Munich 1938 ou la Paix pour Cent Ans é o primeiro dos grandes documentários históricos de Marcel Ophuls, que a seguir (em 1969) realizaria Le Chagrin et la Pitié, porventura o mais célebre dos seus filmes e aquele que firmou definitivamente a importância do filho de Max. Munich, como outros futuros filmes de Ophuls, foi realizado para a televisão, por encomenda do canal francês ORTF e com a participação de uma estação de televisão alemã – razão pela qual se fizeram duas versões diferentes do filme, uma francesa outra alemã, com diferenças que terão ido um pouco para além da questão linguística (em todo o caso a versão que vamos ver, a francesa, é tida como sendo a “autêntica”).
Dividido em duas partes, cada uma intitulada a partir de citações de Winston Churchill (“La Faiblesse des Bons” e “La Malice des Mechants”), Munich é uma análise detalhadíssima do processo que culminou com a assinatura dos acordos de Munique, em Setembro de 1938, o último e desesperado gesto de “appeasement” da gula de Hitler, que na prática sacrificou a Checoslováquia (assim oferecida ao famigerado “lebensraum”) a troco da promessa de uma “paz para cem anos”, como então, nas potências ocidentais (França e Reino Unido), muitos acreditavam.
Em 1967 ainda estavam vivos muitos dos intervenientes directos ou indirectos no processo, e Ophuls foi em busca deles. O leque de deponentes é impressionante, e se se concentra sobretudo em antigos responsáveis políticos ou militares franceses, também faz ouvir ingleses (Anthony Eden, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido até Fevereiro de 1938), alemães (Paul Schmidt, intérprete de Hitler) e checos (Hubert Masaryk, o único checo presente nas conversações, integrado na delegação britânica). Dos quatro protagonistas do encontro de Munique, no entanto, só Edouard Daladier, então primeiro-ministro de França, estava vivo em 1967. Sem surpresa, é com ele que Ophuls abre o filme, e o seu testemunho – a sua descrição dos factos e as suas impressões sobre os factos, o rosto que se diria ainda possuído por uma esmagadora amargura – é absolutamente crucial na organização de Munich. Os outros três signatários – Hitler, Chamberlain e Mussolini – ficam, naturalmente, remetidos à condição de “protagonistas ausentes”; mas dir-se-ia haver um outro “protagonista ausente”, alguém cuja sombra se faz sentir ao longo de todo o filme, desde os títulos iniciais; justamente Winston Churchill, que ainda não tinha as responsabilidades que viria a ter mas foi, na altura, um dos mais claros e prescientes críticos do acordo de Munique. As suas palavras ecoam em diversos momentos do filme, seja através das suas memórias, lidas em voz alta pelo seu filho Randolph, seja pelo relato de conversas particulares como as descritas pela sua amiga Lady Asquith (“não vendemos só a Checoslováquia, vendemo-nos a nós”).
Se, através dessas alusões, Munich se constitui numa espécie de homenagem à lucidez de Churchill, a atitude de Ophuls não é necessariamente acusatória para com todos os outros que acreditaram, mais ou menos, que o sacrifício da Checoslováquia ia conter Hitler e se justificava por esse bem maior de uma “paz para cem anos”. Como alguém diz no filme, “falar depois das coisas acontecerem é fácil”. Ophuls, falando e fazendo falar trinta anos depois das coisas terem acontecido, sabe-o bem. Mais, muito mais, do que um “indictment”, Munich é um esforço de compreensão dos mecanismos políticos (todas as razões de contexto, quer em França quer no Reino Unido) e individuais (a própria psicologia dos intervenientes, com destaque para Neville Chamberlain, que como refere Lady Asquith acabou por se ver a si próprio como “um Messias” cuja missão era “salvar a alma dos ditadores”) que levaram à assinatura do acordo. Nenhuma confusão de prioridades: como os títulos de ambas as partes afirmam, é muito claro quem são os “bons” e quem são os “maus”. O que importa é perceber por que razão é que os “bons” foram “fracos” demais perante a “malícia” dos “maus”.
E, enquanto tudo isto se passava,
Fred Astaire dançava. Munich também
é, obviamente, um requiem pela inocência do tempo em que se sapateava sobre o
vulcão.
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“Meu Deus Marcel, a sorte que tiveste por o cineasta
Max Ophuls ter emigrado com a família para Oeste e não para Leste”
(Marcel Ophuls, num suspiro durante o filme)
Para assinalar o primeiro aniversário da queda do Muro de Berlim, a BBC encomendou a Marcel Ophuls um filme sobre o tema, que focasse também a questão da reunificação alemã, lançada pelos acontecimentos de Novembro de 1989 e formalmente concretizada meros onze meses depois, em Outubro de 1990. Novembertage foi esse filme, o penúltimo na obra de Ophuls, que depois dele só realizou Veillées d’Armes, em 1994. Por causa do meio para que foi feito – a televisão – Novembertage teve uma circulação restrita e persistem algumas dúvidas quanto à sua real data de estreia, encontrando-se menções a 1990, 1991 e 1992 conforme as fontes. Mas, em princípio, terá mesmo sido exibido na BBC no final de 1990, pelo que adoptamos essa como a data de Novembertage.
Ophuls chamou ao seu filme uma “comédia musical”. Gesto dessacralizador, com certeza, que implica um distanciamento (por acréscimo, é a própria história recente da Alemanha que é tornada numa “comédia musical”) e onde não é impossível encontrar algum espírito de auto-defesa por parte do próprio Ophuls, porque obviamente a história da Alemanha lhe diz muito e condicionou a sua própria vida (Marcel era um garoto quando o pai Max decidiu levar a família para onde estivesse resguardada dos nazis). Mas também, e na maneira como o filme responde a esse apodo (da Marlene do Blaue Engel de Sternberg à Liza Minelli do Cabaret de Bob Fosse vários são os excertos de filmes e de canções que vêm comentuar, pontuar ou influenciar a narração e a montagem), também um gesto “operativo”: como se só pela “comédia” fosse possível narrar a “débacle” da RDA. Do mal entendido que levou Schabowski, na noite de 9 de Novembro, a precipitar a abertura da fronteira, ao guarda-fronteiriço, de serviço nessa noite, que só soube que devia deixar passar as pessoas porque a mulher lhe telefonou a contar-lhe… É a comédia, ainda, que responde frequentemente aos entrevistados de Ophuls, sobretudo aos que tiveram responsabilidades políticas na manutenção da RDA ou no seu desabamento, como Egon Krenz ou Schabowski, ou ainda, e muito especialmente (porque a sua entrevista tem momentos inacreditáveis, como quando ele se põe a falar da sua “ingenuidade”), Markus Wolf, o “super-espião”, eminência parda da STASI. Da comédia pode-se encarregar Ophuls “in loco” (quando cantarola, quando graceja, quando recorre à provocação dando mostras de um perfeito espírito de “stand-up comedian”), ou pode fazê-lo pela montagem (os excertos de filmes, os papagaios, as gargalhadas). Ninguém pode estar seguro de estar a controlar a sua imagem (ou as suas palavras), porque Ophuls faz questão de a guardar para si, sem qualquer neutralidade. Diz-se que alguns intelectuais da RDA, como Christa Wolf, se recusaram a prestar depoimentos para o filme justamente com medo disto. Caso particularmente revelador da severidade com que Ophuls usa o seu dispositivo para confrontar os entrevistados com as palavras e com a História é o momento da conversa com a filha de Brecht, Barbara. Amena cavaqueira, recordações do tempo de crianças (as famílias Brecht e Ophuls conviveram bastante durante exílio americano) mas depois, quando Barbara nega a proximidade do Berliner Ensemble, e a sua própria proximidade pessoal, face ao regime, Ophuls corta para uma declaração de Heiner Muller (que diz que Barbara está a faltar à verdade) e a seguir para imagens de arquivo que mostram Erich Honecker e Barbara Brecht lado a lado durante um espectáculo, na primeira fila da plateia.
Noutros momentos, Ophuls concede. Como quando na conversa com o maestro Kurt Masur este lhe diz que, como Ophuls “não estava lá” não tem o “direito” de fazer certas perguntas. E Ophuls responde: “talvez não tivesse o direito de fazer a pergunta mas obtive uma muito boa resposta”. E é também pelo discurso directo que Ophuls revela, com toda a franqueza, o que sente perante a perspectiva da reunificação alemã. Confrontado com as hesitações e os receios de Barbel Bohley (que sintetizam, por sua vez, as hesitações e receios de outros intervenientes), o cineasta comenta que “não os compreende”, porque a libertação do regime totalitário é uma coisa tão “maravilhosa” que abafa tudo o resto. Mas por aí se toca numa questão que corre todo o filme, a do desmantelamento da RDA como consequência obrigatória da queda do Muro. No Ocidente, o “fim da RDA” e a “queda do Muro” tornaram-se sinónimos; Novembertage ouve os argumentos dos que, lutando pela queda do Muro, acreditavam ainda assim na possibilidade da manutenção da RDA (e que, um pouco como Gorbatchov na URSS, cedo perderam o controlo sobre a “criatura” a que deram vida). Nem que fosse como desconcertantemente responde Heiner Muller: “A democracia aborrece-me, vivi no nazismo e no comunismo, só me sei entender com as ditaduras”.
Inesgotável nas suas implicações
e nas gavetas que vasculha (para Ophuls o “político” está em todo o lado, e não
será por acaso que logo ao princípio associa a libertação política do povo da
RDA à sua libertação sexual), descrente no comunismo mas sem nenhuma fé
excessiva no capitalismo (“money, money, money”, diz a canção, e o filme acaba
sob o signo do dinheiro), Novembertage,
pelo que documenta e pelo que produz sobre essa documentação, é uma peça
fundamental de história contemporânea narrada e investigada através do cinema.
LMO