A cena crucial de Chuva de Julho é aquela, perto do final, em que a protagonista e o namorado dialogam sem olhar um para o outro – estão lado a lado, a olhar para a câmara perante um fundo envidraçado – e ela conclui: “o que eu nunca vou conseguir explicar é porque é que, apesar de todas as tuas maravilhosas qualidades, não me vou casar contigo”. Não se consegue assistir a essa cena, ou a esse fecho de cena, sem um aperto no peito, não tanto pelo que Lena diz mas pela tão delicada como definitiva firmeza com que o diz. Todo o filme de Khutsiev se funda sobre este afastamento – esta “alienação”, para usar um termo antonioniano aqui muito a propósito tão clara parece a influência sobre Khutsiev de filmes como La Notte ou L’Eclisse – e sobre o vazio explicativo que lhe subjaz, traduzido por uma melancolia indefinível que atravessa tudo e se torna, de certo modo, no grande tema do filme.
“Crónica geracional”, dizem-nos, centrada na geração que tinha vinte e tal anos nos anos 60 e crescera já depois da II guerra, depois de Estaline, etc. Os filmes de Khutsiev, que começara a filmar no final dos anos 50, são normalmente apontados como exemplares do cinema soviético do “degelo”, juntamente com títulos muito mais célebres, mas não necessariamente melhores, como a Balada do Soldado de Chukhrai ou o Quando Passam as Cegonhas de Kalatozov. Chuva de Julho é obviamente um filme duma desilusão, e duma desilusão que conduz a uma tomada de consciência, corporizada por essa cena que citámos. Não custa crer que, socialmente, ou mesmo politicamente, as implicações do discurso fossem incómodas: seleccionado para o Festival de Veneza, o filme de Khutsiev nunca lá chegou porque as autoridades soviéticas se recusaram a deixar sair qualquer cópia do filme. Constrangimento, ainda assim, mais suave do que o que recaiu sobre o filme anterior de Khutsiev, A Porta de Ilyich, liminarmente proibido e alvo da ira de Kruschev em pessoa.
Há um pormenor curioso logo nos
primeiros momentos, durante aquele portentoso genérico feito de sucessivos
travellings sobre ruas de Moscovo, alternadas com imagens de quadros de da
Vinci (a primeira referência italiana do filme, que parece imbuído de “italianismo”,
e não só Antonioni) e, na banda sonora, uma rádio a saltitar de estação em
estação. Numa dessas estações ouve-se um relato de futebol e dá ideia, a um não-falante de russo, que se trata de um Portugal-URSS – o jogo em que as duas
selecções se defrontaram durante o Mundial de 1966, disputado no mês de Julho? Esta datação da cronologia do filme, que rima, de resto, com as imagens, perto
do fim, de uma cerimónia de antigos combatentes (quase de certeza em celebração
do 25ª aniversário do começo da “Grande Guerra Patriótica”, a luta contra os
invasores nazis da URSS), esta datação do filme, dizíamos, é perfeitamente
coerente com o outro aspecto impressionante que ele tem: a sua pulsão,
chamemos-lhe assim, para o documentário. Independentemente de quaisquer outras
razões ou motivações, Chuva de Julho
é um grandíssimo filme sobre uma cidade precisa, Moscovo, num tempo preciso, o
verão de 1966. Como escreveu um comentador russo, se lhe retirássemos os planos
não-narrativos, as vistas de Moscovo, os travellings por Moscovo, as imagens
dos transeuntes e dos rostos dos transeuntes, os café e as lojas, se lhe
tirássemos isto Chuva de Julho
passava a ser uma curta-metragem. O que não quer dizer que devamos dissociar,
como se fossem dois filmes diferentes, a narrativa e o documento: eles
embrulham-se, imiscuem-se, influenciam-se, e é pela sua combinação que a
melancolia com que Khutsiev olha tudo
se torna tão poderosa. E também tão indefinível: como ver – sinal de esperança?
mera compaixão? – aquele paralítico sobre o rosto do miúdo com que o filme se
encerra, como se Khutsiev tivesse encontrado, por entre a multidão moscovita, o
seu pequeno Antoine Doinel?
LMO