MARY
de Abel Ferrara
A religião não é uma novidade na obra de Abel Ferrara. A temática e o imaginário católicos cruzam, de modo mais ou menos central consoante os casos, vários dos seus filmes. É mesmo o ponto em que o cinema de Ferrara mais se toca com o de outro célebre ítalo-americano novaiorquino, Martin Scorsese (e não haverá muitos mais pontos de contacto para além destes: a origem italiana, Nova Iorque, e o Catolicismo). O grande filme católico americano dos anos 90, que no entanto não era um “drama religioso”, foi Abel Ferrara quem o fez; chamou-se “O Tenente sem Lei”, tinha uma freira que perdoava aos seus violadores citando palavras da Bíblia sobre os “necessitados”, e sobretudo tinha um Harvey Keitel em fantástica entrega, na pele de um Cristo moderno, louco, drogado e desamparado (ou, o que vai dar quase ao mesmo, na pele de um drogado louco e desamparado que se tomava por um Cristo moderno).
de Abel Ferrara
A religião não é uma novidade na obra de Abel Ferrara. A temática e o imaginário católicos cruzam, de modo mais ou menos central consoante os casos, vários dos seus filmes. É mesmo o ponto em que o cinema de Ferrara mais se toca com o de outro célebre ítalo-americano novaiorquino, Martin Scorsese (e não haverá muitos mais pontos de contacto para além destes: a origem italiana, Nova Iorque, e o Catolicismo). O grande filme católico americano dos anos 90, que no entanto não era um “drama religioso”, foi Abel Ferrara quem o fez; chamou-se “O Tenente sem Lei”, tinha uma freira que perdoava aos seus violadores citando palavras da Bíblia sobre os “necessitados”, e sobretudo tinha um Harvey Keitel em fantástica entrega, na pele de um Cristo moderno, louco, drogado e desamparado (ou, o que vai dar quase ao mesmo, na pele de um drogado louco e desamparado que se tomava por um Cristo moderno).
“Mary” é, mais ostensivamente, um
“drama religioso”. Em termos narrativos, mas até em termos científicos. Vários
investigadores e especialistas em estudos do cristianismo tomam a palavra no
filme, nos segmentos correspondentes ao programa de televisão coordenado pela
personagem de Forest Whitaker. Ferrara oferece-lhes um tempo generoso para as
suas intervenções – não para caucionar, nem mesmo para “explicar”, mas para
adensar: o que eles dizem é importante, quer na textura do filme quer enquanto
olhar sobre o próprio filme. E isto porque, falta dizer, “Mary” se constrói
usando por base o Evangelho apócrifo de Maria Madalena, descoberto no Egipto em
1945, segundo o qual Maria Madalena seria a principal discípula de Cristo,
primeira intérprete do seu pensamento e das suas palavras. Já se escreveu que
esse Evangelho, fazendo duma mulher a primeira depositária das palavras de
Cristo, era algo de extremamente subversivo para a organização tradicional das
instituições religiosas católicas, e a partir daí também se tem escrito sobre
“Mary” como um filme “feminista” – o que, sendo possivelmente verdade, não
parece ser a tecla mais importante para Ferrara.
Esses momentos “documentais” em
que a palavra dos investigadores configura uma espécie de olhar sobre o filme
mas exterior a ele são também importantes como sinal do funcionamento de
“Mary”. Como se um filme em “porta giratória”, em “Mary” está-se sempre a
entrar ou a sair de qualquer coisa. É talvez a principal marca distintiva da
estrutura narrativa de “Mary”, com Ferrara, cujos piores (ou menos
interessantes) filmes são sempre aqueles formalmente mais “limpos”, a arriscar
uma construção em “manta de retalhos”, conciliando registos heteróclitos e
aproximando matérias narrativas de vária ordem. “Entrar” e “sair”: se o filme
entra e sai das vidas das suas personagens saltitando entre elas, também entra
e sai (como dissemos) do programa de televisão de Forest Whitaker, ou do “filme
no filme” que é aquele que a personagem de Matthew Modine, um realizador, tem
pronto a estrear, baseado no Evangelho de Maria Madalena. Esta circulação, de
resto, é anunciada na brilhante sequência inicial do filme: Binoche, uma actriz
chamada Mary que interpreta o papel de Maria Madalena no filme de Modine,
justamente apanhada no ponto em que já não quer (ou já não sabe como) sair.
Acabou a rodagem mas ela recusa-se a sair da personagem, a abandonar a pele de
Maria Madalena – problema de “encarnação” ou sua superação: Binoche não
emprestou um corpo à personagem, ofereceu-lhe um espírito. Uma espécie de
iluminação ou revelação, em todo o caso um “encontro”. Ferrara já filmou
vampiros mas isto nada tem a ver com vampirismo, é apenas a fé como entrega
absoluta, uma “entrada sem saída”, um “no way out”. Em vez de voltar para Nova
Iorque, segue para Jerusalém.
Pressentem-se – é o risco
assumido da “manta de retalhos” – vários filmes a acotovelarem-se dentro de
“Mary”, como aliás já deve ter dado para perceber. “Mary” tem um lado “crítica
do mundo moderno”, que usa a personagem de Binoche como contraponto. Algum
desse “mundo moderno” talvez seja um bocado palha no contexto do filme, ou por
outra, talvez se dê demasiado a ver como “sinalização” (e pouco mais) desse
“mundo moderno” (as alusões ao conflito israelo-palestiniano, os boicotes da
direita religiosa ao filme de Modine, etc). Mas integra, e isso é mais
interessante, uma “crítica do espectáculo”, e é sobretudo aqui que a personagem
de Binoche é um contraponto absoluto. Especialmente quando oposta à personagem
de Matthew Modine, realizador meio poltrão, indeciso entre o prestígio “arty” e
um estrelato a maior escala; tem-se visto, e é fácil ver, uma alusão a Mel
Gibson e à sua “Paixão de Cristo”, mas Ferrara é alguém demasiado auto-punitivo
para se excluir completamente a si próprio do retrato. Se Modine é a vaidade e
a vontade de um “não comprometimento” tão grande quanto lhe for possível,
Forest Whitaker completa o desdobramento: personagem em perda na vida pessoal,
é alguém “sem lei” (como o tenente do outro filme) porque a perdeu, algures
entre os desejos de grandeza e as tentações da carne. O protagonista
“ferrariano” típico surge cindido nas duas personagens masculinas – e face a
elas Binoche, a personagem feminina, na sua plenitude (e no seu “acordo”) de
corpo e alma, é uma espécie de projecção ideal e idealizada, alguém intocável
mas que por sua vez, pode tocar. E o mistério desse toque, de maneira não
negligenciável, está no cerne de “Mary”. Como essa cena em que Whitaker,
desesperado pela possibilidade de o seu filho recém-nascido morrer, fala com
Binoche ao telefone e ela lhe pede (como o Johannes do “Ordet” de Dreyer) que
experimente “falar com Deus”. Ele não sabe como se fala com Deus, responde “I
can’t speak to God”. Mais tarde entrará numa igreja. “Como entrar” – é o grande
tema, e a grande dúvida, de “Mary”.