e
administrar os elementos da cena, que porá em marcha os mecanismos, a partir de
certa altura quase auto-suficientes, necessários à boa resolução da intriga.
“Encenador”, dissemos, depois de ter sido “espectador” – do sórdido filme, ou
da sórdida peça, à base de sexo, morte e mentiras, que resolveram desenrolar à
sua frente. Absolute Power também
podia ser descrito assim: a história de uma passagem à acção, de “espectador” a
“encenador” por reacção à “absoluta mentira” que lhe é dada a contemplar.
O momento dessa “passagem”, ou da
decisão dessa passagem, é fulcral. Provavelmente a cena mais significativa (no sentido em que antes
usámos a palavra) de Absolute Power.
Whitney está no aeroporto, disposto a fugir, amedrontado por se sentir à mercê
de poderes demasiado “absolutos” para o seu próprio poder de ladrão refinado e
escrupuloso. E então vê, na televisão do bar (com o “gag” do “apague a tv” e do
“acenda a tv”), todo o espectáculo da hipocrisia dado pelo Presidente (Gene
Hackman) – tudo o que as personagens eastwoodianas mais abominam, a degradação
moral das autoridades efectivas e/ou simbólicas (no caso da personagem de
Hackman, ambas). É o que basta para espicaçar o individualismo puritano de
Luther Withney, e convencê-lo de que “absoluto” é o seu próprio poder: o poder
da honestidade e da inteligência, o poder de uma mise en scène ao serviço da
verdade. É toda a segunda parte do filme.
E depois, ou para além disto, e
já que falámos de “mestria”, Absolute Power
é um festival – de mise en scène propriamente dita. A maneira como Clint
prolonga a cena do assalto inicial (quase uma “falsa pista” quanto ao que
realmente será importante), e depois prolonga a cena do crime; ou a magistral
sequência de “suspense” que é o encontro com a filha, com todos os dados
rigorosamente fornecidos ao espectador desde o início (que fica apenas com a
dúvida: qual vai ser a importância daquele vidro que está a ser montado pelos
operários); o bailado entre Hackman e Judy Davis ou a aproximação entre o
polícia (Ed Harris) e a filha de Luther (Laura Linney), do diálogo do “vivo
sozinho” ao olhar falsamente severo que Clint deita a Harris na cena final no
hospital; ou a elipse que se sucede à visita do velho Sullivan ao Presidente, e
que “resolve” a narrativa.
Não, não existe aqui nada de
rotineiro, só pura mestria e abundante significado. Um grande, grande filme.
LMO