A DESAPARECIDA
De John Ford
Os dois mais belos “regressos a
casa” filmados na idade clássica do cinema americano são os de Robert Mitchum
em “The Lusty Men / Idílio Selvagem”, de Nicholas Ray (1952) e o de John Wayne
em “The Searchers / A Desaparecida”, de John Ford (1956). Acontecem os dois no
princípio do filme – e no de Ford, que agora nos interessa, esse regresso é
mesmo a abertura do filme. Num caso como noutro, a extraordinária paz do
“homecoming” é mera ilusão. Ford não o explicitou como Ray, que disse (mais do
que uma vez) que “não se pode voltar a casa”. Ethan Edwards, a personagem de
John Wayne em “A Desaparecida”, regressa mais do que uma vez, para voltar sempre a partir – e no fim, nem
chega a entrar, a porta, em rima directa e circular com o plano do princípio
fecha-se sobre ele, que avança de costas voltadas deserto adentro. Ford não
seria tão radical como Ray: há quem possa regressar a casa, e se a elipse final
de “A Desaparecida” não nos engana, várias são as personagens que regressam, em
toda a plenitude do “regresso” e da “casa”. Mas isso não se aplica a todos e há
um homem, que no fim de contas nunca teve ou há muito tempo já não tem uma
casa, que é devolvido ao mesmo deserto de onde veio. Esta é uma das muitas
histórias contadas por “A Desaparecida”, talvez a mais trágica, talvez a mais
doce, possivelmente a mais significativa e a mais americana.
“A Desaparecida” é um dos mais
célebres e adorados filmes de John Ford. Favoritos, cada um tem o seu (como
esquecer “She Wore a Yellow Ribbon / Os Dominadores”, como?), mas Peter
Bogdanovich tem obviamente toda a razão quando diz, na versão comentada do
filme incluída neste DVD, que “A Desaparecida” é um dos cinco ou seis títulos
maiores da obra de John Ford. Realizado em 1956, é um Ford daquele que se
convencionou chamar o “período maduro” do cineasta americano, designação
insuficiente (porque pressupõe que por exemplo o Ford dos anos 40 não era
“maduro”) que importa precisar um pouco mais. Como toda a gente sabe (e toda a
gente conhece o “…and I make westerns”) o “western” foi sempre o território de
eleição de John Ford, género eminentemente americano (como todos os outros,
aliás) com cuja história se confunde. Espécie de grande narrativa mítica da
construção da América, foi um género com uma tendência (natural e facilmente
explicável) para um maniqueísmo sem grandes problemas de consciência, mormente
no tratamento dos índios – silhuetas na paisagem, não forçosamente entidades
malévolas mas obstáculos a ultrapassar, como um rio ou um rochedo, e portanto
desprovidos de verdadeira “humanidade”. Sobretudo a partir do pós-guerra, e
mais propriamente a partir dos anos 50, o emergir de uma nova “sensibilidade”
começou a desenhar novos contornos para o “western”, numa atitude
desmistificadora – é sobretudo o caso dos anos 60, apogeu do “western
revisionista”, que na maior parte dos casos era já, literalmente,
“pós-western”.
Sem que na altura houvesse muita
gente para dar por isso (e Scorsese, salvo erro, menciona esse aspecto num dos
“extras”do DVD) Ford não só acompanhou como antecipou esse movimento. À entrada
dos últimos dez anos da sua obra (“A Desaparecida” é de 1956, o último, “Seven
Women / Sete Mulheres”, é de 1965) Ford estava já a preparar o fim do género
que décadas antes ajudara a criar e a estabelecer – é o tempo dos seus filmes
“crepusculares”, e é sobretudo no sentido desta palavra, “crepuscular”, que se
devem entender as alusões ao período de “maturidade” de Ford. A sua derradeira
homenagem aos índios, “Cheyenne Autumn”, viria em 1964. Mas “A Desaparecida”,
sem se resumir a isso (bem longe de tal), pode ser enquadrado nessa reflexão
sobre a presença e o lugar dos índios e das culturas nativas americanas. De
forma, aliás, razoavelmente complexa, uma vez que se trata de um filme que
aparentemente reproduz os lugares-comuns sobre os índios – ferozes, selvagens,
violadores e raptores de crianças brancas.
Tudo repousa mais uma vez na
personagem de Ethan Edwards, porventura a mais turva personagem de Ford (e de
Wayne), personagem cheia de “sentido” (e de “sentidos”), contraditória e, no
fim do filme, como que “expelida”. Mil vezes Ford se projectou em Wayne, mil
vezes Wayne foi o representante de Ford (e, pormenor, uma das coisas que alguém
menciona nos extras é o modo como Wayne se “apropriava” de gestos e maneirismos
típicos de Ford). Aqui, se existem projecção e representação, elas são bastante
mais ambíguas.
“Gostava que o tio Ethan
estivesse” aqui, diz o sobrinho na sequência em que a pequena casa-oásis no
meio do deserto é cercada pelos Comanches. Podia-se descrever o movimento de “A
Desaparecida” como algo entre a necessidade desta presença e a altura em que,
no plano final, ele se remete ao deserto e a porta se fecha – quando a sua
presença deixa de ser necessária e ele já não tem lugar. Narrativamente, é
capaz de ser a história mais importante de “A Desaparecida”. Ethan estava fora
nessa noite que lança o drama, quando a casa do irmão e da cunhada é atacada
por índios. Acontece um massacre, e o segundo regresso de Ethan, para descobrir
o que restou e o que aconteceu aos familiares, contém algumas das mais ásperas
elipses da obra de Ford (o plano em que Wayne assoma à entrada do celeiro, por
exemplo, em dilacerante rima com o plano inicial). Mas as duas sobrinhas de
Ethan, uma adolescente e uma criança, ao que tudo indica foram raptadas, e
estão portanto vivas, algures num acampamento índio. Noutra fabulosa elipse,
percebemos mais tarde o que aconteceu à mais velha (“queres que te faça um
desenho? Por mais tempo que vivas não me faças perguntas”). Monta-se uma
expedição de salvamento e pouco tempo (e mais elipses) depois, restam dois:
Ethan e o sobrinho adoptivo, Martin (Jeffrey Hunter) um mestiço meio-cherokee
que o irmão tinha adoptado.
Em mais do que um sentido, a
história de “A Desaparecida” é tanto a da busca da rapariga raptada como a da
relação entre Ethan e Martin – e sobretudo, da maneira como o olhar de Ford vai
tratando um e outro. Ethan Edwards é o homem amargo, solitário, complexado,
carregado de ódio contra os índios. Em suma, se é que se pode somar tão
simplesmente, um racista (o que é exemplarmente expresso numa das mais
terríveis cenas do filme, o encontro com um grupo de mulheres brancas
resgatadas pela cavalaria a uma tribo índia: “estas mulheres já não são
brancas”). Um anti-herói, como os que por esta altura já havia no cinema
americano mas que não é costume associar a Ford (ou a John Wayne). E Martin é
rapaz meio-índio, que vai crescendo e tornando-se adulto ao longo dos anos que
a busca demora. Se há um “discurso” de Ford, como parece inegável que há, ele
tem que ser procurado na evolução destas duas personagens aos olhos da câmara.
Reparar como a pouco e pouco a personagem de Hunter vai aumentando de
importância, e como é o seu ponto de vista que se vai impondo (fundamental, a
magnífica sequência, em falso “flash back”, da leitura da carta pela sua
namorada), assim como a sua vontade e as suas ideias, num movimento paralelo ao
apagamento de Ethan Edwards. No fim, como que por uma ironia carregada de
sentido, quem regressa a casa são uma miúda “aculturada” pelos comanches, e um
semi-cherokee que vai casar com uma filha de emigrantes dinamarqueses. Ethan
Edwards fica com o deserto.
Também por isso “A Desaparecida”
se desenha como uma grande saga americana, tingida em tons de tragédia
clássica. Não sabemos dizer o que é aqui mais admirável. Se o tratamento coral
da paisagem (Monument Valley ou as planícies nevadas), se a absoluta depuração
narrativa (as elipses, os cinco anos que se podem passar de um plano a outro),
se a progressão obstinada e demencial da personagem de Wayne (momento de
suprema loucura: Ethan a descarregar a espingarda contra uma manada de búfalos,
“para os índios não terem o que comer”), se a capacidade expressiva que Ford
revela em cada enquadramento – como diz alguém nos extras, “se querem pintura,
vejam John Ford”. “A Desaparecida” é um dos monumentos do cinema clássico
americano. É para ser visto, qualquer explicação fica aquém.
LMO