quarta-feira, 16 de abril de 2014

Entrevista com Manuel Mozos

NUNCA SE GANHA E NUNCA SE PERDE

“Quatro Copas” é a quarta longa-metragem de ficção de Manuel Mozos (n. 1959), história de um trio de personagens que depois passa a quarteto unido e desunido pelas circunstâncias afectivas, numa Lisboa sempre reconhecível mesmo quando não é identificável. É um momento feliz na obra de Mozos, desde sempre assolada por percalços variados: “Quatro Copas” estreia-se comercialmente, “Ruínas” (ainda não estreado) tem ganho alguns prémios importantes. Em conversa com o Ípsilon, Manuel Mozos falou de “Quatro Copas” e dos caminhos difíceis percorridos pelos jovens cineastas portugueses que se estrearam nos anos 80. Mozos foi um deles, e aprendeu que “nunca se ganha e nunca se perde”.

PÚBLICO – A sua carreira vive em 2009 um momento particularmente feliz. “Ruínas” tem dado nas vistas [foi premiado no IndieLisboa e no FID-Marselha], “Quatro Copas” estreia-se comercialmente… E apresentou ainda “Aldina Duarte – Princesa Prometida”. Numa obra que tem sofrido com tantas irregularidades, tem alguma explicação para esta conjuntura afortunada?
MANUEL MOZOS – É uma coincidência, que até é devida a essas irregularidades. A rodagem do “Quatro Copas” foi em 2005, está pronto praticamente desde há dois anos, e há um ano e meio que estava à espera da estreia. O “Ruínas” também foi um processo prolongado, ficou pronto agora. Assim como o da Aldina. É uma coincidência, mas acho que há uma coerência [risos] na relação com as irregularidades. O caso extremo é o “Xavier”, que ficou muitos anos à espera de ser estreado, mas há uma aura de invisibilidade em torno de tantas coisas que fiz…
P- “Quatro Copas” é a sua quarta ficção. Como é que a relaciona com as outras três [“Um Passo, Outro Passo, e Depois”, 1989, “Xavier”, 1992 e “…Quando Troveja”, 1999]?
R- Por um lado, ambientarem-se todos em Lisboa, e por outro, uma proximidade nos traços das personagens. Personagens em queda, que acabam por ter uma espécie de redenção, e se movem no quotidiano. No “Quatro Copas” isso sente-se de maneira diferente, porque seguimos quatro personagens e não uma, mas isso para mim até é um pouco uma súmula, permite-me apanhar quatro personagens de gerações diferentes.
P- A Lisboa de “Quatro Copas” é um pouco mais tortuosa. Gira entre o corriqueiro do centro comercial e a clandestinidade da casa de jogo. É uma Lisboa dada mais por ambientes do que pela rua.
R- Concordo. Não é o aspecto realista da cidade que me interessa. Antes usar a geografia como “décor”, procurar o que nela há de “papelão”, usá-la como uma paleta. Neste filme há mais interiores, de facto. A ideia de ter personagens a moverem-se numa aparência de subterrâneo já me tinha interessado no “…Quando Troveja”, mesmo se aí acabei por não a explorar como queria. Em todo o caso não é o realismo estrito que me motiva. O casino clandestino, por exemplo, tem um lado postiço, é sobretudo uma ideia, um ambiente…
P- Se há uma coisa que define os seus filmes é a maneira de trabalhar as personagens e de se relacionar com elas. É única e inconfundível no cinema português. Em termos de construção, diria que é narrativa que as decide, ou que são elas que decidem a narrativa? É que fica a sensação de que a partir de certa altura o seu amor pelas personagens, por todas elas, se sobrepõe a tudo.
R- Este filme tem uma nuance. Ao contrário das minhas outras ficções, que partiam de ideias minhas ainda que depois as desenvolvesse com outras pessoas, o argumento do “Quatro Copas” nasceu de um trabalho conjunto com a Cláudia Sampaio e o Octávio Rosado. Julgo que para eles o mais interessante até era o trabalho sobre a história. Mas eu envolvi-me especialmente no desenvolvimento das personagens, até de maneira que nalgumas partes se poderia dizer que a história ficou fragilizada. Na montagem ainda reforcei mais isso. Tentei tirar partido do que havia de mais forte no trabalho dos actores. Digo “fragilizada” no sentido em que a certa altura me preocupei menos com a “coerência” da história do que com o que fazia com que se pudesse acreditar nas personagens.
P- Tendo formação e experiência de montador, com inúmeros trabalhos para outros realizadores, consegue criar uma distância face ao material filmado por si?
R- É complicado. Nos meus filmes trabalho sempre com outros montadores. E gosto de lhes deixar algum espaço para eles fazerem a sua leitura. A sua leitura e a sua escrita. Mas por força das circunstâncias acabei, neste filme assim como no “Xavier”, por estar muito directamente ligado à montagem. Houve uma primeira versão, montada pelo Pedro Marques, com a qual estávamos bastante satisfeitos, mas era uma versão decidida na relação com uma série de trechos musicais de que não pudemos comprar os direitos, que eram uma exorbitância. Como ele depois não estava disponível, fiquei eu, um bocado a contragosto, a trabalhar na remontagem.
P- Percalços e interrupções… A sua carreira parece atrai-los: o “Xavier” foi o que foi, o “Passo” é um dos poucos “missing films” dos anos 90…
R- Há mais, há mais…[risos]
P- A pergunta é: num meio já de si tão complicado e frequentemente adverso como é o do cinema português, como é que se lida com toda esta adversidade adicional?
R- Já me angustiei mais com isso. Hoje acho que não vale a pena perder muito tempo a pensar nessas contrariedades. Prefiro estar contente com a vida do que viver amargurado por causa de alguns azares. Também já não tenho as pretensões e as ambições que tinha há vinte ou mesmo há dez anos. Há uma certa resignação, se calhar um pouco estúpida. O caso do “Passo” ainda me faz sofrer um bocadinho, embora tenha esperança que algum dia venha a ser encontrado [o filme só é visível actualmente em transcrições vídeo]. Mas em Portugal há tanta coisa que se perde, que fica para trás… Também não me angustio com o futuro. Se fizer outro filme, farei. Já não tenho muita paciência para as minhas próprias angústias. Fiz um número razoável de filmes, mesmo que não sejam vistos. Mas eu sei que os fiz. Para mim isto já é uma satisfação. É claro que me posso perguntar se as coisas como me estão a correr hoje…
P- …tivessem corrido assim desde o princípio…
R- …mas nem vale a pena. Tenho-me divertido…
P- Deve ser das pessoas com um interesse mais intenso, e quase enciclopédico, no cinema português e nos seus recantos mais obscuros. É capaz de falar com profunda estima de um filme falhadíssimo dos anos 50, ou de uma produção amadora feita sabe-se lá onde… Para dizer que são maus, mas sem que isso impeça uma espécie de apreço. De onde é que isto vem? O que é que o interessa tanto nesta história alternativa do cinema português como falhanço?
R- Não é só no cinema…
P- Eu sei, mas circunscrevendo…
R- Por um lado, e genericamente, tenho tendência a comover-me com a “décalage” entre uma intenção e o resultado dela. Por outro, no cinema português há, ou havia, algumas pessoas que mesmo sem talento ou condições se entregavam ao que estavam a fazer com total convicção. O resultado podia ser péssimo mas era a vida daquelas pessoas. Para além disso, e por maus que sejam, pode-se sempre encontrar coisas interessantes nesses filmes. Pormenores de arquitectura, a maneira como as pessoas se vestiam. O esforço inglório de alguns actores, a darem o melhor de si e depois o filme não presta para nada… Às vezes há momentos fantásticos. Claro que é um bocadinho enfadonho estar a ver uma hora e meia para aproveitar trinta segundos. Mas pronto.
P- A sua geração, por discutível que seja o conceito de “geração” mas aceitemo-lo para definir o conjunto de pessoas que chegou ao cinema nos anos 80, teve imensas baixas e desaparecidos em combate. Quase se lhe pode chamar, a si, um “sobrevivente”. O que é que esta geração encontrou de tão especialmente difícil? Tem alguma explicação?
R- Havia um problema geral, que sempre houve: falta de espaço. As próprias condições de produção o ditam. Nunca houve um investimento sério para criar, não uma grande indústria que seria impossível, mas algum tipo de abertura. De entre a geração dos anos 80 muitos ficaram pelo caminho, de facto. Começava logo nos concursos do Instituto [Português de Cinema, então], onde só havia lugar para uma ou duas primeiras-obras. Havia aquelas pessoas ainda muita próximas, etariamente, da geração do Cinema Novo, o João Botelho, o Luis Filipe Rocha, o José Alvaro Morais, o Jorge Silva Melo, e a vida também não foi fácil para eles. Mas dos que vieram a seguir, durante os anos 80, muitos ficaram bloqueados, praticamente só o Pedro Costa, o Joaquim Leitão e a Teresa Villaverde é que conseguiram singrar. Pessoas como o Vitor Gonçalves, ou o Daniel Del Negro, fizeram filmes que como era habitual na época tiveram dificuldades em estrear mas foram muito projectados num círculo restrito, e isto também pode ser um bocado intimidatório por causa das expectativas que se criam. E muitos tiveram infortúnios de todo o tipo. Se quisesse ir por uma teoria da conspiração diria que esta conjuntura até podia ter sido gerida por pessoas ligadas às decisões sobre o cinema português, que optaram por estrangular em vez de abrir. E então pronto, tinha que haver vítimas e quem se aguentasse aguentava. Muitos dos filmes, mesmo cheios de fragilidades, não mereciam ter levado a pancada que levaram. Os primeiros filmes do João Canijo, por exemplo, aquilo foi complicado. Depois há o caso do [Edgar] Pêra, que é um caso de resistência. Em resumo, não consigo dizer: foi por isto ou foi por aquilo. Houve um conjunto de factores que atirou muita gente para fora da pista. E quando finalmente podiam estar em condições de recuperar o tempo perdido aparece uma nova geração. Voltar quinze ou vinte anos depois é sempre muito complicado.
P- Pensando nalguns casos dessa nova geração, o Joaquim Sapinho, o João Pedro Rodrigues, mesmo o Miguel Gomes, dá a impressão de que encontraram uma conjuntura menos agreste. Por outro lado, a vossa geração era uma geração de “filhos”, e estes já não são bem “filhos”. Até que ponto isto pode ser importante?
R- Acho que isso é realmente importante. Quer dizer, eu não sei se o Pedro Costa ou a Teresa Villaverde…
P- …se consideram “filhos”…
R-…pois, mas isto é um facto: nós ainda conhecemos os “pais”. Até pelos filmes isso se nota. Havia algumas referências em comum, até numa linha de continuidade com o cinema português. Querendo ou não, ainda estávamos muito ligados ao Paulo Rocha, ao António Reis, ao Fernando Lopes, ao João Bénard da Costa, ao Seixas Santos ou ao César Monteiro. Até mesmo, de maneira diferente, ao João Mário Grilo. Havia uma herança que era veiculada pela Escola de Cinema. Julgo que nestes, no Sapinho, no João Pedro, no Sandro Aguilar, no Miguel Gomes, há um despojamento maior. Outra abertura ao mundo.
P- Ao mesmo tempo, e não querendo transformar isto em psicanálise barata, nos vossos filmes sente-se a noção, ainda que inconsciente, de estarem a filmar dentro da “família”, sob o olhar do “pai”.
R- Nós apanhámos a geração do Cinema Novo ainda ligada a todos os lugares importantes, no IPC, na RTP… Eu por exemplo devo o meu primeiro filme ao Fernando Lopes, foi ele quem me convidou para os “Corações Periféricos” [a série onde se integrava “Um Passo, Outro Passo e Depois”]. E acho que este tipo de relacionamento criou uma espécie de constrangimento nos mais novos, que aliás era incentivado pelos mais velhos. Estou a dizer isto mas não implica que não tenha admiração, respeito e amizade, por muitos desses cineastas. Mas é um sentimento de dívida que os tipos de agora, que já não os apanharam nos lugares decisivos, não têm. Não lhes devem nada.
P- Quando “Xavier” teve uma sessão de ante-estreia na Cinemateca incluiu na folha de sala um poema de Jaime Gil de Biedma [“Príncipe da Aquitania, En su Torre Abolida”] que começa assim: “Una clara consciência de lo que ha perdido / es lo que le consuela”.  É tão fácil adivinhar que se identifica com este verso…
R- Ah, sim, sim. Isto pode fazer confusão a algumas pessoas, mas serve-me para avançar. OK, perdi certas coisas mas… é como na canção do [John] Cale, “never win and never lose” [“nunca se ganha e nunca se perde”]…
P- …ou na do Dylan, “there’s no success like failure but failure’s no success at all” [“não há triunfo como o falhanço, mas o falhanço não é triunfo nenhum”]…
R- As coisas equilibram-se. Mesmo quando perdemos muito ganhamos alguma coisa. E isto é importante.

LMO