Aki Kaurismaki, finlandês,
cinquenta anos, já tem uma costela portuguesa. Há muitos anos que passa cá o
Inverno, numa casa no Minho. Chega por volta de Setembro ou de Outubro, e volta
para a Finlândia no princípio da Primavera. Duas coisas denunciam imediatamente
essa costela: um muito razoável domínio da língua portuguesa, embora para a
entrevista propriamente dita prefira conversar em inglês; e, sobretudo, um
emblemazinho do Futebol Clube do Porto ostentado na lapela. Uma vez, há cerca
de dois anos, iniciou a apresentação de um filme seu na Cinemateca perguntando
quantos portistas havia na sala – a sua filiação clubística portuguesa é algo
que ele leva a sério. Os assuntos desportivos irromperam diversas vezes durante
a conversa que mantivemos com ele a propósito da estreia do seu mais recente
filme, “Luzes no Crepúsculo”: Kaurismaki é um conversador inteligente e
divertido, lacónico e caótico, e apreciador da cumplicidade.
É pelo desporto, aliás, que Kaurismaki
resolve um eventual problema de identidade. “Fui ao estádio ver o
Finlândia-Portugal em Helsínquia [jogo de qualificação para o campeonato da
Europa de futebol]. Tinha numa mão uma bandeira da Finlândia e na outra uma de
Portugal. Mas quando o jogo começou o sangue falou mais alto e comecei a torcer
pela Finlândia. Acho que no Dragão [o Portugal-Finlândia de quarta-feira, de
que o leitor já saberá o resultado] vai acontecer o mesmo”. Conversa puxa
conversa, mas não necessariamente em sequência, outro assunto desportivo caro a
Kaurismaki e aos finlandeses em geral, o automobilismo, ainda veio à baila.
“Era estúpido tirarem-lhe o título [a Kimi Raikkonen, finlandês campeão do
mundo de fórmula 1 em 2007, cujo título ficou durante algumas semanas pendente da
investigação dum imbróglio técnico-legal] por causa daquilo, não era?”.
(Julgámos ver-lhe um olhar reconfortado quando concordámos com ele). “Por que é
que somos tão bons nos automóveis? Porque somos estúpidos: sabemos que está ali
o pedal do travão mas preferimos ignorá-lo”.
Mas não era para falar de futebol
e de fórmula 1 que ali estávamos. O assunto era “Luzes no Crepúsculo”, terceiro
tomo de uma trilogia iniciada em “Nuvens Passageiras” e depois continuada em “O
Homem sem Passado”. Ou, como Kaurismaki, prefere chamar-lhe, “a sexta parte de
duas trilogias”. Uma para os anos 80, terminada com um dos seus filmes mais
célebres, “A Rapariga da Fábrica de Fósforos” (1990), outra para os anos 90
entrando pelo século XXI. São filmes, e trilogias, sobre os deserdados do
“sonho finlandês”, sobre aqueles que ficaram esquecidos pelo chamado milagre
económico finlandês que teve a Nokia por ponta de lança. Personagens extraídas
àquilo a que antigamente se chamava a “classe operária” ou o “proletariado”.
Diz Aki: “Já ninguém lhes chama assim, mas eles ainda ‘operam’, não se tornaram
capitalistas”. E têm, aparentemente, cada vez menos espaço – em “Nuvens
Passageiras” as personagens abriam um restaurante bem sucedido, em “O Homem sem
Passado” o protagonista refazia a vida depois de uma crise de amnésia, mas a
personagem principal de “Luzes no Crepúsculo” está sempre a bater contra a
parede, nada lhe corre bem e acaba num ermo. “É minha ideia acabar as trilogias
assim, com filmes rápidos, bruscos e tristes, praticamente sem humor nenhum”.
Ao contrário de “O Homem Sem Passado” (que era uma “comédia”, embora se possa
pensar que no cinema de Kaurismaki a diferença entre uma comédia e um drama
depende de pormenores minimais), “Luzes no Crepúsculo” é trágico e pessimista
como um conto russo. Na primeira cena, o protagonista ouve a conversa de três
tipos que descem a rua a conversar sobre escritores russos, como se decidissem
qual deles o mais desesperado – e fixam-se em Pushkin que (dizem eles) “mal
nasceu já estava morto”. É um aviso, um anúncio, para a personagem e para os
espectadores? “Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia. Escreva que sim. É
um aviso”.
Mas o espaço, o urbanismo e a
arquitectura imaculadamente modernas, brilhantes e envidraçadas de Helsínquia,
algures entre o “Alphaville” de Godard e o “Playtime” de Tati – este espaço
também é um protagonista do filme. “A minha ideia era que a personagem fosse
sendo sacudida e cuspida, rejeitada pelo cenário. Já não há lugares em Helsínquia.
A única hipótese é o campo, mas mesmo ele já foi estragado. Vocês têm sorte,
aqui em Portugal ainda há alguns lugares”. Nos filmes anteriores, Kaurismaki
encontrava e filmava uma espécie de “traseiras” desta nova Helsínquia, havia um
refúgio para as personagens. Em “Luzes do Crepúsculo” o monstro urbano
engole-as. “Helsínquia tornou-se uma cidade feia, mas feia num sentido
mesquinho [‘in a small way’]. Quanto maior, mais provinciana. Não me incomodam
os lugares feios, aliás gosto de lugares feios. Mas aborrecem-me os lugares
feios e chatos. E filmei na parte mais chata de Helsínquia. Até fui
supreendido, porque escrevi o filme aqui em Portugal, e quando fui para
Helsínquia essa parte da cidade tinha-se tornado ainda mais chata do que o que
era. Acho que quem vê o filme percebe que há melhores cidades para se ir passar
férias”. O pessimismo de “Luzes no Crepúsculo” é reforçado pelo facto de
Kaurismaki não conceder à sua personagem a bênção de partir para outro lugar no
fim do filme. “Este estava demasiado ferido, demasiado espancado. Mas dei-lhe o
amor, isso não basta?” Kaurismaki está-se a referir ao último plano do filme,
muito bonito e muito curto – as mãos dadas do protagonista e da rapariga que
não o abandona (e é um plano curtíssimo, dos mais curtos planos finais que já
vimos – “filmei em Junho e só havia vinte minutos de escuridão em Helsínquia”,
diz Aki, “não volto a filmar em Helsínquia no Verão, a menos, claro, que queira
o Verão”). O realizador pensou mesmo matar a personagem (“penso sempre em matar
as personagens, mas depois comovo-me e não consigo”), e filmou dois finais, com
morte e sem morte, e para a última sequência acabou por usar material de ambos.
Em todo o caso, o pessimismo nem permite a provocação – como em “Sombras no
Paraíso” (“o meu filme mais optimista de sempre”), que terminava com os
protagonistas a apanharem um “ferry” para a Estónia (então, anos 80, parte da
URSS). “Era uma maneira de dizer que tudo era melhor do que ficar na Finlândia.
E era uma citação de um filme finlandês dos anos 50, que acabava com as
personagens num ‘ferry’ para a Suécia. Nessa altura muitos finlandeses
emigravam para a Suécia”.
Mas esta Finlândia existe mesmo,
ou corremos o risco de a confundir com aquilo a que Peter von Bagh (ex-director
da cinemateca finlandesa, crítico, historiador e enciclopedista) chamou uma vez
a “Kaurismakilândia”, espécie de manto lançado por Aki sobre o país e os seus
lugares, mas não necessariamente coincidente? “Não sei dizer. Estou demasiado
dentro. É como quando as pessoas me perguntam se o meu humor é finlandês.
Respondo que deve ser finlandês, visto que eu próprio sou finlandês”. O que não
o impede de falar do seu país como de um marasmo letal. “Nós nem temos nada a
que nos opor, politicamente. É uma coisa que faz muita falta. Mas até os nossos
políticos são desesperantemente honestos. Não roubam, não são corruptos. Quer
dizer, roubam, mas dentro da legalidade”. Esse marasmo ajuda a perceber
histórias como a do miúdo que há poucas semanas disparou indiscriminadamente
sobre colegas e professores do seu liceu? “É uma história muito triste. Mas
acho normal. Se queremos importar a cultura americana temos que importar tudo.
Não podemos importar só o lado bom”.
Aki não faz, de resto, muita fé
na juventude. Perguntamos-lhe pela sala de cinema que detém, em sociedade com o
seu irmão Mika (igualmente cineasta), em Helsínquia. Durante anos tentou manter
uma programação alternativa. Mas sem viabilidade comercial. “É impossível. A
sala está aberta, mas quase só para festivais e coisas do género. Há uns tempos
exibimos um programa duplo de Jean Vigo, com ‘Zero de Conduite’ e ‘L’Atalante’,
mas não dá. Aparecem alguns, mas não em número suficiente. É mais fácil comer
um hamburger. O cinema tem espinhas, é complicado”. Por falar em coisas fáceis
de mastigar, lembramos Aki de que uma das mais bizarras ocorrências no cinema
mundial dos últimos anos foi o ouvir o seu nome ser pronunciado em plena
cerimónia dos óscares, quando “O Homem sem Passado” foi nomeado para melhor
filme em língua estrangeira. Kaurismaki põe um ar envergonhado: “Não pude
evitar. O filme tinha uma participação da Finnish Film Foundation, que é um
organismo estatal e para eles era importante, hoje toda a gente vive obcecada
com os óscares. Eu nem fui lá, não quero saber daquilo para nada”. Kaurismaki
tem uma ideia muito precisa sobre o que não gosta na Hollywood contemporânea.
“Nos anos 40, as estrelas eram adultos, hoje são crianças grandes. Quando se
pensa que, por exemplo, James Stewart esteve na II Guerra Mundial, a pilotar bombardeiros
sobre a Alemanha…”. De facto, é totalmente irrealista imaginar Brad Pitt a ir
para o Iraque e a voltar com o cabelo grisalho – realmente grisalho, como o
Stewart de depois da guerra, não a patética “make up” de “Babel”. “Brad Pitt,
pfff… James Stewart comia ‘starlets’ como ele ao pequeno almoço”.
Lee Marvin, esse sim, era um
homem. Kaurismaki rebusca a carteira, à procura do cartão de membro dos “Filhos
de Lee Marvin”, sociedade secreta (“ninguém sabe ao certo quantos membros tem”)
de que primeiro se ouviu falar há uns vinte anos, anunciada por Jim Jarmusch
(Nick Cave, Tom Waits, John Lurie, são supostamente outros membros, mas nada
disto é certo, para além de ser secreto). Mas não encontra o cartão: “aposto
que o Peter von Bagh mo roubou, porque foi a última pessoa a quem o mostrei”.
Terá que ficar para a próxima. Provavelmente numa altura em que “já teremos
vendido o Quaresma e o Lucho – os presidentes dos clubes de futebol deviam ser
todos despedidos”.
LMO (em 2007; como o tempo passa)