quinta-feira, 17 de abril de 2014

The Outlaw Josey Wales


THE OUTLAW JOSEY WALES
de Clint Eastwood
The Outlaw Josey Wales é, dos seus filmes, o preferido de Clint Eastwood (ou pelo menos era, aqui há uns anos). É fácil acreditar nessa preferência, porque The Outlaw Josey Wales sintetiza admiravelmente, e com menos ambiguidade do que noutras circunstâncias, um punhado de características essenciais na “persona” de Clint. De resto, acompanhar todo este período do anos 70 em que a sua obra alternava “westerns” e “policiais” (especialmente os com Dirty Harry) permite uma conclusão óbvia: os “westerns” iluminam os “policiais”, Dirty Harry é um “cowboy” num cenário moderno e urbano mas fundamentalmente indistinto dum cenário de “western” – porque a lei e a justiça, por alguma razão ou por um conjunto de razões, se tornaram inoperantes (e a inoperância da lei, a sua impotência e a sua incapacidade, são o tema subjacente a todos os filmes com Dirty Harry). Curiosamente, talvez nunca se tenham tirado, mesmo por quem defendeu Clint desde cedo e durante o tempo da artilharia pesada virada contra ele, as devidas ilações quanto ao teor do seu retrato de uma América ainda e sempre embrenhada numa “cultura de violência” que sufoca a eficácia da lei e da justiça.
Que melhor época para sintetizar esta impotência legal, levada ao ponto do caos, do que o aftermath da Guerra Civil retratado em The Outlaw Josey Wales? Bandoleiros que se tornam soldados a partir do momento em que vestem um uniforme, e vice-versa. A lei não tem “rostos”, tem “máscaras”. É nesta confusão que se desenvolve The Outlaw Josey Wales, de resto com profundas e realistas bases históricas (na descrição, por sua vez demasiado confusa para aqui a tentarmos resumir, das inúmeras milícias e grupos paramilitares que medraram em torno dos exércitos da União e dos Estados Confederados). Atendendo à fama que tinha, há que gabar a coragem (a provocação? o autismo?) de Clint em assumir uma personagem de sulista, mas ao mesmo tempo há que entender que o sulismo de Josey Wales é um sulismo mítico ou mitificado, que serve como ponto de partida, o ponto de partida de um derrotado mas sobretudo o ponto de partida de uma personagem que viu o seu mundo esboroar-se, uma personagem que ficou “sem mundo”.
Ou que ficou reduzido a um pequeno núcleo essencial – a pequena propriedade, a casa, a família. The Outlaw Josey Wales começa como, muitos anos mais tarde (ou não tantos assim, apenas dezasseis), Unforgiven, com um agricultor a tratar da sua propriedade. Nas drásticas circunstâncias que os espectadores verão na primeira sequência, até isso vai ser retirado a Josey Wales. E são essas circunstâncias que o forçam a agir (como sempre: Clint não é um devoto da acção, nem Dirty Harry, apenas alguém que a aceita como uma inevitabilidade, a inevitabilidade que permitirá o regresso à inacção), num mescla de sentimentos que concilia o desejo de vingança com um “je m’en foutisme” (visto que ficou sem nada) quase suicidário, e põe em marcha o processo que fará dele o “fora da lei Josey Wales” (também aqui, no que tem a ver com o relato, com a aura e com a fama, sempre ditadas por terceiros, se encontraria uma relação com Unforgiven). Mas, evidentemente, sempre munido de uma espécie de código de honra, silencioso e nunca expresso, um sentido de decência fundamental que ao longo do filme terá mais do que uma ocasião para manifestar – numa terra sem lei ou onde a lei foi distorcida, a única bússola é a fornecida por uma lei pessoal, por um punhado de valores instintivos (ver, por exemplo, os contracampos da reacção de Clint à iminente violação da personagem de Sondra Locke, em prova de que, mais uma vez, seriam esses valores a forçá-lo a agir, caso disso tivesse chegado a haver necessidade). “Fora da lei”, no fundo, estão todos; mas o único que tem pelo menos uma vaga memória da dimensão moral da lei é Josey Wales, e nisto se funda quase todo o individualismo eastwoodiano.

Houve algum reboliço quando, pouco depois da estreia do filme, se descobriu que o Forrest Carter que assinava a novela em que o argumento se baseou era apenas o pseudónimo de um proeminente membro do Klu Klux Klan. Clint garantiu não saber de nada disso durante a rodagem. Mas tinha mais graça se tivesse sabido, porque The Outlaw Josey Wales é um filme profundamente anti-racista. Num terra onde os brancos do sul e os brancos do norte se andaram a matar e ainda se matam indiscriminadamente, junto de quem é que Josey Wales encontra um “espelho”, um espelho para o seu código de honra, um espelho para o seu “mundo perdido”? Justamente, dos índios. O território índio podia ser uma “reserva” no sentido segregacionista que veio a ter, mas era sobretudo uma “reserva” moral, propriamente dita. The Outlaw Josey Wales tem um pouco de uma declaração de amor pela paisagem americana (como os bons westerns clássicos), na permanente deriva territorial que ocupa grande parte do filme, mas também é uma declaração de amor pela diversidade dessa paisagem e pela memória ancestral que ela conserva. E, tanto mais que Clint já estava aqui (ver, por exemplo, os tempos e a planificação, tudo muito pragmático, do derradeiro combate, mas sobretudo do duelo de olhares, campos/contracampos, em que se decide o confronto final com a sua “nemesis”) completamente livre dos maneirismos “leonianos” ainda tão presentes no seu primeiro western (High Plains Drifter) é de Ford que mais nos lembramos ao longo de The Outlaw Josey Wales, como se o diálogo fosse, agora, com The Searchers ou com Cheyenne Autumn. “Revisionista”, como lhe chamam, eventualmente; mas no mesmo sentido em que os derradeiros Fords foram, eles próprios, revisionistas. Ou seja, usar a mesma tradição para dizer outras coisas: dizer “o último dos clássicos” nem sempre faz sentido, aqui sim.