terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Z, Costa-Gavras, 1969


Eis um dos mais célebres filmes políticos feitos na Europa durante essas tão politizadas épocas que foram os anos 1960 e 1970, e o filme que definitivamente lançou Costa-Gavras para uma carreira onde abundaram os filmes políticos. Filmes políticos “de esquerda”, evidentemente e quase nem seria preciso dizê-lo, e rodados nos mais diversos sítios, do Chile em Missing (com Jack Lemmon, em 1982) àquelas profundezas americanas onde abundam os racistas e os supremacistas brancos num filme como Betrayed (com Debra Winger, em 1988). Este espírito “vai a todas” valeu a Costa-Gavras uma reputação na primeira linha dos cineastas “de causas”, embora o seu “esquerdismo” político tenha, por norma, pouca correspondência com o relativo conformismo das suas opções de mise en scène – é uma obra geralmente académica, onde a variação se costuma registar apenas no nível de solidez e sobriedade desse academismo. Convém notar, a este propósito, que Z muito naturalmente não foi estreado em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, demasiado evidentes que eram (apesar de todos os “disfarces” do filme) as suas alusões a um regime totalitário de direita – foi apenas exibido em sessões especiais nos meses finais de 74, a tempo de ainda assim levar um título português, Z - A Orgia do Poder, completamente desajustado (damos um doce a quem encontrar aqui qualquer coisa semelhante a uma “orgia do poder”) mas talvez apelativo para um público a quem demasiadas coisas tinham sido proibidas durante demasiado tempo.

Costa-Gavras não era um desconhecido e já tinha alcançado um razoável sucesso com um filme de 1965, Compartiment Tueurs, baseado num romance policial de Sébastien Japrisot. Quando descobriu o romance do grego Vassilis Vasilikos, a ideia de o passar a filme foi imediata. O romance tocava fundo a alguém como ele, exilado político em França desde os anos 50, desde que as opções políticas do seu pai o tornaram “persona non grata” na sua Grécia natal. O romance de Vasilikos relatava o assassinato, com a conivência e o encobrimento das autoridades militares, de um deputado da oposição grega em 1963, acontecimento que podia ser facilmente apresentado como um preâmbulo para a chamada Ditadura dos Coronéis instaurada em 1967. Era portanto o veículo perfeito para denunciar a situação política grega mas, por todas as razões, não podia ser rodado na Grécia. Costa-Gavras tentou os americanos, mas a United Artists, inicialmente receptiva, abandonou a ideia, bem consciente da delicadeza política do tema. Por intermédio de Jacques Perrin, então a iniciar-se como produtor (foi o seu primeiro filme nessa função, conciliando ainda uma participação como actor), conseguiu o apoio dos argelinos (foi como representante da Argélia que o filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1970), o que explica as localidades argelinas e o carácter relativamente não-identificado das nacionalidades e facções em questão (é fácil confundir a história, de facto e tal como o filme a conta, com um hipotético episódio sucedido durante a presença francesa na Argélia). Para o argumento Costa-Gavras rodeou-se de exilados: Jorge Semprun, refugiado do franquismo, e, não-creditado, Ben Barzman, que abandonara os Estados Unidos depois de ter ido parar à lista negra do Senador McCarthy. Contou, ainda, com impressionante leque de actores e actrizes, alguns deles manifestamente subaproveitados (como o veterano Jean Dasté, embora o seu papel corresponda mais ao perfil duma “participação especial”, ou sobretudo a fabulosa Clotilde Joano, aqui numa personagem plana e tratada com descoroçoante indiferença). 

Sobre-aproveitadas são, isso sim, algumas personagens e algumas situações narrativas – o sentimentalismo da relação entre Montand e Irene Papas, dado primeiro pelos flash-backs e “visões” dele, e depois do atentado pelas cenas em que Papas se limita a exibir uma pose sofredora antes de desaparecer do filme, emperra o essencial, que até é algo de bastante pragmático. Quando, depois da morte da personagem de Montand, o “protagonista” passa a ser o juiz Trintignant (personagem também com um duplo na realidade, Christos Sartzetakis, que viria a ser Presidente da República grega), o filme encontra finalmente o seu foco, na história clássica do homem justo que, por mais implicado que esteja no regime, é capaz de ver e distinguir o que está certo e o que está errado (Trintignant, brilhante como sempre, encarna na perfeição este processo de “conversão”, com apoteose na cena em que ele próprio, que passara o filme a corrigir os seus interlocutores instando-os a dizerem “incidente” em vez de “assassínio”, utiliza por sua vez essa palavra – “assassínio”). Maniqueista, Z é certamente, e o filme não se concluirá sem uma série de planos, não isentos de ironia, em que ao espectador é dado o prazer de ver castigados os figurões por trás do complot. Antes disso, e se em termos puramente “cinemáticos” (De Palma chamaria um figo a este aspecto) Costa-Gavras não tira especial partido da “decomposição”, a posteriori e em vários pontos de vista, do acontecimento central (a agressão a Montand), é capaz de uma muito razoável tensão na descrição do ambiente dessa noite, bem suportado em personagens como a dupla Yago/Vago, que parecem nomes de personagens de cartoons, e a que Renato Salvatori e Marcel Bozzuffi conferem uma aura suficientemente perturbadora para configurarem uma expressão de um mal mesquinho e cruel. Um pouco envelhecido, um pouco caótico na sua dispersão, Z conserva ainda assim os elementos necessários para que um visionamento contemporâneo justifique pelo menos uma porção da sua enorme fama.

LMO