NE TOUCHEZ PAS LA HACHE
de Jacques Rivette
Tivesse este filme chegado a
estrear em sala e seriam as únicas 5 estrelas (pelo menos as únicas 5 estrelas
“de caras”) que teríamos dado em todo o ano. Ne Touchez Pas la Hache é uma
maravilha, uma obra-prima, o melhor Jacques Rivette em muitos anos,
eventualmente desde o seu díptico sobre Joana d’Arc, Jeanne la Pucelle (1994). É uma adaptação de uma novela de Balzac, A Duquesa de Langeais, que
ao que parece o escritor francês publicou originalmente com o título, Ne
Touchez Pas la Hache, escolhido por Rivette para o seu filme. Convém dizer que
nada disto é muito óbvio ou muito evidente tratando-se de Rivette, cineasta que
tem pouquíssimos filmes “de época” (Ne Touchez Pas la Hache passa-se no
princípio do século XIX) e muito poucas adaptações literárias canónicas (sendo
certo que Balzac, quando se trata de “adaptar”, é o seu escritor de eleição: já
estivera na base, mais ou menos remota, de Out 1 e da Belle Noiseuse). É
uma história de “amor frustrado”, e se com esta expressão evocamos uma célebre
tetralogia de Manoel de Oliveira há boas razões para isso, num filme que
permite pensar (muito) no Amor de Perdição, e de algum modo também na Belle
Toujours, cujos protagonistas, Michel Piccoli e Bulle Ogier, reencontramos, em
singular coincidência, entre a galeria de secundários no filme de Rivette.
Mas aqui os protagonistas,
fenomenais, são Jeanne Balibar e o recém-desaparecido Guillaume Depardieu,
filho “rebelde” de Gérard. Balibar não será uma supresa para ninguém, é uma das
mais conhecidas actrizes francesas da sua geração, e para mais é uma
“rivettiana” reincidente (tínhamo-la visto em Va Savoir). Mas Depardieu,
homem de carreira irregular e vivência acidentada, é uma revelação: o seu
Marquês de Montriveau é verdadeiramente o papel de uma vida, frágil e poderoso,
selvagem e codificado. Há pouco, num depoimento a seguir à morte de Guillaume,
Balibar contou que foi Rivette quem lhe pediu para escolher o actor com que
quisesse fazer contracenar a sua Duquesa Antoinette de Langeais, e que então se
lembrou de ir buscar à sua pouco estável (e um tanto dissoluta, mesmo
“suicidária”) existência o jovem Depardieu. Também contou que foi Guillaume que
trouxe uma ideia decisiva: sempre que estavam os dois em campo, a Duquesa devia
“sentir medo” do Marquês. O medo, o perigo, a ameaça, velhos condimentos
rivettianos que aqui, ao contrário do que acontecia em Va Savoir (“onde está
o perigo cresce também aquilo que salva”, dizia-se nesse filme, em citação de Hölderlin), não salvam ninguém, e muito menos a Duquesa. Que
brinca com a paixão – mais com a do Marquês por ela do que com a dela por ele –
por entre justificações de ordem ética e religiosa e uma “coquetterie” um pouco
fútil e egoísta (estamos, é bom de ver, submetidos aos códigos de conduta
social dos salões da aristocracia parisiense de mil oitocentos e tal) até ao
ponto em que ele se zanga. É quando o “machado” vem ao caso, o machado que é
uma relíquia (decapitou Carlos I de Inglaterra) e cuja referência serve de
aviso: “madame, ne touchez paz la hache”, diz o Marquês. Não se brinca com
machados, é a moral da história. Depois do aviso do Marquês, a história muda, e
é a vez dele fazê-la sentir o frio da lâmina sobre o pescoço. Ele desaparece, e
deixa-a consumir-se. Quando o filme começa (antes do flash-back que nos contará
o que aconteceu) o Marquês acredita ainda poder ir a tempo de acabar com a
brincadeira, e arrancar a Duquesa à sua clausura no convento das Carmelitas em
Maiorca.
Opor o “teatro social” ao fogo
que as personagens trazem dentro de si, eis uma explicação possível do que faz
mover e decidir a “mise en scène” de Rivette. Num filme que praticamente não
tem grandes planos, o “décor” é sempre uma moldura que enjaula as personagens,
a grelha (com uma expressão “física”, mas enformada pelo “social”) que as detém
e que ao mesmo tempo em que justifica os seus comportamentos, os seus
movimentos de aproximação e afastamento, os torna absurdos, quase sacrificiais
(e é em sacrifício, obstinação ética, amor provado “a contrario” pela renúncia,
que a “coquetterie” da Duquesa se converte nas cenas maiorquinas do princípio
e, paroxisticamente, do fim). Fabulosos, e pura libertação de energia, os
momentos em que toda esta tensão rebenta – não há palavras para a “violação
simbólica” da cena em que, abrindo portas atrás de portas num estardalhaço para
que muito contribui a perna (a prótese) que Depardieu arrasta, o Marquês invade
os aposentos da duquesa. Mas decisivo é ainda, e diríamos que uma recorrência
no Rivette “histórico” (na Jeanne d'Arc encontramo-lo também), uma maneira de
opor o lado mais artificial e “determinado” da narrativa (as convenções
sociais, a reconstituição da época, o texto, a própria representação dos
actores, etc) a um eco que é quase “naturalista” (um naturalismo “bricolé”, por
assim dizer): donde a muito especial força das cenas em “décors” (e luz)
naturais, o convento, os bosques e o mar (e o chilrear dos pássaros na banda de
som), como são praticamente todas as cenas em Maiorca. E perante a espécie de
“perfeição banal” que assim enquadra as personagens e as mergulha na luz “real”
da vida de todos os dias, tudo se torna ainda mais impressionante, mais duro e
mais comovente.
LMO
(escrito a propósito da edição portuguesa em DVD)