terça-feira, 25 de novembro de 2014

Le Horla



Sonho com um "double bill" composto por The Thing, o filme de John Carpenter sobre um “inominável” (a “coisa”) e sobre os modos da sua impossível apreensão e revelação, e por Le Horla. Também no centro do filme de Jean-Daniel Pollet encontramos a “coisa”, a “coisa invisível”, não por acaso com origem literária na mais delirante escrita “fantástica” (não importa quão opiácea) de Guy de Maupassant. Em Le Horla, filme com apenas uma personagem, construído à base de "flash-backs" e "flash-forwards" (que aqui são acima de tudo uma maneira de saltar por cima do tempo, de o anular, de o tornar, por sua vez, “invisível”), onde praticamente não há "acção" mas apenas relato narrado para um gravador (ou ouvido a partir dele), a "coisa invisível" está destinada a permanecer enquanto tal: como no conto de Maupassant, a sua monstruosidade é, sem chegar a ser uma metáfora, uma figuração ou prefiguração da morte, o elemento imaginário (mas singularmente desprovido de imagem possível) que vem introduzir a angústia de uma extinção iminente. Num belo texto sobre o filme, Serge Daney escreveu que Pollet "filma entre a condenação e a morte: tudo é sobressalto, agonia próxima, última palavra antes do silêncio". Ainda segundo Daney, "para Pollet, cineasta do inexorável, fazer um filme consistiria em ganhar um pouco de tempo, em retardar um desfecho", sabendo sempre que a morte acabará por chegar e por se impor. Nestas palavras se resume admiravelmente a “dramaturgia” de Le Horla. Laurent Terzieff é o único, ou o último homem no mundo, entre recordações (a casa, e as cores, tão vivas, fortíssimos apelos aos sentidos, assim se constituindo em fortíssimos reflexos do que “ainda está vivo”) e ruínas (o magistral aproveitamento daqueles “bunkers” que os alemães construíram nas costas do Norte de França durante a II Guerra, sinal de uma presença humana que, no filme, é em si mesma um indício de exterminação). O que, no conto de Maupassant, era alucinação, produto de uma mente alterada, no filme de Pollet adquire uma substância muito mais concreta (dir-se-ia “objectivada”, em oposição à subjectiva primeira pessoa do Horla de Maupassant). Não há nenhuma razão para acreditar que Terzieff delire, nenhum juízo sobre a sua sanidade – porque o filme, mostrando-nos o mundo vazio, o mundo “que fica”, inevitavelmente a confirma. O gravador no barco amarelo (plano repetido, e porventura o plano decisivo) contém o registo da agitação e da resistência da personagem, um registo que de certa maneira é o próprio filme. O cinema, a fotografia, o som gravado, as “artes técnicas”: vã ilusão de uma permanência, visto que não há ninguém à vista para o receber em legado.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Sixteen Candles



Num texto recentemente publicado nos Cahiers du Cinéma, onde aproximava (ou afastava) os filmes de John Hughes e os filmes de Judd Apatow, Serge Bozon conta como o produtor de The Breakfast Club ficou decepcionado quando o realizador lhe mostrou pela primeira vez a montagem final desse filme: “it’s a piece of shit; it’s just a bunch of kids in school talking”. Esperava mais algum picante, e até tinha pedido muito explicitamente a Hughes (assim como Joseph Levine pediu a Godard, no Mépris, que mostrasse o rabo de Bardot) a inclusão de planos “com a professora de ginástica em topless”. Segundo o texto de Bozon, Hughes fez-lhe a vontade, mas de maneira tão propositadamente ridícula que foi o próprio produtor quem achou por bem retirar esses planos da montagem final, e ficar apenas com “a bunch of kids in school talking”.

The Breakfast Club foi o segundo filme realizado por Hughes, no ano seguinte ao da estreia com este Sixteen Candles. Se recuperamos a história contada por Bozon é porque ela resume dois aspectos cruciais dos filmes de John Hughes, pelo menos destes filmes iniciais (Candles, Breakfast, Ferris Bueller’s Day Off e Pretty in Pink, todos rodados entre 1984 e 1987) que ficaram como peças imbatíveis de uma “teen americana” para os anos 80: 1) por um lado, são filmes que trouxeram um novo modelo para o filme de adolescentes, que tinha então, por exemplo através da série dos Porky’s, o espectáculo da desbunda hormonal como princípio, meio e fim, e onde era obviamente indispensável haver professoras de ginástica (ou doutra disciplina qualquer) em topless; 2) sem excluir a desbunda hormonal, os filmes de Hughes alargaram o espectro do universo adolescente (até em termos de um retrato sociológico, que parece sempre justíssimo) a outros domínios, e tornaram-no matéria de reflexão para as próprias personagens – daí que, já em Sixteen Candles, e embora haja imensas peripécias, tudo tenda para se concentrar em torno de “a bunch of kids talking”. “Kids” que estão, no caso de Sixteen Candles, mais “preoccupied with sex” do que “occupied”, para glosar um memorável diálogo do The Moon is Blue de Preminger. Pormenor que faz toda a diferença. Mas acrescentaríamos ainda um terceiro aspecto, que também faz uma grande diferença pela sua raridade: um filme como Sixteen Candles aproxima-se de uma perspectiva feminina sobre a adolescência, tomada também como uma espécie de filtro que cria uma distância ao olhar sobre os rapazes. Não erramos por muito se dissermos que esta delicadeza foi inaugurada por Hughes. Sixteen Candles, de resto, quase nasceu por e para Molly Ringwald, a actriz “hughesiana” por excelência, que praticamente não teve mais carreira relevante para além dos filmes que fez com Hughes. Ringwald “nasceu” aqui, e o filme com ela. Começando pelo “casting” enquanto ainda não tinha um argumento definido, Hughes contou que só depois de encontrar Ringwald é que veio o resto: colou uma fotografia da rapariga na sua secretária de trabalho, e com ela a inspirá-lo escreveu, durante um fim de semana, o argumento de Sixteen Candles.

Sixteen Candles abriu assim uma obra curtíssima: a obra de Hughes como realizador são 8 filmes, rodados entre 1984 e 1991. Depois deles continuou a escrever e a produzir (nomeadamente Home Alone, a sua maior bomba comercial), mas como realizador foi só isto. Hughes (que morreu em 2009, aos 59 anos) era um “beatlemaníaco”, um daqueles que dizem que a vida “mudou” quando descobriu os Beatles e o Bringing It All Back Home de Dylan, e parece que durante as rodagens ouvia todos os dias, integralmente, um disco dos Beatles, como rotina de inspiração ou concentração. O seu impacto cultural não pode, em rigor, ser medido ao dos Beatles – mas também não pode por isso negar-se que a obra de Hughes teve, de facto, um impacto cultural: e se o espectador cresceu durante os anos 80, e está hoje à roda dos 40 anos, é muito provável que tenha sido tocado pelos filmes de Hughes ainda antes de ter ouvido os Beatles com ouvidos de ouvir. Os arrabaldes de Chicago (cenário de todos os filmes de Hughes) eram os arrabaldes de Chicago, mas havia ali uma universalidade qualquer que também dizia (e continua a dizer) respeito aos adolescentes de outras paragens, por exemplo Lisboa (que, já agora, só viu Sixteen Candles em 1988, recuperado pela distribuição portuguesa depois do sucesso de Breakfast Club e de Ferris Bueller’s Day Off). E essa universalidade, para os anos 80, ninguém a filmou como Hughes, ficou estampada nos seus filmes como em certas canções “pop” (que de resto abundam, em jeito de “malha”, na banda sonora de Sixteen Candles). Mas ainda a propósito de canções e dos Beatles, coincidência que é irresistível notar: a banda de Liverpool fez todos os seus álbuns em 7 anos, entre 1963 e 1970; o cineasta de Chicago fez todos os seus filmes também em 7 anos.


Coincidências é que não há nenhuma em Sixteen Candles. Tudo é premeditação, construção, maturação. Impressiona a quantidade de personagens relevantes, dos miúdos aos graúdos (os pais e os avós, estranhos mas não demasiadamente estranhos), e o facto de a galeria de personagens cobrir toda uma série de “tipos” sem nunca se converter em mera “tipologia”. Impressiona o trabalho de concentração temporal da narrativa – 24 horas, pouco mais – e ainda mais aquela longa noite de festas e desencontros onde há de tudo (excessos, hesitações, estupidez, sensatez, mas sobretudo uma enorme ansiedade e muito álcool), e depois o regresso à luz do dia, que não é a luz “fria” da ressaca antes pelo contrário, é a luz que como uma leve tontura vem banhar todas as personagens numa calma e numa aceitação que antes parecia impossível, como se o “coming of age” acontecesse assim, literalmente de um dia para o outro. Dezasseis velas, caramba: não tarda nada são adultos. Sixteen Candles é um dos  mais bonitos (e divertidos) adeus à infância que nos últimos 30 anos alguém fez, e o tempo só lhe caiu bem.

LMO

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Love With the Proper Stranger



O reencontro com um filme tão belo – entre ele e Baby the Rain Must Fall le coeur balance - como Love with the Proper Stranger não pode senão confirmar a especificidade e a delicadeza de Mulligan, e a que ponto a segunda (a delicadeza) decidia grande parte da primeira (a especificidade). Em absoluto, mas também em termos relativos, quando se trata de devolver Mulligan ao seu tempo (e a este tempo, os “early sixties” do cinema americano) e de o integrar no grupo de realizadores a que ele é normalmente associado (a chamada “geração da televisão”).

Se o “realismo” e a “rua” eram tendências cada vez mais vincadas no cinema americano dos anos 60, esta história nova-iorquina concilia-as (e tudo o que vem por acréscimo, em particular a matéria “social”) com uma justeza de tom que faz a ponte com as melhores tradições clássicas do melodrama e da love story – não é um acaso que o título do filme seja partilhado com uma canção de Johnny Mercer, e que dela seja extraída a expressão (“bells and banjoes”) que terá uma importância literal no desenlace (inesperado, divertido e comovente, tudo ao mesmo tempo), já depois de ter tido uma importância metafórica: “sinos e banjos” como arquétipo, ou estereotipo, de uma visão romântica do amor, importada do imaginário cinematográfico e musical. A canção de Mercer é, passe a expressão, uma “meta-lovesong”, uma “canção de amor sobre as canções de amor”, parecida com as que Stephin Merritt hoje compõe. E  o filme embebe-se do seu espírito, e da sua distância ao mesmo tempo desconfiada e comovida: Love with the Proper Stranger está sempre em zigue-zague, girando entre o cepticismo de quem não acredita nos “sinos e banjos” e a suspeita de que, como as bruxas, “los haya” – e de facto, eles aparecem, mesmo que para isso McQueen tenha tido que os enfiar pelos olhos (e ouvidos) de Natalie Wood adentro, naquela fabulosa sequência final que não nos deixa perceber se nos apetece mais rir ou se nos apetece mais chorar.

É certo, mas isso só mostra a subtileza de Mulligan, que tudo isto (os “sinos e os banjos”, justamente) só distrai a atenção sobre aquele que era suposto ser o “tema” do seu filme: o aborto. E claro, da mensagem inerente, timidamente “liberal”: o aborto deve ser uma escolha possível, sim, mas é melhor não a escolher, fazer um esforço para arranjar as coisas de outra maneira. A única hipótese de este subtexto medianamente moralizante ser contrariado era, justamente, tornar a “outra maneira” suficientemente difícil, mas também suficientemente verdadeira, para transformar a questão do aborto num mero detalhe narrativo. Coisa perfeitamente conseguida. Mas a este respeito, nada como citar as belíssimas palavras de Michel Mardore nos Cahiers, já depois de ter aproximado o filme de Mulligan do espírito do jovem cinema francês (algo que, como ele explica, não era “un mince hommage”): “Jamais cette lutte du mensonge et de l’amour (y compris la tendresse de l’auteur pour ses personnages) ne se relâche. Il faudrait citer en détáil les scènes (…) pour comprende comment un prêchi-prêcha se transforme, avec mille et une mines de rien, en une planche d’écorché vif, ou l’approche des larmes fait trembler le sourire de la cocasserie et du courage”.

Haveria de facto muitas cenas “qu’il faudrait citer en détail”: o primeiro encontro entre Wood e McQueen, onde ela já traz tanta coisa, e tão contraditória, no olhar; a maneira como, pelas cambiantes desse mesmíssimo olhar, percebemos que é na verdade dum reencontro que se trata, e que antes houve uma noite que ela não consegue esquecer e de que ele não se consegue lembrar; as personagens secundárias, de Edie Adams (a “Bárbara de Sevilha”, divertida “rima” para o apelido, Rossini, da família de Natalie) ao pretendente de Natalie Wood, esse solitário tão cruelmente varrido do filme, passando pela família italiana dela; a violência, crua e nua, física e moral, da cena na casa de abortos clandestinos; os jogos de sedução entre McQueen e Wood, mais o décor da loja de animais do Macy’s; o jantar que Wood, enfim “mulherzinha independente”, oferece a McQueen, com os beijos no sofá e o discurso decisivo (dela) sobre os “sinos e os banjos”; e no fim, obviamente, os sinos e os banjos (sem aspas, porque literais).


Mas preferimos dedicar as últimas linhas às duas verdades mais evidentes de Love with the Proper Stranger. Que McQueen, com os seus modos de boxeur abandonado, nunca foi tão comovente nem tão frágil. E que Natalie Wood (que foi filmada pelos melhores, Ford e Ray à cabeça) nunca esteve simultaneamente tão bonita e tão “real” – como diria Mardore, “ce n’est pas lá un mince hommage qui est rendu à Robert Mulligan”.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Matewan



Matewan foi um dos primeiros pontos altos na carreira de John Sayles como realizador de cinema. Oriundo das “oficinas” de Roger Corman, estivera ligado (como argumentista) a alguns filmes muito célebres de Joe Dante (com quem voltaria a colaborar), como Piranha ou The Howling (e pelo menos neste último título, a sua marca é tão importante como a de Dante). Matewan, a quarta longa-metragem que Sayles realizou, foi julgado suficientemente importante para constar da cerimónia dos oscars desse ano, através da nomeação (justíssima) para o prémio de melhor fotografia (a cargo do veterano Haskell Wexler). Nesses termos, foi de facto o primeiro filme “importante” de Sayles, que até então tinha dirigido algumas séries B (muito na linha de Corman) e apenas um filme de “série A”, Baby It’s You, uma comédia romântica com Rosanna Arquette, primeira (e quase única) experiência do cineasta com um grande estúdio hollywoodiano.

Foi, podemos dizê-lo, o momento em que se tornou plenamente evidente a dimensão política dos filmes de Sayles, característica que daí para a frente poucas vezes largou o seu cinema (um dos seus últimos filmes, Silver City, que em Portugal saiu directamente para DVD sem passar pelas salas, é uma brilhante sátira aos “anos Bush”). Centra-se num episódio sucedido em 1920 e passado à história como o “massacre de Matewan”, momento emblemático das lutas sociais nos Estados Unidos (neste caso, da luta pelos direitos dos trabalhadores, e especificamente, pelo direito dos mineiros de Matewan, pequena cidade da Virgínia, à sindicalização). Acabou tudo num banho de sangue, quando os mineiros e a comunidade local, com a cabeça em água, receberam à carabina o grupo de “detectives” (hoje, chamar-lhes-íamos uma espécie de segurança privada) com que a “companhia” proprietária de quase tudo o que havia em Matewan (das minas às casas dos mineiros) pretendia resolver o assunto – “the hard way”, como diz um deles – e remeter os mineiros às boas maneiras (comer e calar) que as ideias “socialistas” importadas da Europa tinham posto em causa. Depois do “massacre”, e como a narração “off” diz no final do filme, a “companhia” ainda encontrou uma forma de conseguir uma pequena vingança, mas é significativo que Sayles deixe esse detalhe para um posfácio não-visto, porque assim Matewan fica o contrário de um choradinho (como demasiadas vezes acontece em filmes de temática semelhante), que em vez de mostrar os trabalhadores como “vítimas” narra, sem paternalismo algum, o momento em que eles reagem – com ferro e com fogo, é caso para dizê-lo – contra as opressões e as injustiças.

Parece que Sayles, que escreveu o argumento sozinho, tomou algumas liberdades históricas, e em vez de escolher entre a “lenda” e o “facto” resolveu ficar com o melhor das duas coisas. A “lenda” e o “facto”: Sayles não é o mais fordiano dos cineastas, mas Matewan, e isto não pode deixar de ser um elogio, exala uma “justeza”, um sentido de decência elementar, na descrição da comunidade e das relações entre os seus membros (e das relações entre os seus membros e os “ogres” enviados pela empresa: a dupla Hickey/Griggsy é um bocado como Liberty Valance e os seus capangas), que torna pertinente a lembrança de Ford. E já agora, quão estoicamente fordiana é a sequência em que o jovem pregador (Will Oldham, futuro Bonnie Prince Billy, um dos grandes “songwriters” americanos da actualidade) se serve de uma parábola bíblica para, durante uma cerimónia, avisar os seus camaradas da injustiça que estão prestes a cometer. A galeria de personagens, de resto, é fenomenal – o sindicalista “red” de Chris Cooper, o esquivo, mas tão corajoso, polícia de David Strathairn, a silenciosa Mary McDonnell, a infeliz Bridy Mae de Nancy Mette… E todos os secundários, incluindo os grupos de negros e italianos (que a “companhia” trazia para as minas para baixar os salários a toda a gente), que o filme trata como “nuvens” sem ao mesmo tempo impedir que eles se individualizem e se humanizem (e algum humor, um pouco… fordiano, na maneira como o filme trata as tensões entre os brancos, os negros e os italianos).


São imensas personagens importantes, de facto, e esse é um elemento tipicamente “saylesiano”: quem é o “protagonista” de Matewan? Cooper, Oldham (a quem, percebemos claramente no final, pertence a voz da narração “off”), Strathairn, McDonnell?... Ou é o “grupo”, a comunidade, em todas as suas harmonias e contradições? Dominando plenamente, como é seu hábito e traço distintivo, a montagem paralela, Sayles constrói o filme numa particularíssima gestão do tempo narrativo, sempre em “atraso”, sempre preferindo a “simultaneidade” da acção à sua ostensiva “progressão” – como outros filmes de Sayles, ou escritos por ele (o The Howling de Dante também é assim), em Matewan parece que se avança mais para os lados do que para a frente. Mas também é isso que torna tão poderosa – como uma descarga de energia acumulada, que apanha o espectador no seu próprio desejo de maniqueísmo – a cena do “shoot-out” final.

LMO

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Blind Date



Blind Date pode ser um filme “tardio” de Blake Edwards, mas o que ele propõe é uma espécie de retorno aos fundamentos do burlesco cinematográfico, por um lado, e aos fundamentos da comédia “edwardsiana”. Que é como quem diz, a duas palavras: “disrupção” e “destruição”. Como The Party, mais que provavelmente o supra-sumo da obra de Blake Edwards, muito bem mostrou, para o cineasta os bons cenários e adereços são os cenários e aos adereços que se podem partir, subverter, destruir. Uma boa maneira de ver Blind Date é ir contando mentalmente a quantidade de “props” que são destruídas – dos bolsos dos casacos (sequência do jantar com o empresário japonês) a portas e vidros de automóveis. Tudo é para partir, literalmente, até a cama de Kim Basinger, na cena em que Bruce Willis a reencontra depois da noite demolidora (em todos os sentidos) que passaram juntos: e é justamente por não haver nenhuma razão dramática para que os pés da cama se partam, deixando-a inclinada, que a cena é genial – porque isso permite a Blake Edwards filmar Kim Basinger a escorregar colchão abaixo e colchão acima, e esse deslizamento constante torna-se o núcleo da cena, muito mais do que o diálogo mantido pelas personagens (pouco depois de ver o filme já ninguém se lembra do que é que eles disseram, mas toda a gente conserva na memória a imagem de Basinger a debater-se com a inclinação do seu colchão).

E a “disrupção”, a perturbação, o grão de areia que vem catalisar e promover a desordem, mesmo quando não é o seu agente directo. A personagem de Basinger, nesse sentido, é perfeitamente edwardsiana, conjunção do Inspector Clouseau e do Hrundi V. Bakshi (a personagem de Peter Sellers em The Party) num corpo feminino. É ela, com a sua fraca tolerância ao álcool, que lança o caos na vida do pobre Willis e de todos os outros com quem se cruza – antes de, na sequência final, quando é a vez dela ser a “pobre” Basinger, forçada a um casamento que não deseja, ser resgatada por Willis exactamente através das mesmas armas: o caos e a confusão instalados no que devia ser uma mera formalidade (a cerimónia nupcial). Estamos, portanto, num território de subversão total, um território físico e social que só existe enquanto domínio pronto a ser subvertido – este é todo o princípio subjacente a Blind Date, o que mostra bem como, em 1987, Blake Edwards continuava a ser Blake Edwards.

Para mais, com as ressonâncias sociais muito concretas que lhe advém da época em que foi feito, aqueles anos 80 que foram, na América, a década “yuppie”. Blind Date partilha ligações muito concretas com outros filmes desses anos, que também jogaram aquele pragmatismo, muito cinzento e muito certinho, duma personagem “yuppie”, contra o poder desregulador de outra personagem, normalmente feminina (um parentesco evidente de Blind Date é o Something Wild, de Jonathan Demme, quase contemporâneo; outro podia ser o After Hours de Scorsese, realizado um par de anos antes).

Subversão, ainda, no muito pouco politicamente correcto (já naquela altura, hoje mais ainda) papel do álcool nesta história. Blake Edwards (no primeiro Pink Panther), já tinha feito o maior “gag” da história com champanhe e garrafas de champanhe. Aqui o champanhe, mola para o descontrolo de Basinger, tem outra um vez papel primordial, e e toda a primeira parte de Blind Date é pura “comédia alcóolica” encenada sem qualquer moralismo ou advertência. Ironia, ainda mais se pensarmos que, nos anos 60, em Days of Wine and Roses, Edwards abordara o álcool e o alcoolismo de maneira série e, evidentemente, muito mais dramática.


Claro que, perante tantos e tão grandes exemplos do superlativo talento de Blake Edwards, dizer que Blind Date, filme um tanto “lasso” e com vários momentos bastante indiferentes, emparelha com o melhor da obra do realizador seria um pouco exagerado. Mas os momentos perante os quais a indiferença é impossível valem bem o resto: cenas ou sequências como as do primeiro encontro Willis / Basinger, com as luzes a apagadas a retardarem a revelação do rosto dela, as do caótico jantar com o japonês ou a da noite que precede o casamento não deixam dúvidas: sim, Blind Date é um filme do mesmo cineasta de Pink Panther ou The Party, e a mão dele está aqui inteirinha. No final dos anos 80 já não se fazia muito disto.

LMO

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O Cinema tem espinhas - conversa com Aki Kaurismaki



Aki Kaurismaki, finlandês, cinquenta anos, já tem uma costela portuguesa. Há muitos anos que passa cá o Inverno, numa casa no Minho. Chega por volta de Setembro ou de Outubro, e volta para a Finlândia no princípio da Primavera. Duas coisas denunciam imediatamente essa costela: um muito razoável domínio da língua portuguesa, embora para a entrevista propriamente dita prefira conversar em inglês; e, sobretudo, um emblemazinho do Futebol Clube do Porto ostentado na lapela. Uma vez, há cerca de dois anos, iniciou a apresentação de um filme seu na Cinemateca perguntando quantos portistas havia na sala – a sua filiação clubística portuguesa é algo que ele leva a sério. Os assuntos desportivos irromperam diversas vezes durante a conversa que mantivemos com ele a propósito da estreia do seu mais recente filme, “Luzes no Crepúsculo”: Kaurismaki é um conversador inteligente e divertido, lacónico e caótico, e apreciador da cumplicidade.

É pelo desporto, aliás, que Kaurismaki resolve um eventual problema de identidade. “Fui ao estádio ver o Finlândia-Portugal em Helsínquia [jogo de qualificação para o campeonato da Europa de futebol]. Tinha numa mão uma bandeira da Finlândia e na outra uma de Portugal. Mas quando o jogo começou o sangue falou mais alto e comecei a torcer pela Finlândia. Acho que no Dragão [o Portugal-Finlândia de quarta-feira, de que o leitor já saberá o resultado] vai acontecer o mesmo”. Conversa puxa conversa, mas não necessariamente em sequência, outro assunto desportivo caro a Kaurismaki e aos finlandeses em geral, o automobilismo, ainda veio à baila. “Era estúpido tirarem-lhe o título [a Kimi Raikkonen, finlandês campeão do mundo de fórmula 1 em 2007, cujo título ficou durante algumas semanas pendente da investigação dum imbróglio técnico-legal] por causa daquilo, não era?”. (Julgámos ver-lhe um olhar reconfortado quando concordámos com ele). “Por que é que somos tão bons nos automóveis? Porque somos estúpidos: sabemos que está ali o pedal do travão mas preferimos ignorá-lo”.

Mas não era para falar de futebol e de fórmula 1 que ali estávamos. O assunto era “Luzes no Crepúsculo”, terceiro tomo de uma trilogia iniciada em “Nuvens Passageiras” e depois continuada em “O Homem sem Passado”. Ou, como Kaurismaki, prefere chamar-lhe, “a sexta parte de duas trilogias”. Uma para os anos 80, terminada com um dos seus filmes mais célebres, “A Rapariga da Fábrica de Fósforos” (1990), outra para os anos 90 entrando pelo século XXI. São filmes, e trilogias, sobre os deserdados do “sonho finlandês”, sobre aqueles que ficaram esquecidos pelo chamado milagre económico finlandês que teve a Nokia por ponta de lança. Personagens extraídas àquilo a que antigamente se chamava a “classe operária” ou o “proletariado”. Diz Aki: “Já ninguém lhes chama assim, mas eles ainda ‘operam’, não se tornaram capitalistas”. E têm, aparentemente, cada vez menos espaço – em “Nuvens Passageiras” as personagens abriam um restaurante bem sucedido, em “O Homem sem Passado” o protagonista refazia a vida depois de uma crise de amnésia, mas a personagem principal de “Luzes no Crepúsculo” está sempre a bater contra a parede, nada lhe corre bem e acaba num ermo. “É minha ideia acabar as trilogias assim, com filmes rápidos, bruscos e tristes, praticamente sem humor nenhum”. Ao contrário de “O Homem Sem Passado” (que era uma “comédia”, embora se possa pensar que no cinema de Kaurismaki a diferença entre uma comédia e um drama depende de pormenores minimais), “Luzes no Crepúsculo” é trágico e pessimista como um conto russo. Na primeira cena, o protagonista ouve a conversa de três tipos que descem a rua a conversar sobre escritores russos, como se decidissem qual deles o mais desesperado – e fixam-se em Pushkin que (dizem eles) “mal nasceu já estava morto”. É um aviso, um anúncio, para a personagem e para os espectadores? “Não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia. Escreva que sim. É um aviso”.

Mas o espaço, o urbanismo e a arquitectura imaculadamente modernas, brilhantes e envidraçadas de Helsínquia, algures entre o “Alphaville” de Godard e o “Playtime” de Tati – este espaço também é um protagonista do filme. “A minha ideia era que a personagem fosse sendo sacudida e cuspida, rejeitada pelo cenário. Já não há lugares em Helsínquia. A única hipótese é o campo, mas mesmo ele já foi estragado. Vocês têm sorte, aqui em Portugal ainda há alguns lugares”. Nos filmes anteriores, Kaurismaki encontrava e filmava uma espécie de “traseiras” desta nova Helsínquia, havia um refúgio para as personagens. Em “Luzes do Crepúsculo” o monstro urbano engole-as. “Helsínquia tornou-se uma cidade feia, mas feia num sentido mesquinho [‘in a small way’]. Quanto maior, mais provinciana. Não me incomodam os lugares feios, aliás gosto de lugares feios. Mas aborrecem-me os lugares feios e chatos. E filmei na parte mais chata de Helsínquia. Até fui supreendido, porque escrevi o filme aqui em Portugal, e quando fui para Helsínquia essa parte da cidade tinha-se tornado ainda mais chata do que o que era. Acho que quem vê o filme percebe que há melhores cidades para se ir passar férias”. O pessimismo de “Luzes no Crepúsculo” é reforçado pelo facto de Kaurismaki não conceder à sua personagem a bênção de partir para outro lugar no fim do filme. “Este estava demasiado ferido, demasiado espancado. Mas dei-lhe o amor, isso não basta?” Kaurismaki está-se a referir ao último plano do filme, muito bonito e muito curto – as mãos dadas do protagonista e da rapariga que não o abandona (e é um plano curtíssimo, dos mais curtos planos finais que já vimos – “filmei em Junho e só havia vinte minutos de escuridão em Helsínquia”, diz Aki, “não volto a filmar em Helsínquia no Verão, a menos, claro, que queira o Verão”). O realizador pensou mesmo matar a personagem (“penso sempre em matar as personagens, mas depois comovo-me e não consigo”), e filmou dois finais, com morte e sem morte, e para a última sequência acabou por usar material de ambos. Em todo o caso, o pessimismo nem permite a provocação – como em “Sombras no Paraíso” (“o meu filme mais optimista de sempre”), que terminava com os protagonistas a apanharem um “ferry” para a Estónia (então, anos 80, parte da URSS). “Era uma maneira de dizer que tudo era melhor do que ficar na Finlândia. E era uma citação de um filme finlandês dos anos 50, que acabava com as personagens num ‘ferry’ para a Suécia. Nessa altura muitos finlandeses emigravam para a Suécia”.

Mas esta Finlândia existe mesmo, ou corremos o risco de a confundir com aquilo a que Peter von Bagh (ex-director da cinemateca finlandesa, crítico, historiador e enciclopedista) chamou uma vez a “Kaurismakilândia”, espécie de manto lançado por Aki sobre o país e os seus lugares, mas não necessariamente coincidente? “Não sei dizer. Estou demasiado dentro. É como quando as pessoas me perguntam se o meu humor é finlandês. Respondo que deve ser finlandês, visto que eu próprio sou finlandês”. O que não o impede de falar do seu país como de um marasmo letal. “Nós nem temos nada a que nos opor, politicamente. É uma coisa que faz muita falta. Mas até os nossos políticos são desesperantemente honestos. Não roubam, não são corruptos. Quer dizer, roubam, mas dentro da legalidade”. Esse marasmo ajuda a perceber histórias como a do miúdo que há poucas semanas disparou indiscriminadamente sobre colegas e professores do seu liceu? “É uma história muito triste. Mas acho normal. Se queremos importar a cultura americana temos que importar tudo. Não podemos importar só o lado bom”.

Aki não faz, de resto, muita fé na juventude. Perguntamos-lhe pela sala de cinema que detém, em sociedade com o seu irmão Mika (igualmente cineasta), em Helsínquia. Durante anos tentou manter uma programação alternativa. Mas sem viabilidade comercial. “É impossível. A sala está aberta, mas quase só para festivais e coisas do género. Há uns tempos exibimos um programa duplo de Jean Vigo, com ‘Zero de Conduite’ e ‘L’Atalante’, mas não dá. Aparecem alguns, mas não em número suficiente. É mais fácil comer um hamburger. O cinema tem espinhas, é complicado”. Por falar em coisas fáceis de mastigar, lembramos Aki de que uma das mais bizarras ocorrências no cinema mundial dos últimos anos foi o ouvir o seu nome ser pronunciado em plena cerimónia dos óscares, quando “O Homem sem Passado” foi nomeado para melhor filme em língua estrangeira. Kaurismaki põe um ar envergonhado: “Não pude evitar. O filme tinha uma participação da Finnish Film Foundation, que é um organismo estatal e para eles era importante, hoje toda a gente vive obcecada com os óscares. Eu nem fui lá, não quero saber daquilo para nada”. Kaurismaki tem uma ideia muito precisa sobre o que não gosta na Hollywood contemporânea. “Nos anos 40, as estrelas eram adultos, hoje são crianças grandes. Quando se pensa que, por exemplo, James Stewart esteve na II Guerra Mundial, a pilotar bombardeiros sobre a Alemanha…”. De facto, é totalmente irrealista imaginar Brad Pitt a ir para o Iraque e a voltar com o cabelo grisalho – realmente grisalho, como o Stewart de depois da guerra, não a patética “make up” de “Babel”. “Brad Pitt, pfff… James Stewart comia ‘starlets’ como ele ao pequeno almoço”.


Lee Marvin, esse sim, era um homem. Kaurismaki rebusca a carteira, à procura do cartão de membro dos “Filhos de Lee Marvin”, sociedade secreta (“ninguém sabe ao certo quantos membros tem”) de que primeiro se ouviu falar há uns vinte anos, anunciada por Jim Jarmusch (Nick Cave, Tom Waits, John Lurie, são supostamente outros membros, mas nada disto é certo, para além de ser secreto). Mas não encontra o cartão: “aposto que o Peter von Bagh mo roubou, porque foi a última pessoa a quem o mostrei”. Terá que ficar para a próxima. Provavelmente numa altura em que “já teremos vendido o Quaresma e o Lucho – os presidentes dos clubes de futebol deviam ser todos despedidos”.

LMO (em 2007; como o tempo passa)

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

L'Argent



Entrevistado por Michel Ciment, que lhe perguntou como acontecia a decisão de aproveitar determinada história que estivesse a ler como base para um filme, Robert Bresson respondeu: “No caso de A Nota Falsa soube imediatamente. Vi o filme imediatamente, porque a história se relacionava com a minha vontade de fazer um filme sobre uma reacção em cadeia conducente a um grande desastre. Uma nota de banco que acaba por assassinar uma quantidade de gente. Porque é que Julien Sorel matou Madame de Renal [personagens d’O Vermelho e o Negro, de Stendhal]? Saberia cinco minutos antes de o fazer que o ia fazer? Claro que não. Que aconteceu nesse momento preciso? As forças da rebelião libertam-se subitamente no interior de um indivíduo, todo o ódio escondido que se vai acumulando lá dentro. Interessava-me mais o relato que Tolstoi fazia disto do que as suas ideias religiosas (…)”. Na mesma entrevista, mas noutro ponto (anterior, curiosamente), explicou como e porquê se afastou da história de Tolstoi: “Há uma altura em que me liberto completamente, como um cavalo com a rédea solta, e deixo a minha imaginação conduzir-me aonde quiser. A história de Tolstoi é bastante diferente [do filme]. (…) No princípio Tolstoi refere-se a Deus e aos Evangelhos. Não podia seguir por aí porque o meu filme é sobre a indiferença inconsciente dos nossos dias, em que as pessoas só pensam nelas próprias e nas suas famílias”.

Não sendo, obviamente (quando se trata de um filme como L’Argent), as únicas pistas possíveis, Bresson apontou e “autorizou” assim aquelas que foram (e são ainda) as duas principais pistas seguidas por exegetas e comentadores da sua obra e, em particular, deste seu derradeiro filme.

Por um lado, o irracional, o inexplicável, a explosão (o “grande desastre”) que se segue a uma “reacção em cadeia” – algo que, por definição, tem a ver com a física ou com a química, com a ideia de um mecanismo autónomo e auto-suficiente, que pelo menos uma vez posto em marcha escapa a qualquer controlo ou vontade humana. Evidentemente, não somos os primeiros, nem seremos com certeza os últimos, a associar por este tema Le Diable Probablement e L’Argent, como se os dois últimos filmes de Bresson olhassem um para o outro, com possível extensão a Au Hasard Balthasar, que tem uma estrutura a vários títulos aproximável da de L’Argent, partilhando aquilo a que alguns comentadores chamaram uma “estética do caos” (e que, no fim de contas, é apenas outro nome para a “reacção em cadeia” descrita por Bresson).

Por outro, a questão social, ou o tema da sociedade descrita (e criticada) como frio mecanismo triturador de indivíduos, com o dinheiro como móbil (Bresson também falou disso: “tudo o que importa a toda a gente é o dinheiro”). Que prato pesa mais na balança de L’Argent? A “metafísica” ou a “política”? Será possível dissociá-las ou, neste caso concreto, enformam-se uma à outra? Há um texto muito curioso (e, eventualmente, muito contestável) de Alberto Moravia que propõe, com bastante originalidade, a interligação dos dois termos. Partindo do pressuposto de que em L’Argent “o mal” era “a própria existência do dinheiro, independentemente de ser falso ou não”, Moravia concluía que Bresson encontrava “o bem”, em referência às sequências de Yvon com a família rural, “nas antigas virtudes da civilização francesa, aquela tradicional mistura de rigor, análise e racionalismo – a marca distintiva do génio nacional. Por outras palavras, o ‘bem’ transforma-se em ‘estilo’. Daqui chegamos à curiosa conclusão de que o mal se encontra na vida, enquanto o bem está no modo como essa vida é representada. O machado sangrento com que o assassino mata as suas vítimas é um objecto mau, mas a imagem do machado é benéfica. Em resumo, o estilo exorciza o mal”.

É interessante que Moravia use o machado como exemplo para ilustrar a questão do “estilo”, porque os planos dos assassínios (o machado propriamente dito, a elipse do candeeiro e das manchas de sangue no papel de parede) estão entre os mais “estilizados” de L’Argent. O “humano” quase desaparece, ficam os objectos (o machado) e as marcas do seu trabalho (as manchas de sangue). Como se fosse uma maneira de mostrar um “mal” em abstracção, algo que não está nos homens mas se serve deles, que faz deles “veículos”. Em termos figurativos, o “estilo” talvez não seja o que “exorciza” o mal mas o que permite a sua representação e, de alguma maneira, a sua objectivação. Nesse sentido “utilitário”, desde os que mentem em tribunal aos que são mortos, passando por aquele que mata (Yvon), todos são vítimas.


Vítimas, e sem redenção. Bresson disse que gostaria de ter filmado a redenção de Yvon mas que isso “estragaria o ritmo do filme”.  Que se conclui assim – e não esqueçamos, também a obra de Bresson, mesmo que não tenha sido um fim premeditado – com um dos mais terrificantes planos de todo o seu cinema. Levado pela polícia, Yvon sai de campo, e a pouca luz do plano é logo a seguir cortada pelo “negro” final, sem música e sem genérico de fecho. Ou seja, uma espécie de “nada”. Não há nenhum “drôle de chemin” que leve Yvon para junto de quem quer que seja. Jeanne, a possível Jeanne de Yvon, foi-se embora a meio do filme, estava Yvon na prisão como Michel em Pickpocket.

LMO

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Casa de Lava



Everything good dies here, even the stars

Quando Casa de Lava estreou em 1995, ninguém, nem mesmo os que imediatamente o reconheceram como um título capital, podia imaginar o rasto – o rastilho – que este filme deixaria na obra de Pedro Costa. Esse rastilho ainda não deixou de arder, como sabe quem tem acompanhado essa obra, e como pôde confirmar quem já tiver visto o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro. Mas em 1995 era inimaginável a consequência que Casa de Lava teria, ou a descendência: num certo sentido que não é preciso rebuscar muito, quase o que tudo o que Costa fez entre Ossos e Cavalo Dinheiro é um “filho” deste filme.

Rebuscando um bocadinho mais, aqueles planos do vulcão em erupção, o fogo na Ilha do Fogo, que abrem Casa de Lava (e que são extraídos a Erupção da Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro), têm hoje um duplo sentido: não anunciam apenas a natureza de um território específico, a ilha caboverdeana onde o essencial do filme decorre, anunciam também essa “lava” que Pedro Costa ainda não deixou de trabalhar. O espectador que nunca tenha visto Casa de Lava, mas conheça a obra posterior do realizador, não deixará de se espantar com a quantidade de coisas – por exemplo a carta dos “cem mil cigarros” – que aqui se prefiguram ou que depois serão liminarmente repetidas ou re-enunciadas noutros filmes.

É um filme que “corta”, evidentemente, assim como o som dos violinos (o primeiro som do filme) vem cortar o silêncio que nos primeiros instantes acompanhara as imagens do vulcão. Pedro Costa referiu, ao longo dos anos e por várias vezes, a que ponto Casa de Lava representou uma tentativa de “fuga” ao cinema, às suas convenções de produção e de narração, e até em termos de fuga a um imaginário, estritamente português e interiormente português, que ainda era o de O Sangue, a sua belíssima primeira-obra. Por acaso ou não, se esse desejo de “fuga” está estampado em Casa de Lava, também está o seu reverso, a “atracção”. Todo o filme, mesmo narrativamente, vive desta tensão inexorável – a história de Inês Medeiros, a história de Edith Scob, a história de Isaach de Bankolé, a história de todos aqueles que sonham em partir e vir viver para Sacavém. Mais que um vulcão, é de um campo magnético que se trata, da “descrição de uma ilha” como um implacável centro de gravidade – tão implacável que, no princípio da história, começa por “chamar” Leão do alto de um andaime. Mas implacável também nessa relação com o cinema, a que volta sempre: se Pedro Costa começou pelo desejo, mais ou menos “lato”, de fazer um “remake” de I Walked With a Zombie (de que ficou, mais do que um “remake” da narrativa, a evocação de um ambiente, a evocação de uma “ilha dos mortos” como a que o filme de Tourneur também citava, um sítio onde “tudo é que é bom morre, até as estrelas”), da sua matéria constam ainda alguns outros encontros, ou algumas outras atracções: é, por exemplo, a presença de Edith Scob na mais “exógena” das personagens de Casa de Lava, que foi os “olhos sem rosto” de Franju e que aqui é, não só mas também, uma máscara, ou toda a sequência com Inês de Medeiros pela encosta do vulcão acima, sequência que é também uma espécie de “remake”, ou de evocação colorida (“rouge et noir”, vermelho contra preto) do final do Stromboli de Rossellini, outra filme de uma ilha como campo magnético e possessivo.

Diríamos que este movimento, ou esta colisão entre movimentos, está presente também no filme no modo como ele se relaciona com uma “verdade” histórica e social. Ficar com ela – com o passado português, o Tarrafal e a “morte lenta”, com o presente das grandes cidades portuguesas, essa Sacavém que depois Costa viria a encontrar no Bairro das Fontaínhas – ou abandoná-la, e partir rumo a um domínio de “fantasmas”. Também sobre isto gira Casa de Lava, e talvez seja mesmo o seu essencial: um encontro entre a “terra queimada” e os espíritos que dela brotam. No seu mais feliz, o encontro consubstancia-se na música, e nas maravilhosamente escuras cenas com as “mornas”.

LMO