terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Strange Days, Kathryn Bigelow, 1995



Strange Days foi, desde o primeiro momento (exibição no Festival de Veneza de 1995), transformado em objecto de “culto”, expressão que, em cinema, é extremamente ambígua, dá para tudo e não quer, em si mesma, dizer nada. Para lá do culto, o filme de Bigelow dividiu opiniões, recolhendo a admiração de alguns e a indiferença de outros, incapazes de ver nele mais do que uma rotineira “americanada”. Disse-se indiferença, podia-se ter dito desprezo: quem viu Aprile, de Nanni Moretti, recorda-se certamente da maneira ácida como o cineasta italiano exprimia o seu desgosto por Strange Days. O fervor dos admiradores do filme não foi, contudo, suficiente para fazer dele um sucesso na bilheteira. Os resultados, a esse nível, ficaram aquém do esperado, e a primeira consequência desse fracasso parece ter sido a interrupção da carreira de Kathryn Bigelow, de quem, desde então, não voltámos a ter notícias. Preservando o direito de cada um a pensar pela sua cabeça, somos daqueles que têm Strange Days na conta de um dos mais importantes filmes americanos dos anos 90 – e por razões que ultrapassam em muito o exercício de “futurologia” nele contido e que justifica a sua inclusão neste ciclo. Este é, aliás, um bom ponto para começarmos: qual é o “futuro” de Strange Days? Pode-se dizer, com propriedade, que esse futuro “é hoje” (a acção começa nas primeiras horas da madrugada do dia 30 de Dezembro de 1999)*, mas também se pode dizer que se trata de um futuro construído a partir de uma intensificação dos sinais daquilo que era o nosso presente em 1995. Ou que continua a ser: a reduzida projecção temporal (apenas 4 anos) que Bigelow escolheu para nos mostrar o “futuro” reforçam a ideia de que o importante, para ela, era falar do “presente”. A Los Angeles do filme está isenta de “futurismos” (vá-se procurar Blade Runner em Blade Runner) e desenha-se a partir de uma hipérbole do presente. Estão lá os medos pré-milenares, mais para dar “ambiente” e exprimirem um ponto de saturação do que para se assumirem como centro do filme; está lá o caos metropolitano, como expressão de um mundo progressivamente descentrado e onde as coordenadas espaciais se diluíram e deixaram de ser factor decisivo (a maneira como Bigelow filma isto talvez tenha qualquer coisa a ver com algum cinema de Hong Kong, com o estilhaçamento da découpage e a frieza da iluminação a corresponderem a essa flutuação, ou a esse desaparecimento de um espaço “sólido”) ; estão lá todas as paranóias, monstros e maravilhas da “sociedade da imagem” deste nosso final de século. Para reforçar tudo isto, a narrativa (ou parte dela) ergue-se sobre um episódio que estava, então, bem fresco na memória: o célebre caso Rodney King, que culminaria nos motins que puseram Los Angeles a ferro e fogo durante várias semanas – em Strange Days, a eminência do “fim do mundo” repousa sobre a eminência da repetição de uma situação semelhante.

A este cenário (afinal, tão estranhamente “realista”), acrescenta Bigelow um ingrediente que – por agora, pelo menos – permanece no domínio da ficção científica: os “squids”, pequenos “clips” hiper-realistas que gravam o que se vê e o que se sente durante determinado espaço de tempo (assim como se fossem uma espécie de “caixa negra” do córtex cerebral), e que permitem a um indivíduo reviver, tintim por tintim, fragmentos da vida de outro indivíduo. Apogeu do “reality show” para consumo individual ou vingança de Edison sobre os Lumière, estes “squids” são também a mais inquietante visão do cinema do século XXI que o cinema do século XX pôde dar. Traficados como se de droga se tratasse (e, no fundo, de droga se trata), Bigelow constroi a partir deles uma reflexão sobre os mecanismos da cinefilia no seu estado mais bruto: não é meramente a “necessidade de imagens” que está em causa, mas a utilização delas como forma de recuperação daquilo que se perdeu ou que nunca se teve – e reparar-se-á que Lenny Nero, a personagem de Ralph Fiennes, se serve dos “squids” para se agarrar ao passado (assim como um “junkie” procura eternamente recuperar as emoções da primeira “pedra”) e conservar a memória do tempo em que foi feliz. Memória vendida em cápsulas, experiência individual tornada enfim partilhável, derradeira distorção dos nossos conceitos de espaço e tempo, ou suprema abolição do corpo como porta aberta para uma existência puramente emocional e sensorial, os “squids” são um objecto (ou um conceito) cujo misto de fascínio/repulsa é habilmente explorado por Bigelow – perdição ou salvação, quando a realidade os inventar decidiremos. Vale a pena frisar, no entanto, que alguns dos momentos mais brilhantes de Strange Days nascem do modo como Bigelow incorpora na narrativa – e na forma – do filme as imagens desses pequenos clips – longe de se limitarem a ser uma “trouvaille” do argumento, eles são parte essencial da mecânica do filme, ora fazendo “avançar” a narrativa ora funcionando como “flash-back” destinado a clarificar os estatutos e as definições das personagens. Última curiosidade a seu respeito: na estrutura pulverizada da planificação do filme, os clips dos “squids” recuperam (ironia das ironias?) a figura do plano-sequência, como se fossem pequenos pedaços de cinema (falsamente) “em bruto”, cuja matriz fundadora talvez esteja (a julgar pelo caldo em que se formou a cinefilia de Bigelow) nos “one shot movies” de Andy Warhol – o que é, pelo menos, uma hipótese divertida. 

Mas Strange Days não seria o que é se não fosse também, muito “classicamente”, um filme de personagens, e se não tivesse lá dentro um triângulo amoroso para desenhar um magnífico melodrama. Três actores de eleição: Ralph Fiennes (de gravatas coloridas e regularmente espancado), Angela Bassett (contraponto ironicamente “masculino” da personagem de Fiennes, é ela que veste o “smoking” e que o salva de ser espancado ainda mais vezes) e, no outro vértice do triângulo, Juliette Lewis em vésperas de entrar para uma clínica de desintoxicação, no papel de uma “pop starlet” em ascensão que interpreta canções de PJ Harvey e tem um estilo de vida possivelmente decalcado do da Courtney Love dos seus “melhores” dias. Com este trio (e mais alguns coadjuvantes) constrói Bigelow uma história de obsessão amorosa (já compararam a personagem de Fiennes à de James Stewart em Vertigo) que se resolve, em aparente “happy end”, na noite da passagem para o ano 2000 – noite em que, de resto, vemos menos a “euforia” do que a electricidade que está no ar, denunciadora de uma violência latente que qualquer pequeno nada pode detonar. Tudo isto é mais do que suficiente para que esqueçamos alguns desequilíbrios e tropeções internos de Strange Days (nobody’s perfect, nem os filmes) e para que fiquemos, com ele, a recordar a chegada do ano 2000.

LMO

*o texto, que se mantém largamente inalterado, foi escrito para a “folha” de uma sessão no dia 30 de Dezembro de 1999, que foi a última sessão da Cinemateca antes da entrada no ano 2000.