SEIS CONTOS MORAIS
De Eric Rohmer
Eric Rohmer, nascido em 1920, era
o mais velho dos cineastas da “nouvelle vague”, e um pouco por essa razão, reforçada
por outras (formação, interesses), como é confirmado por alguns episódios quase
psico-dramáticos (o “golpe de estado” nos Cahiers encabeçado por Jacques
Rivette), também o corpo mais estranho nesse bloco só superficialmente
compacto. Era o mais culto de todos, em sentido convencional e mesmo
propriamente “académico”, e o que tinha uma relação mais sólida com a
literatura, por oposição ao diletantismo auto-didacta (não importa quão
brilhante) dos sues colegas mais jovens. Ora se a literatura, e já estamos a
chegar aos “Contos Morais”, foi a frustração, o “peso”, que conduziu os rapazes
da “nouvelle vague” ao cinema (na célebre formulação de Godard, “como podíamos
esperar escrever melhor do que Joyce ou Rilke?”), quem mais nela avançou foi
Rohmer. Todos os seis “Contos Morais”
começaram por ser projectos literários, escritos durante as décadas de 40 e 50,
numa época em que Rohmer estava longe de imaginar vir a ser realizador de
cinema. Muito mais tarde, já depois de estreados todos os filmes da série, os
“Contos” foram publicados em livro (a edição portuguesa é da Cotovia), e no
prefácio Rohmer fazia uma confissão de fracasso, com ironia “ma non troppo”:
“se os filmei, foi porque não fui capaz de os escrever”. Morreu o escritor
falhado, nasceu o grande cineasta.
Os “Contos Morais” também
representaram a imposição (tardia, mais uma vez por relação com os parceiros de
movimento) de Rohmer como realizador. Não deixa de ser curioso que um
“fracasso” tenha remediado outro fracasso – este menos relativo e sem aspas:
“Le Signe du Lion”, primeira longa-metragem de Rohmer, fora uma má experiência
pessoal, passara sem grande atenção, e ainda hoje é provavelmente o menos
conhecido dos filmes iniciais da “nouvelle vague”. Para resolver o impasse,
Rohmer lembrou-se de puxar da cartola os seus devaneios literários da
juventude. Com a ajuda do muito jovem Barbet Schroeder, que praticamente fundou
a “Les Films du Losange” só para produzir o projecto de Rohmer, atirou-se aos
“Contos Morais”, a princípio num artesanato quase amadorístico mas muito
“nouvelle vague” (entre os primeiros filmes, “A Padeira de Monceau” e “A
Carreira de Suzanne”, para todos os efeitos uma curta e uma média-metragem
respectivamente, e os últimos, “O Joelho de Claire” e “O Amor às Três da Tarde”
há uma gritante diferença de “aspecto”, ou se preferirem, de valores de
produção). Os “Contos” ocuparam Rohmer durante todos os anos 60, entre 1963 e
1972 (apesar de ser uma década em que o cineasta fez muito trabalho para
televisão), e garantiram-lhe definitivamente a notoriedade a partir dos
terceiro e quarto episódios (“A Coleccionadora” e “A Minha Noite em Casa de
Maud”, rodados e estreados por ordem inversa do seu posicionamento na série).
Foi a primeira série de Rohmer, que depois repetiu esse princípio estruturante
nos anos 80 (as “Comédias e Provérbios”) e nos anos 90 (os “Contos das Quatro Estações”).
“Serialista”, Rohmer é também um
“geómetra” da narrativa. Todos os “Contos”
assentam numa, chamemos-lhe, proposição triangular: um homem, uma mulher, outra
mulher, de novo a primeira mulher. Profundo admirador de Murnau, Rohmer terá
baseado estes movimentos em triângulo no arquétipo estabelecido pelo “Sunrise”
do cineasta alemão – mas o certo é que (e visto que arquétipos são arquétipos)
se pensa mais, durante o visionamento dos “Contos”, em variações sobre o modelo
das “screwballs” americanas e das “comédias do re-casamento”. O humor, de
resto, nunca está longe em nenhum dos “Contos”, autênticas comédias sem sinais
exteriores de comédia, talvez com excepção do último, “O Amor às Três da
Tarde”, que sendo o filme com o tom mais uniformemente grave é aquele em que
com mais propriedade se pode falar em “re-casamento”. De resto, ao longo da
série a faixa etária das personagens vai subindo: na “Padeira” e na “Suzanne”
são miúdos, têm 18 anos, no último é um homem de meia-idade acometido de
claustrofobia matrimonial.
Evidentemente, o tema central dos
“Contos” é o desejo masculino, e a sua volatilidade face às circunstâncias. Não
é a primeira vez, nem será a última, que citamos uma frase de Rohmer, homem
demasiado antigo (e dirão alguns, demasiado reaccionário) para não desconfiar
da psicanálise: “o inconsciente é o corpo”. Isto é a chave de muito Rohmer, e
seguramente a principal chave dos “Contos”. Como lida o homem urbano,
civilizado, “intelectual”, com as flutuações do desejo, com o aleatório dos
sentimentos e dos acontecimentos? Obviamente, racionaliza: se os “Contos” são
“Morais” é porque todos os protagonistas fazem um esforço para integrar tudo
(as hesitações, os acasos, as vacilações) numa ordem de premeditação que tanto
é uma âncora para a sua existência como a reivindicação de uma “superioridade
moral” perante os outros (e as outras). Diz, resumindo quase todos os outros
“Contos”, o jovem protagonista de “A Padeira de Monceau”, depois por um acaso
em que não foi tido nem achado troca uma mulher por outra: “fiz uma escolha
moral”. A história dos “Contos” é a história desta “moral”, uma “moral” que
(talvez à excepção do caso do protagonista de “A Minha Noite em Casa de Maud”,
que é quase um ensaio sobre a santidade) no fundo não é mais do que uma ficção
essencial à sobrevivência, uma permanente “mise en scène” da negação. O génio
de Rohmer é conseguir filmá-la dando a ver em cada plano uma situação e, ao
mesmo tempo, a sua leitura: o “falsamente objectivo” e o “falsamente
subjectivo” equivalem-se, andam de braço dado, habitam o mesmo corpo e o mesmo
olhar. O corpo e o olhar do cinema, pois o que os “Contos” mostram é que,
quando se trata de justificar o seu lugar num mundo entre mulheres, cada homem
é um cineasta, cada homem inventa o seu filme, consigo no lugar do herói. O que
eles projectam como drama, Rohmer filma como farsa (mas sem danificar o drama
deles). Genial, claro. Mas mais importante do que isso, único. Rever os
“Contos” é um prazer, descobri-los uma maravilha.