Sonho com um "double bill" composto por The Thing,
o filme de John Carpenter sobre um “inominável” (a “coisa”) e sobre os modos da
sua impossível apreensão e revelação, e por Le Horla. Também no centro do filme de Jean-Daniel
Pollet encontramos a “coisa”, a “coisa invisível”, não por acaso com origem
literária na mais delirante escrita “fantástica” (não importa quão opiácea) de
Guy de Maupassant. Em Le Horla,
filme com apenas uma personagem, construído à base de "flash-backs" e
"flash-forwards" (que aqui são acima de tudo uma maneira de saltar
por cima do tempo, de o anular, de o tornar, por sua vez, “invisível”), onde
praticamente não há "acção" mas apenas relato narrado para um
gravador (ou ouvido a partir dele), a "coisa invisível" está
destinada a permanecer enquanto tal: como no conto de Maupassant, a sua
monstruosidade é, sem chegar a ser uma metáfora, uma figuração ou prefiguração
da morte, o elemento imaginário (mas singularmente desprovido de imagem
possível) que vem introduzir a angústia de uma extinção iminente. Num belo
texto sobre o filme, Serge Daney escreveu que Pollet "filma entre a condenação e a morte: tudo é sobressalto, agonia próxima,
última palavra antes do silêncio". Ainda segundo Daney, "para Pollet, cineasta do inexorável, fazer
um filme consistiria em ganhar um pouco de tempo, em retardar um desfecho",
sabendo sempre que a morte acabará por chegar e por se impor. Nestas palavras
se resume admiravelmente a “dramaturgia” de Le Horla. Laurent Terzieff é o único, ou o último homem no
mundo, entre recordações (a casa, e as cores, tão vivas, fortíssimos apelos aos
sentidos, assim se constituindo em fortíssimos reflexos do que “ainda está vivo”)
e ruínas (o magistral aproveitamento daqueles “bunkers” que os alemães
construíram nas costas do Norte de França durante a II Guerra, sinal de uma
presença humana que, no filme, é em si mesma um indício de exterminação). O
que, no conto de Maupassant, era alucinação, produto de uma mente alterada, no
filme de Pollet adquire uma substância muito mais concreta (dir-se-ia “objectivada”, em oposição à subjectiva primeira pessoa do Horla de Maupassant). Não há nenhuma razão para acreditar que
Terzieff delire, nenhum juízo sobre a sua sanidade – porque o filme,
mostrando-nos o mundo vazio, o mundo “que fica”, inevitavelmente a confirma. O
gravador no barco amarelo (plano repetido, e porventura o plano decisivo)
contém o registo da agitação e da
resistência da personagem, um registo que de certa maneira é o próprio filme. O cinema, a fotografia, o som gravado, as “artes
técnicas”: vã ilusão de uma permanência, visto que não há ninguém à vista para o
receber em legado.
terça-feira, 25 de novembro de 2014
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
Sixteen Candles
Num
texto recentemente publicado nos Cahiers
du Cinéma, onde aproximava (ou afastava) os filmes de John Hughes e os
filmes de Judd Apatow, Serge Bozon conta como o produtor de The Breakfast Club ficou decepcionado
quando o realizador lhe mostrou pela primeira vez a montagem final desse filme:
“it’s a piece of shit; it’s just a bunch
of kids in school talking”. Esperava mais algum picante, e até tinha pedido
muito explicitamente a Hughes (assim como Joseph Levine pediu a Godard, no Mépris, que mostrasse o rabo de Bardot)
a inclusão de planos “com a professora de ginástica em topless”. Segundo o
texto de Bozon, Hughes fez-lhe a vontade, mas de maneira tão propositadamente
ridícula que foi o próprio produtor quem achou por bem retirar esses planos da
montagem final, e ficar apenas com “a bunch of kids in school talking”.
The Breakfast Club foi o segundo filme realizado por Hughes, no ano
seguinte ao da estreia com este Sixteen
Candles. Se recuperamos a história contada por Bozon é
porque ela resume dois aspectos cruciais dos filmes de John Hughes, pelo menos
destes filmes iniciais (Candles, Breakfast, Ferris Bueller’s Day Off e Pretty
in Pink, todos rodados entre 1984 e 1987) que ficaram como peças imbatíveis
de uma “teen americana” para os anos 80: 1) por um lado, são filmes que
trouxeram um novo modelo para o filme de adolescentes, que tinha então, por
exemplo através da série dos Porky’s,
o espectáculo da desbunda hormonal como princípio, meio e fim, e onde era
obviamente indispensável haver professoras de ginástica (ou doutra disciplina
qualquer) em topless; 2) sem excluir a desbunda hormonal, os filmes de Hughes
alargaram o espectro do universo adolescente (até em termos de um retrato
sociológico, que parece sempre justíssimo) a outros domínios, e tornaram-no
matéria de reflexão para as próprias personagens – daí que, já em Sixteen Candles, e embora haja imensas
peripécias, tudo tenda para se concentrar em torno de “a bunch of kids
talking”. “Kids” que estão, no caso de Sixteen
Candles, mais “preoccupied with sex”
do que “occupied”, para glosar um
memorável diálogo do The Moon is Blue
de Preminger. Pormenor que faz toda a diferença. Mas acrescentaríamos ainda um
terceiro aspecto, que também faz uma grande diferença pela sua raridade: um
filme como Sixteen Candles
aproxima-se de uma perspectiva feminina sobre a adolescência, tomada também
como uma espécie de filtro que cria uma distância ao olhar sobre os rapazes.
Não erramos por muito se dissermos que esta delicadeza foi inaugurada por
Hughes. Sixteen Candles, de resto,
quase nasceu por e para Molly Ringwald, a actriz “hughesiana” por excelência,
que praticamente não teve mais carreira relevante para além dos filmes que fez
com Hughes. Ringwald “nasceu” aqui, e o filme com ela. Começando pelo “casting”
enquanto ainda não tinha um argumento definido, Hughes contou que só depois de
encontrar Ringwald é que veio o resto: colou uma fotografia da rapariga na sua
secretária de trabalho, e com ela a inspirá-lo escreveu, durante um fim de
semana, o argumento de Sixteen Candles.
Sixteen Candles abriu assim uma obra curtíssima: a obra de Hughes
como realizador são 8 filmes, rodados entre 1984 e 1991. Depois deles continuou
a escrever e a produzir (nomeadamente Home
Alone, a sua maior bomba comercial), mas como realizador foi só isto. Hughes
(que morreu em 2009, aos 59 anos) era um “beatlemaníaco”, um daqueles que dizem
que a vida “mudou” quando descobriu os Beatles e o Bringing It All Back Home de Dylan, e parece que durante as
rodagens ouvia todos os dias, integralmente, um disco dos Beatles, como rotina
de inspiração ou concentração. O seu impacto cultural não pode, em rigor, ser
medido ao dos Beatles – mas também não pode por isso negar-se que a obra de
Hughes teve, de facto, um impacto cultural: e se o espectador cresceu durante
os anos 80, e está hoje à roda dos 40 anos, é muito provável que tenha sido tocado pelos filmes de Hughes ainda
antes de ter ouvido os Beatles com ouvidos de ouvir. Os arrabaldes de Chicago
(cenário de todos os filmes de Hughes) eram os arrabaldes de Chicago, mas havia
ali uma universalidade qualquer que também dizia (e continua a dizer) respeito
aos adolescentes de outras paragens, por exemplo Lisboa (que, já agora, só viu Sixteen Candles em 1988, recuperado
pela distribuição portuguesa depois do sucesso de Breakfast Club e de Ferris
Bueller’s Day Off). E essa universalidade, para os anos 80, ninguém a
filmou como Hughes, ficou estampada nos seus filmes como em certas canções
“pop” (que de resto abundam, em jeito de “malha”, na banda sonora de Sixteen Candles). Mas ainda a propósito
de canções e dos Beatles, coincidência que é irresistível notar: a banda de
Liverpool fez todos os seus álbuns em 7 anos, entre 1963 e 1970; o cineasta de
Chicago fez todos os seus filmes também em 7 anos.
Coincidências
é que não há nenhuma em Sixteen Candles.
Tudo é premeditação, construção, maturação. Impressiona a quantidade de
personagens relevantes, dos miúdos aos graúdos (os pais e os avós, estranhos
mas não demasiadamente estranhos), e o facto de a galeria de personagens cobrir
toda uma série de “tipos” sem nunca se converter em mera “tipologia”.
Impressiona o trabalho de concentração temporal da narrativa – 24 horas, pouco
mais – e ainda mais aquela longa noite de festas e desencontros onde há de tudo
(excessos, hesitações, estupidez, sensatez, mas sobretudo uma enorme ansiedade
e muito álcool), e depois o regresso à luz do dia, que não é a luz “fria” da
ressaca antes pelo contrário, é a luz que como uma leve tontura vem banhar
todas as personagens numa calma e numa aceitação que antes parecia impossível,
como se o “coming of age” acontecesse assim, literalmente de um dia para o
outro. Dezasseis velas, caramba: não tarda nada são adultos. Sixteen Candles é um dos mais bonitos (e divertidos) adeus à infância
que nos últimos 30 anos alguém fez, e o tempo só lhe caiu bem.
LMO
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Love With the Proper Stranger
O reencontro com um filme tão
belo – entre ele e Baby the Rain Must
Fall le coeur balance - como Love with the Proper Stranger não pode
senão confirmar a especificidade e a delicadeza de Mulligan, e a que ponto a
segunda (a delicadeza) decidia grande parte da primeira (a especificidade). Em
absoluto, mas também em termos relativos, quando se trata de devolver Mulligan
ao seu tempo (e a este tempo, os “early sixties” do cinema americano) e de o
integrar no grupo de realizadores a que ele é normalmente associado (a chamada “geração da
televisão”).
Se o “realismo” e a “rua” eram
tendências cada vez mais vincadas no cinema americano dos anos 60, esta
história nova-iorquina concilia-as (e tudo o que vem por acréscimo, em
particular a matéria “social”) com uma justeza de tom que faz a ponte com as
melhores tradições clássicas do melodrama e da love story – não é um acaso que o título do filme seja partilhado
com uma canção de Johnny Mercer, e que dela seja extraída a expressão (“bells
and banjoes”) que terá uma importância literal no desenlace (inesperado, divertido
e comovente, tudo ao mesmo tempo), já depois de ter tido uma importância
metafórica: “sinos e banjos” como arquétipo, ou estereotipo, de uma visão
romântica do amor, importada do imaginário cinematográfico e musical. A canção
de Mercer é, passe a expressão, uma “meta-lovesong”, uma “canção de amor sobre
as canções de amor”, parecida com as que Stephin Merritt hoje compõe. E o filme embebe-se do seu espírito, e da sua
distância ao mesmo tempo desconfiada e comovida: Love with the Proper Stranger está sempre em zigue-zague, girando
entre o cepticismo de quem não acredita nos “sinos e banjos” e a suspeita de
que, como as bruxas, “los haya” – e de facto, eles aparecem, mesmo que para
isso McQueen tenha tido que os enfiar pelos olhos (e ouvidos) de Natalie Wood
adentro, naquela fabulosa sequência final que não nos deixa perceber se nos
apetece mais rir ou se nos apetece mais chorar.
É certo, mas isso só mostra a subtileza
de Mulligan, que tudo isto (os “sinos e os banjos”, justamente) só distrai a
atenção sobre aquele que era suposto ser o “tema” do seu filme: o aborto. E
claro, da mensagem inerente, timidamente “liberal”: o aborto deve ser uma
escolha possível, sim, mas é melhor não a escolher, fazer um esforço para
arranjar as coisas de outra maneira. A única hipótese de este subtexto
medianamente moralizante ser contrariado era, justamente, tornar a “outra
maneira” suficientemente difícil, mas também suficientemente verdadeira, para
transformar a questão do aborto num mero detalhe narrativo. Coisa perfeitamente
conseguida. Mas a este respeito, nada como citar as belíssimas palavras de
Michel Mardore nos Cahiers, já depois
de ter aproximado o filme de Mulligan do espírito do jovem cinema francês (algo
que, como ele explica, não era “un mince hommage”): “Jamais cette lutte du mensonge et de l’amour (y compris la tendresse de
l’auteur pour ses personnages) ne se relâche. Il faudrait citer en détáil les
scènes (…) pour comprende comment un prêchi-prêcha se transforme, avec mille et
une mines de rien, en une planche d’écorché vif, ou l’approche des larmes fait
trembler le sourire de la cocasserie et du courage”.
Haveria de facto muitas cenas “qu’il
faudrait citer en détail”: o primeiro encontro entre Wood e McQueen, onde ela
já traz tanta coisa, e tão contraditória, no olhar; a maneira como, pelas
cambiantes desse mesmíssimo olhar, percebemos que é na verdade dum reencontro
que se trata, e que antes houve uma noite que ela não consegue esquecer e de
que ele não se consegue lembrar; as personagens secundárias, de Edie Adams (a
“Bárbara de Sevilha”, divertida “rima” para o apelido, Rossini, da família de
Natalie) ao pretendente de Natalie Wood, esse solitário tão cruelmente varrido
do filme, passando pela família italiana dela; a violência, crua e nua, física e
moral, da cena na casa de abortos clandestinos; os jogos de sedução entre
McQueen e Wood, mais o décor da loja de animais do Macy’s; o jantar que Wood,
enfim “mulherzinha independente”, oferece a McQueen, com os beijos no sofá e o
discurso decisivo (dela) sobre os “sinos e os banjos”; e no fim, obviamente, os
sinos e os banjos (sem aspas, porque literais).
Mas preferimos dedicar as últimas
linhas às duas verdades mais evidentes de Love
with the Proper Stranger. Que McQueen, com os seus modos de boxeur abandonado,
nunca foi tão comovente nem tão frágil. E que Natalie Wood (que foi filmada
pelos melhores, Ford e Ray à cabeça) nunca esteve simultaneamente tão bonita e
tão “real” – como diria Mardore, “ce n’est pas lá un mince hommage qui est
rendu à Robert Mulligan”.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
Matewan
Matewan foi um dos primeiros pontos altos na carreira de John
Sayles como realizador de cinema. Oriundo das “oficinas” de Roger Corman,
estivera ligado (como argumentista) a alguns filmes muito célebres de Joe Dante
(com quem voltaria a colaborar), como Piranha
ou The Howling (e pelo menos neste
último título, a sua marca é tão importante como a de Dante). Matewan, a quarta longa-metragem que
Sayles realizou, foi julgado suficientemente importante para constar da
cerimónia dos oscars desse ano, através da nomeação (justíssima) para o prémio
de melhor fotografia (a cargo do veterano Haskell Wexler). Nesses termos, foi
de facto o primeiro filme “importante” de Sayles, que até então tinha dirigido
algumas séries B (muito na linha de Corman) e apenas um filme de “série A”, Baby It’s You, uma comédia romântica
com Rosanna Arquette, primeira (e quase única) experiência do cineasta com um
grande estúdio hollywoodiano.
Foi, podemos dizê-lo, o momento
em que se tornou plenamente evidente a dimensão política dos filmes de Sayles,
característica que daí para a frente poucas vezes largou o seu cinema (um dos
seus últimos filmes, Silver City,
que em Portugal saiu directamente para DVD sem passar pelas salas, é uma
brilhante sátira aos “anos Bush”). Centra-se num episódio sucedido em 1920 e
passado à história como o “massacre de Matewan”, momento emblemático das lutas
sociais nos Estados Unidos (neste caso, da luta pelos direitos dos
trabalhadores, e especificamente, pelo direito dos mineiros de Matewan, pequena
cidade da Virgínia, à sindicalização). Acabou tudo num banho de sangue, quando
os mineiros e a comunidade local, com a cabeça em água, receberam à carabina o
grupo de “detectives” (hoje, chamar-lhes-íamos uma espécie de segurança
privada) com que a “companhia” proprietária de quase tudo o que havia em
Matewan (das minas às casas dos mineiros) pretendia resolver o assunto – “the
hard way”, como diz um deles – e remeter os mineiros às boas maneiras (comer e
calar) que as ideias “socialistas” importadas da Europa tinham posto em causa.
Depois do “massacre”, e como a narração “off” diz no final do filme, a
“companhia” ainda encontrou uma forma de conseguir uma pequena vingança, mas é
significativo que Sayles deixe esse detalhe para um posfácio não-visto, porque
assim Matewan fica o contrário de um
choradinho (como demasiadas vezes acontece em filmes de temática semelhante),
que em vez de mostrar os trabalhadores como “vítimas” narra, sem paternalismo
algum, o momento em que eles reagem – com ferro e com fogo, é caso para dizê-lo
– contra as opressões e as injustiças.
Parece que Sayles, que escreveu o
argumento sozinho, tomou algumas liberdades históricas, e em vez de escolher
entre a “lenda” e o “facto” resolveu ficar com o melhor das duas coisas. A
“lenda” e o “facto”: Sayles não é o mais fordiano dos cineastas, mas Matewan, e isto não pode deixar de ser
um elogio, exala uma “justeza”, um sentido de decência elementar, na descrição
da comunidade e das relações entre os seus membros (e das relações entre os
seus membros e os “ogres” enviados pela empresa: a dupla Hickey/Griggsy é um
bocado como Liberty Valance e os seus capangas), que torna pertinente a
lembrança de Ford. E já agora, quão estoicamente fordiana é a sequência em que
o jovem pregador (Will Oldham, futuro Bonnie Prince Billy, um dos grandes
“songwriters” americanos da actualidade) se serve de uma parábola bíblica para,
durante uma cerimónia, avisar os seus camaradas da injustiça que estão prestes
a cometer. A galeria de personagens, de resto, é fenomenal – o sindicalista
“red” de Chris Cooper, o esquivo, mas tão corajoso, polícia de David
Strathairn, a silenciosa Mary McDonnell, a infeliz Bridy Mae de Nancy Mette… E
todos os secundários, incluindo os grupos de negros e italianos (que a
“companhia” trazia para as minas para baixar os salários a toda a gente), que o
filme trata como “nuvens” sem ao mesmo tempo impedir que eles se individualizem
e se humanizem (e algum humor, um pouco… fordiano, na maneira como o filme
trata as tensões entre os brancos, os negros e os italianos).
São imensas personagens
importantes, de facto, e esse é um elemento tipicamente “saylesiano”: quem é o
“protagonista” de Matewan? Cooper,
Oldham (a quem, percebemos claramente no final, pertence a voz da narração
“off”), Strathairn, McDonnell?... Ou é o “grupo”, a comunidade, em todas as
suas harmonias e contradições? Dominando plenamente, como é seu hábito e traço
distintivo, a montagem paralela, Sayles constrói o filme numa particularíssima
gestão do tempo narrativo, sempre em “atraso”, sempre preferindo a
“simultaneidade” da acção à sua ostensiva “progressão” – como outros filmes de
Sayles, ou escritos por ele (o The
Howling de Dante também é assim), em Matewan
parece que se avança mais para os lados do que para a frente. Mas também é isso
que torna tão poderosa – como uma descarga de energia acumulada, que apanha o
espectador no seu próprio desejo de maniqueísmo – a cena do “shoot-out” final.
LMO
terça-feira, 11 de novembro de 2014
Blind Date
Blind Date pode ser um filme “tardio” de Blake Edwards, mas o que
ele propõe é uma espécie de retorno aos fundamentos do burlesco
cinematográfico, por um lado, e aos fundamentos da comédia “edwardsiana”. Que é
como quem diz, a duas palavras: “disrupção” e “destruição”. Como The Party, mais que provavelmente o
supra-sumo da obra de Blake Edwards, muito bem mostrou, para o cineasta os bons
cenários e adereços são os cenários e aos adereços que se podem partir,
subverter, destruir. Uma boa maneira de ver Blind Date é ir contando mentalmente a quantidade de “props” que
são destruídas – dos bolsos dos casacos (sequência do jantar com o empresário
japonês) a portas e vidros de automóveis. Tudo
é para partir, literalmente, até a cama de Kim Basinger, na cena em que Bruce
Willis a reencontra depois da noite demolidora (em todos os sentidos) que
passaram juntos: e é justamente por não haver nenhuma razão dramática para que
os pés da cama se partam, deixando-a inclinada, que a cena é genial – porque isso
permite a Blake Edwards filmar Kim Basinger a escorregar colchão abaixo e
colchão acima, e esse deslizamento constante torna-se o núcleo da cena, muito
mais do que o diálogo mantido pelas personagens (pouco depois de ver o filme já
ninguém se lembra do que é que eles disseram, mas toda a gente conserva na
memória a imagem de Basinger a debater-se com a inclinação do seu colchão).
E a “disrupção”, a perturbação, o
grão de areia que vem catalisar e promover a desordem, mesmo quando não é o seu
agente directo. A personagem de Basinger, nesse sentido, é perfeitamente
edwardsiana, conjunção do Inspector Clouseau e do Hrundi V. Bakshi (a
personagem de Peter Sellers em The Party)
num corpo feminino. É ela, com a sua fraca tolerância ao álcool, que lança o
caos na vida do pobre Willis e de todos os outros com quem se cruza – antes de,
na sequência final, quando é a vez dela ser a “pobre” Basinger, forçada a um
casamento que não deseja, ser resgatada por Willis exactamente através das
mesmas armas: o caos e a confusão instalados no que devia ser uma mera formalidade (a cerimónia nupcial).
Estamos, portanto, num território de subversão total, um território físico e
social que só existe enquanto domínio pronto a ser subvertido – este é todo o
princípio subjacente a Blind Date, o
que mostra bem como, em 1987, Blake Edwards continuava a ser Blake Edwards.
Para mais, com as ressonâncias
sociais muito concretas que lhe advém da época em que foi feito, aqueles anos
80 que foram, na América, a década “yuppie”. Blind Date partilha ligações muito concretas com outros filmes
desses anos, que também jogaram aquele pragmatismo, muito cinzento e muito
certinho, duma personagem “yuppie”, contra o poder desregulador de outra
personagem, normalmente feminina (um parentesco evidente de Blind Date é o Something Wild, de Jonathan Demme, quase contemporâneo; outro podia
ser o After Hours de Scorsese,
realizado um par de anos antes).
Subversão, ainda, no muito pouco
politicamente correcto (já naquela altura, hoje mais ainda) papel do álcool
nesta história. Blake Edwards (no primeiro Pink
Panther), já tinha feito o maior “gag” da história com champanhe e garrafas
de champanhe. Aqui o champanhe, mola para o descontrolo de Basinger, tem outra
um vez papel primordial, e e toda a primeira parte de Blind Date é pura “comédia alcóolica” encenada sem qualquer
moralismo ou advertência. Ironia, ainda mais se pensarmos que, nos anos 60, em Days of Wine and Roses, Edwards
abordara o álcool e o alcoolismo de maneira série e, evidentemente, muito mais
dramática.
Claro que, perante tantos e tão
grandes exemplos do superlativo talento de Blake Edwards, dizer que Blind Date, filme um tanto “lasso” e
com vários momentos bastante indiferentes, emparelha com o melhor da obra do
realizador seria um pouco exagerado. Mas os momentos perante os quais a
indiferença é impossível valem bem o resto: cenas ou sequências como as do
primeiro encontro Willis / Basinger, com as luzes a apagadas a retardarem a
revelação do rosto dela, as do caótico jantar com o japonês ou a da noite que
precede o casamento não deixam dúvidas: sim, Blind Date é um filme do mesmo cineasta de Pink Panther ou The Party,
e a mão dele está aqui inteirinha. No final dos anos 80 já não se fazia muito
disto.
LMO
quinta-feira, 6 de novembro de 2014
O Cinema tem espinhas - conversa com Aki Kaurismaki
Aki Kaurismaki, finlandês,
cinquenta anos, já tem uma costela portuguesa. Há muitos anos que passa cá o
Inverno, numa casa no Minho. Chega por volta de Setembro ou de Outubro, e volta
para a Finlândia no princípio da Primavera. Duas coisas denunciam imediatamente
essa costela: um muito razoável domínio da língua portuguesa, embora para a
entrevista propriamente dita prefira conversar em inglês; e, sobretudo, um
emblemazinho do Futebol Clube do Porto ostentado na lapela. Uma vez, há cerca
de dois anos, iniciou a apresentação de um filme seu na Cinemateca perguntando
quantos portistas havia na sala – a sua filiação clubística portuguesa é algo
que ele leva a sério. Os assuntos desportivos irromperam diversas vezes durante
a conversa que mantivemos com ele a propósito da estreia do seu mais recente
filme, “Luzes no Crepúsculo”: Kaurismaki é um conversador inteligente e
divertido, lacónico e caótico, e apreciador da cumplicidade.
É pelo desporto, aliás, que Kaurismaki
resolve um eventual problema de identidade. “Fui ao estádio ver o
Finlândia-Portugal em Helsínquia [jogo de qualificação para o campeonato da
Europa de futebol]. Tinha numa mão uma bandeira da Finlândia e na outra uma de
Portugal. Mas quando o jogo começou o sangue falou mais alto e comecei a torcer
pela Finlândia. Acho que no Dragão [o Portugal-Finlândia de quarta-feira, de
que o leitor já saberá o resultado] vai acontecer o mesmo”. Conversa puxa
conversa, mas não necessariamente em sequência, outro assunto desportivo caro a
Kaurismaki e aos finlandeses em geral, o automobilismo, ainda veio à baila.
“Era estúpido tirarem-lhe o título [a Kimi Raikkonen, finlandês campeão do
mundo de fórmula 1 em 2007, cujo título ficou durante algumas semanas pendente da
investigação dum imbróglio técnico-legal] por causa daquilo, não era?”.
(Julgámos ver-lhe um olhar reconfortado quando concordámos com ele). “Por que é
que somos tão bons nos automóveis? Porque somos estúpidos: sabemos que está ali
o pedal do travão mas preferimos ignorá-lo”.
Mas não era para falar de futebol
e de fórmula 1 que ali estávamos. O assunto era “Luzes no Crepúsculo”, terceiro
tomo de uma trilogia iniciada em “Nuvens Passageiras” e depois continuada em “O
Homem sem Passado”. Ou, como Kaurismaki, prefere chamar-lhe, “a sexta parte de
duas trilogias”. Uma para os anos 80, terminada com um dos seus filmes mais
célebres, “A Rapariga da Fábrica de Fósforos” (1990), outra para os anos 90
entrando pelo século XXI. São filmes, e trilogias, sobre os deserdados do
“sonho finlandês”, sobre aqueles que ficaram esquecidos pelo chamado milagre
económico finlandês que teve a Nokia por ponta de lança. Personagens extraídas
àquilo a que antigamente se chamava a “classe operária” ou o “proletariado”.
Diz Aki: “Já ninguém lhes chama assim, mas eles ainda ‘operam’, não se tornaram
capitalistas”. E têm, aparentemente, cada vez menos espaço – em “Nuvens
Passageiras” as personagens abriam um restaurante bem sucedido, em “O Homem sem
Passado” o protagonista refazia a vida depois de uma crise de amnésia, mas a
personagem principal de “Luzes no Crepúsculo” está sempre a bater contra a
parede, nada lhe corre bem e acaba num ermo. “É minha ideia acabar as trilogias
assim, com filmes rápidos, bruscos e tristes, praticamente sem humor nenhum”.
Ao contrário de “O Homem Sem Passado” (que era uma “comédia”, embora se possa
pensar que no cinema de Kaurismaki a diferença entre uma comédia e um drama
depende de pormenores minimais), “Luzes no Crepúsculo” é trágico e pessimista
como um conto russo. Na primeira cena, o protagonista ouve a conversa de três
tipos que descem a rua a conversar sobre escritores russos, como se decidissem
qual deles o mais desesperado – e fixam-se em Pushkin que (dizem eles) “mal
nasceu já estava morto”. É um aviso, um anúncio, para a personagem e para os
espectadores? “Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia. Escreva que sim. É
um aviso”.
Mas o espaço, o urbanismo e a
arquitectura imaculadamente modernas, brilhantes e envidraçadas de Helsínquia,
algures entre o “Alphaville” de Godard e o “Playtime” de Tati – este espaço
também é um protagonista do filme. “A minha ideia era que a personagem fosse
sendo sacudida e cuspida, rejeitada pelo cenário. Já não há lugares em Helsínquia.
A única hipótese é o campo, mas mesmo ele já foi estragado. Vocês têm sorte,
aqui em Portugal ainda há alguns lugares”. Nos filmes anteriores, Kaurismaki
encontrava e filmava uma espécie de “traseiras” desta nova Helsínquia, havia um
refúgio para as personagens. Em “Luzes do Crepúsculo” o monstro urbano
engole-as. “Helsínquia tornou-se uma cidade feia, mas feia num sentido
mesquinho [‘in a small way’]. Quanto maior, mais provinciana. Não me incomodam
os lugares feios, aliás gosto de lugares feios. Mas aborrecem-me os lugares
feios e chatos. E filmei na parte mais chata de Helsínquia. Até fui
supreendido, porque escrevi o filme aqui em Portugal, e quando fui para
Helsínquia essa parte da cidade tinha-se tornado ainda mais chata do que o que
era. Acho que quem vê o filme percebe que há melhores cidades para se ir passar
férias”. O pessimismo de “Luzes no Crepúsculo” é reforçado pelo facto de
Kaurismaki não conceder à sua personagem a bênção de partir para outro lugar no
fim do filme. “Este estava demasiado ferido, demasiado espancado. Mas dei-lhe o
amor, isso não basta?” Kaurismaki está-se a referir ao último plano do filme,
muito bonito e muito curto – as mãos dadas do protagonista e da rapariga que
não o abandona (e é um plano curtíssimo, dos mais curtos planos finais que já
vimos – “filmei em Junho e só havia vinte minutos de escuridão em Helsínquia”,
diz Aki, “não volto a filmar em Helsínquia no Verão, a menos, claro, que queira
o Verão”). O realizador pensou mesmo matar a personagem (“penso sempre em matar
as personagens, mas depois comovo-me e não consigo”), e filmou dois finais, com
morte e sem morte, e para a última sequência acabou por usar material de ambos.
Em todo o caso, o pessimismo nem permite a provocação – como em “Sombras no
Paraíso” (“o meu filme mais optimista de sempre”), que terminava com os
protagonistas a apanharem um “ferry” para a Estónia (então, anos 80, parte da
URSS). “Era uma maneira de dizer que tudo era melhor do que ficar na Finlândia.
E era uma citação de um filme finlandês dos anos 50, que acabava com as
personagens num ‘ferry’ para a Suécia. Nessa altura muitos finlandeses
emigravam para a Suécia”.
Mas esta Finlândia existe mesmo,
ou corremos o risco de a confundir com aquilo a que Peter von Bagh (ex-director
da cinemateca finlandesa, crítico, historiador e enciclopedista) chamou uma vez
a “Kaurismakilândia”, espécie de manto lançado por Aki sobre o país e os seus
lugares, mas não necessariamente coincidente? “Não sei dizer. Estou demasiado
dentro. É como quando as pessoas me perguntam se o meu humor é finlandês.
Respondo que deve ser finlandês, visto que eu próprio sou finlandês”. O que não
o impede de falar do seu país como de um marasmo letal. “Nós nem temos nada a
que nos opor, politicamente. É uma coisa que faz muita falta. Mas até os nossos
políticos são desesperantemente honestos. Não roubam, não são corruptos. Quer
dizer, roubam, mas dentro da legalidade”. Esse marasmo ajuda a perceber
histórias como a do miúdo que há poucas semanas disparou indiscriminadamente
sobre colegas e professores do seu liceu? “É uma história muito triste. Mas
acho normal. Se queremos importar a cultura americana temos que importar tudo.
Não podemos importar só o lado bom”.
Aki não faz, de resto, muita fé
na juventude. Perguntamos-lhe pela sala de cinema que detém, em sociedade com o
seu irmão Mika (igualmente cineasta), em Helsínquia. Durante anos tentou manter
uma programação alternativa. Mas sem viabilidade comercial. “É impossível. A
sala está aberta, mas quase só para festivais e coisas do género. Há uns tempos
exibimos um programa duplo de Jean Vigo, com ‘Zero de Conduite’ e ‘L’Atalante’,
mas não dá. Aparecem alguns, mas não em número suficiente. É mais fácil comer
um hamburger. O cinema tem espinhas, é complicado”. Por falar em coisas fáceis
de mastigar, lembramos Aki de que uma das mais bizarras ocorrências no cinema
mundial dos últimos anos foi o ouvir o seu nome ser pronunciado em plena
cerimónia dos óscares, quando “O Homem sem Passado” foi nomeado para melhor
filme em língua estrangeira. Kaurismaki põe um ar envergonhado: “Não pude
evitar. O filme tinha uma participação da Finnish Film Foundation, que é um
organismo estatal e para eles era importante, hoje toda a gente vive obcecada
com os óscares. Eu nem fui lá, não quero saber daquilo para nada”. Kaurismaki
tem uma ideia muito precisa sobre o que não gosta na Hollywood contemporânea.
“Nos anos 40, as estrelas eram adultos, hoje são crianças grandes. Quando se
pensa que, por exemplo, James Stewart esteve na II Guerra Mundial, a pilotar bombardeiros
sobre a Alemanha…”. De facto, é totalmente irrealista imaginar Brad Pitt a ir
para o Iraque e a voltar com o cabelo grisalho – realmente grisalho, como o
Stewart de depois da guerra, não a patética “make up” de “Babel”. “Brad Pitt,
pfff… James Stewart comia ‘starlets’ como ele ao pequeno almoço”.
Lee Marvin, esse sim, era um
homem. Kaurismaki rebusca a carteira, à procura do cartão de membro dos “Filhos
de Lee Marvin”, sociedade secreta (“ninguém sabe ao certo quantos membros tem”)
de que primeiro se ouviu falar há uns vinte anos, anunciada por Jim Jarmusch
(Nick Cave, Tom Waits, John Lurie, são supostamente outros membros, mas nada
disto é certo, para além de ser secreto). Mas não encontra o cartão: “aposto
que o Peter von Bagh mo roubou, porque foi a última pessoa a quem o mostrei”.
Terá que ficar para a próxima. Provavelmente numa altura em que “já teremos
vendido o Quaresma e o Lucho – os presidentes dos clubes de futebol deviam ser
todos despedidos”.
LMO (em 2007; como o tempo passa)
quarta-feira, 5 de novembro de 2014
L'Argent
Entrevistado por Michel Ciment,
que lhe perguntou como acontecia a decisão de aproveitar determinada história
que estivesse a ler como base para um filme, Robert Bresson respondeu: “No caso de A Nota Falsa soube imediatamente. Vi o filme
imediatamente, porque a história se relacionava com a minha vontade de fazer um
filme sobre uma reacção em cadeia conducente a um grande desastre. Uma nota de
banco que acaba por assassinar uma quantidade de gente. Porque é que Julien
Sorel matou Madame de Renal [personagens d’O Vermelho e o Negro, de Stendhal]? Saberia cinco minutos antes de o fazer que o ia fazer? Claro que não.
Que aconteceu nesse momento preciso? As forças da rebelião libertam-se
subitamente no interior de um indivíduo, todo o ódio escondido que se vai
acumulando lá dentro. Interessava-me mais o relato que Tolstoi fazia disto do
que as suas ideias religiosas (…)”. Na mesma entrevista, mas noutro ponto
(anterior, curiosamente), explicou como e porquê se afastou da história de
Tolstoi: “Há uma altura em que me liberto
completamente, como um cavalo com a rédea solta, e deixo a minha imaginação
conduzir-me aonde quiser. A história de Tolstoi é bastante diferente [do
filme]. (…) No princípio Tolstoi
refere-se a Deus e aos Evangelhos. Não podia seguir por aí porque o meu filme é
sobre a indiferença inconsciente dos nossos dias, em que as pessoas só pensam
nelas próprias e nas suas famílias”.
Não sendo, obviamente (quando se
trata de um filme como L’Argent), as
únicas pistas possíveis, Bresson apontou e “autorizou” assim aquelas que foram
(e são ainda) as duas principais pistas seguidas por exegetas e comentadores da
sua obra e, em particular, deste seu derradeiro filme.
Por um lado, o irracional, o
inexplicável, a explosão (o “grande desastre”) que se segue a uma “reacção em
cadeia” – algo que, por definição, tem a ver com a física ou com a química, com
a ideia de um mecanismo autónomo e auto-suficiente, que pelo menos uma vez
posto em marcha escapa a qualquer controlo ou vontade humana. Evidentemente,
não somos os primeiros, nem seremos com certeza os últimos, a associar por este
tema Le Diable Probablement e L’Argent, como se os dois últimos
filmes de Bresson olhassem um para o outro, com possível extensão a Au Hasard Balthasar, que tem uma
estrutura a vários títulos aproximável da de L’Argent, partilhando aquilo a que alguns comentadores chamaram uma
“estética do caos” (e que, no fim de contas, é apenas outro nome para a
“reacção em cadeia” descrita por Bresson).
Por outro, a questão social, ou o
tema da sociedade descrita (e criticada) como frio mecanismo triturador de
indivíduos, com o dinheiro como móbil (Bresson também falou disso: “tudo o que
importa a toda a gente é o dinheiro”). Que prato pesa mais na balança de L’Argent? A “metafísica” ou a
“política”? Será possível dissociá-las ou, neste caso concreto, enformam-se uma
à outra? Há um texto muito curioso (e, eventualmente, muito contestável) de
Alberto Moravia que propõe, com bastante originalidade, a interligação dos dois
termos. Partindo do pressuposto de que em L’Argent
“o mal” era “a própria existência do dinheiro, independentemente de ser falso
ou não”, Moravia concluía que Bresson encontrava “o bem”, em referência às
sequências de Yvon com a família rural, “nas
antigas virtudes da civilização francesa, aquela tradicional mistura de rigor,
análise e racionalismo – a marca distintiva do génio nacional. Por outras
palavras, o ‘bem’ transforma-se em ‘estilo’. Daqui chegamos à curiosa conclusão
de que o mal se encontra na vida, enquanto o bem está no modo como essa vida é
representada. O machado sangrento com que o assassino mata as suas vítimas é um
objecto mau, mas a imagem do machado é benéfica. Em resumo, o estilo exorciza o
mal”.
É interessante que Moravia use o
machado como exemplo para ilustrar a questão do “estilo”, porque os planos dos
assassínios (o machado propriamente dito, a elipse do candeeiro e das manchas
de sangue no papel de parede) estão entre os mais “estilizados” de L’Argent. O “humano” quase desaparece,
ficam os objectos (o machado) e as marcas do seu trabalho (as manchas de
sangue). Como se fosse uma maneira de mostrar um “mal” em abstracção, algo que
não está nos homens mas se serve deles, que faz deles “veículos”. Em termos
figurativos, o “estilo” talvez não seja o que “exorciza” o mal mas o que
permite a sua representação e, de alguma maneira, a sua objectivação. Nesse
sentido “utilitário”, desde os que mentem em tribunal aos que são mortos,
passando por aquele que mata (Yvon), todos são vítimas.
Vítimas, e sem redenção. Bresson
disse que gostaria de ter filmado a redenção de Yvon mas que isso “estragaria o
ritmo do filme”. Que se conclui assim –
e não esqueçamos, também a obra de Bresson, mesmo que não tenha sido um fim
premeditado – com um dos mais terrificantes planos de todo o seu cinema. Levado
pela polícia, Yvon sai de campo, e a pouca luz do plano é logo a seguir cortada
pelo “negro” final, sem música e sem genérico de fecho. Ou seja, uma espécie de
“nada”. Não há nenhum “drôle de chemin” que leve Yvon para junto de quem quer
que seja. Jeanne, a possível Jeanne de Yvon, foi-se embora a meio do filme,
estava Yvon na prisão como Michel em Pickpocket.
LMO
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Casa de Lava
Everything good dies here, even the stars
Quando Casa de Lava estreou em 1995, ninguém, nem mesmo os que imediatamente o reconheceram como um título capital, podia imaginar o rasto – o rastilho – que este filme deixaria na obra de Pedro Costa. Esse rastilho ainda não deixou de arder, como sabe quem tem acompanhado essa obra, e como pôde confirmar quem já tiver visto o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro. Mas em 1995 era inimaginável a consequência que Casa de Lava teria, ou a descendência: num certo sentido que não é preciso rebuscar muito, quase o que tudo o que Costa fez entre Ossos e Cavalo Dinheiro é um “filho” deste filme.
Rebuscando um bocadinho mais, aqueles planos do vulcão em erupção, o fogo na Ilha do Fogo, que abrem Casa de Lava (e que são extraídos a Erupção da Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro), têm hoje um duplo sentido: não anunciam apenas a natureza de um território específico, a ilha caboverdeana onde o essencial do filme decorre, anunciam também essa “lava” que Pedro Costa ainda não deixou de trabalhar. O espectador que nunca tenha visto Casa de Lava, mas conheça a obra posterior do realizador, não deixará de se espantar com a quantidade de coisas – por exemplo a carta dos “cem mil cigarros” – que aqui se prefiguram ou que depois serão liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes.
É um filme que “corta”, evidentemente, assim como o som dos violinos (o primeiro som do filme) vem cortar o silêncio que nos primeiros instantes acompanhara as imagens do vulcão. Pedro Costa referiu, ao longo dos anos e por várias vezes, a que ponto Casa de Lava representou uma tentativa de “fuga” ao cinema, às suas convenções de produção e de narração, e até em termos de fuga a um imaginário, estritamente português e interiormente português, que ainda era o de O Sangue, a sua belíssima primeira-obra. Por acaso ou não, se esse desejo de “fuga” está estampado em Casa de Lava, também está o seu reverso, a “atracção”. Todo o filme, mesmo narrativamente, vive desta tensão inexorável – a história de Inês Medeiros, a história de Edith Scob, a história de Isaach de Bankolé, a história de todos aqueles que sonham em partir e vir viver para Sacavém. Mais que um vulcão, é de um campo magnético que se trata, da “descrição de uma ilha” como um implacável centro de gravidade – tão implacável que, no princípio da história, começa por “chamar” Leão do alto de um andaime. Mas implacável também nessa relação com o cinema, a que volta sempre: se Pedro Costa começou pelo desejo, mais ou menos “lato”, de fazer um “remake” de I Walked With a Zombie (de que ficou, mais do que um “remake” da narrativa, a evocação de um ambiente, a evocação de uma “ilha dos mortos” como a que o filme de Tourneur também citava, um sítio onde “tudo é que é bom morre, até as estrelas”), da sua matéria constam ainda alguns outros encontros, ou algumas outras atracções: é, por exemplo, a presença de Edith Scob na mais “exógena” das personagens de Casa de Lava, que foi os “olhos sem rosto” de Franju e que aqui é, não só mas também, uma máscara, ou toda a sequência com Inês de Medeiros pela encosta do vulcão acima, sequência que é também uma espécie de “remake”, ou de evocação colorida (“rouge et noir”, vermelho contra preto) do final do Stromboli de Rossellini, outra filme de uma ilha como campo magnético e possessivo.
Diríamos que este movimento, ou esta colisão entre movimentos, está presente também no filme no modo como ele se relaciona com uma “verdade” histórica e social. Ficar com ela – com o passado português, o Tarrafal e a “morte lenta”, com o presente das grandes cidades portuguesas, essa Sacavém que depois Costa viria a encontrar no Bairro das Fontaínhas – ou abandoná-la, e partir rumo a um domínio de “fantasmas”. Também sobre isto gira Casa de Lava, e talvez seja mesmo o seu essencial: um encontro entre a “terra queimada” e os espíritos que dela brotam. No seu mais feliz, o encontro consubstancia-se na música, e nas maravilhosamente escuras cenas com as “mornas”.
LMO
LMO
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