segunda-feira, 26 de maio de 2025

Munich 1938 ou la Paix pour Cent Ans, Marcel Ophuls, 1967; Novembertage - Stimmen und Wege ("Dias de Novembro - Vozes e Caminhos"), Marcel Ophuls, 1990

 

Munich 1938 ou la Paix pour Cent Ans é o primeiro dos grandes documentários históricos de Marcel Ophuls, que a seguir (em 1969) realizaria Le Chagrin et la Pitié, porventura o mais célebre dos seus filmes e aquele que firmou definitivamente a importância do filho de Max. Munich, como outros futuros filmes de Ophuls, foi realizado para a televisão, por encomenda do canal francês ORTF e com a participação de uma estação de televisão alemã – razão pela qual se fizeram duas versões diferentes do filme, uma francesa outra alemã, com diferenças que terão ido um pouco para além da questão linguística (em todo o caso a versão que vamos ver, a francesa, é tida como sendo a “autêntica”).

Dividido em duas partes, cada uma intitulada a partir de citações de Winston Churchill (“La Faiblesse des Bons” e “La Malice des Mechants”), Munich é uma análise detalhadíssima do processo que culminou com a assinatura dos acordos de Munique, em Setembro de 1938, o último e desesperado gesto de “appeasement” da gula de Hitler, que na prática sacrificou a Checoslováquia (assim oferecida ao famigerado “lebensraum”) a troco da promessa de uma “paz para cem anos”, como então, nas potências ocidentais (França e Reino Unido), muitos acreditavam.

Em 1967 ainda estavam vivos muitos dos intervenientes directos ou indirectos no processo, e Ophuls foi em busca deles. O leque de deponentes é impressionante, e se se concentra sobretudo em antigos responsáveis políticos ou militares franceses, também faz ouvir ingleses (Anthony Eden, que fora ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido até Fevereiro de 1938), alemães (Paul Schmidt, intérprete de Hitler) e checos (Hubert Masaryk, o único checo presente nas conversações, integrado na delegação britânica). Dos quatro protagonistas do encontro de Munique, no entanto, só Edouard Daladier, então primeiro-ministro de França, estava vivo em 1967. Sem surpresa, é com ele que Ophuls abre o filme, e o seu testemunho – a sua descrição dos factos e as suas impressões sobre os factos, o rosto que se diria ainda possuído por uma esmagadora amargura – é absolutamente crucial na organização de Munich. Os outros três signatários – Hitler, Chamberlain e Mussolini – ficam, naturalmente, remetidos à condição de “protagonistas ausentes”; mas dir-se-ia haver um outro “protagonista ausente”, alguém cuja sombra se faz sentir ao longo de todo o filme, desde os títulos iniciais; justamente Winston Churchill, que ainda não tinha as responsabilidades que viria a ter mas foi, na altura, um dos mais claros e prescientes críticos do acordo de Munique. As suas palavras ecoam em diversos momentos do filme, seja através das suas memórias, lidas em voz alta pelo seu filho Randolph, seja pelo relato de conversas particulares como as descritas pela sua amiga Lady Asquith (“não vendemos só a Checoslováquia, vendemo-nos a nós”).

Se, através dessas alusões, Munich se constitui numa espécie de homenagem à lucidez de Churchill, a atitude de Ophuls não é necessariamente acusatória para com todos os outros que acreditaram, mais ou menos, que o sacrifício da Checoslováquia ia conter Hitler e se justificava por esse bem maior de uma “paz para cem anos”. Como alguém diz no filme, “falar depois das coisas acontecerem é fácil”. Ophuls, falando e fazendo falar trinta anos depois das coisas terem acontecido, sabe-o bem. Mais, muito mais, do que um “indictment”, Munich é um esforço de compreensão dos mecanismos políticos (todas as razões de contexto, quer em França quer no Reino Unido) e individuais (a própria psicologia dos intervenientes, com destaque para Neville Chamberlain, que como refere Lady Asquith acabou por se ver a si próprio como “um Messias” cuja missão era “salvar a alma dos ditadores”) que levaram à assinatura do acordo. Nenhuma confusão de prioridades: como os títulos de ambas as partes afirmam, é muito claro quem são os “bons” e quem são os “maus”. O que importa é perceber por que razão é que os “bons” foram “fracos” demais perante a “malícia” dos “maus”. 

E, enquanto tudo isto se passava, Fred Astaire dançava. Munich também é, obviamente, um requiem pela inocência do tempo em que se sapateava sobre o vulcão.

*** 

“Meu Deus Marcel, a sorte que tiveste por o cineasta

Max Ophuls ter emigrado com a família para Oeste e não para Leste”

(Marcel Ophuls, num suspiro durante o filme)

Para assinalar o primeiro aniversário da queda do Muro de Berlim, a BBC encomendou a Marcel Ophuls um filme sobre o tema, que focasse também a questão da reunificação alemã, lançada pelos acontecimentos de Novembro de 1989 e formalmente concretizada meros onze meses depois, em Outubro de 1990. Novembertage foi esse filme, o penúltimo na obra de Ophuls, que depois dele só realizou Veillées d’Armes, em 1994. Por causa do meio para que foi feito – a televisão – Novembertage teve uma circulação restrita e persistem algumas dúvidas quanto à sua real data de estreia, encontrando-se menções a 1990, 1991 e 1992 conforme as fontes. Mas, em princípio, terá mesmo sido exibido na BBC no final de 1990, pelo que adoptamos essa como a data de Novembertage.

Ophuls chamou ao seu filme uma “comédia musical”. Gesto dessacralizador, com certeza, que implica um distanciamento (por acréscimo, é a própria história recente da Alemanha que é tornada numa “comédia musical”) e onde não é impossível encontrar algum espírito de auto-defesa por parte do próprio Ophuls, porque obviamente a história da Alemanha lhe diz muito e condicionou a sua própria vida (Marcel era um garoto quando o pai Max decidiu levar a família para onde estivesse resguardada dos nazis). Mas também, e na maneira como o filme responde a esse apodo (da Marlene do Blaue Engel de Sternberg à Liza Minelli do Cabaret de Bob Fosse vários são os excertos de filmes e de canções que vêm comentuar, pontuar ou influenciar a narração e a montagem), também um gesto “operativo”: como se só pela “comédia” fosse possível narrar a “débacle” da RDA. Do mal entendido que levou Schabowski, na noite de 9 de Novembro, a precipitar a abertura da fronteira, ao guarda-fronteiriço, de serviço nessa noite, que só soube que devia deixar passar as pessoas porque a mulher lhe telefonou a contar-lhe… É a comédia, ainda, que responde frequentemente aos entrevistados de Ophuls, sobretudo aos que tiveram responsabilidades políticas na manutenção da RDA ou no seu desabamento, como Egon Krenz ou Schabowski, ou ainda, e muito especialmente (porque a sua entrevista tem momentos inacreditáveis, como quando ele se põe a falar da sua “ingenuidade”), Markus Wolf, o “super-espião”, eminência parda da STASI. Da comédia pode-se encarregar Ophuls “in loco” (quando cantarola, quando graceja, quando recorre à provocação dando mostras de um perfeito espírito de “stand-up comedian”), ou pode fazê-lo pela montagem (os excertos de filmes, os papagaios, as gargalhadas). Ninguém pode estar seguro de estar a controlar a sua imagem (ou as suas palavras), porque Ophuls faz questão de a guardar para si, sem qualquer neutralidade. Diz-se que alguns intelectuais da RDA, como Christa Wolf, se recusaram a prestar depoimentos para o filme justamente com medo disto. Caso particularmente revelador da severidade com que Ophuls usa o seu dispositivo para confrontar os entrevistados com as palavras e com a História é o momento da conversa com a filha de Brecht, Barbara. Amena cavaqueira, recordações do tempo de crianças (as famílias Brecht e Ophuls conviveram bastante durante exílio americano) mas depois, quando Barbara nega a proximidade do Berliner Ensemble, e a sua própria proximidade pessoal, face ao regime, Ophuls corta para uma declaração de Heiner Muller (que diz que Barbara está a faltar à verdade) e a seguir para imagens de arquivo que mostram Erich Honecker e Barbara Brecht lado a lado durante um espectáculo, na primeira fila da plateia.

Noutros momentos, Ophuls concede. Como quando na conversa com o maestro Kurt Masur este lhe diz que, como Ophuls “não estava lá” não tem o “direito” de fazer certas perguntas. E Ophuls responde: “talvez não tivesse o direito de fazer a pergunta mas obtive uma muito boa resposta”. E é também pelo discurso directo que Ophuls revela, com toda a franqueza, o que sente perante a perspectiva da reunificação alemã. Confrontado com as hesitações e os receios de Barbel Bohley (que sintetizam, por sua vez, as hesitações e receios de outros intervenientes), o cineasta comenta que “não os compreende”, porque a libertação do regime totalitário é uma coisa tão “maravilhosa” que abafa tudo o resto. Mas por aí se toca numa questão que corre todo o filme, a do desmantelamento da RDA como consequência obrigatória da queda do Muro. No Ocidente, o “fim da RDA” e a “queda do Muro” tornaram-se sinónimos; Novembertage ouve os argumentos dos que, lutando pela queda do Muro, acreditavam ainda assim na possibilidade da manutenção da RDA (e que, um pouco como Gorbatchov na URSS, cedo perderam o controlo sobre a “criatura” a que deram vida). Nem que fosse como desconcertantemente responde Heiner Muller: “A democracia aborrece-me, vivi no nazismo e no comunismo, só me sei entender com as ditaduras”.

Inesgotável nas suas implicações e nas gavetas que vasculha (para Ophuls o “político” está em todo o lado, e não será por acaso que logo ao princípio associa a libertação política do povo da RDA à sua libertação sexual), descrente no comunismo mas sem nenhuma fé excessiva no capitalismo (“money, money, money”, diz a canção, e o filme acaba sob o signo do dinheiro), Novembertage, pelo que documenta e pelo que produz sobre essa documentação, é uma peça fundamental de história contemporânea narrada e investigada através do cinema.

LMO

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Z, Costa-Gavras, 1969


Eis um dos mais célebres filmes políticos feitos na Europa durante essas tão politizadas épocas que foram os anos 1960 e 1970, e o filme que definitivamente lançou Costa-Gavras para uma carreira onde abundaram os filmes políticos. Filmes políticos “de esquerda”, evidentemente e quase nem seria preciso dizê-lo, e rodados nos mais diversos sítios, do Chile em Missing (com Jack Lemmon, em 1982) àquelas profundezas americanas onde abundam os racistas e os supremacistas brancos num filme como Betrayed (com Debra Winger, em 1988). Este espírito “vai a todas” valeu a Costa-Gavras uma reputação na primeira linha dos cineastas “de causas”, embora o seu “esquerdismo” político tenha, por norma, pouca correspondência com o relativo conformismo das suas opções de mise en scène – é uma obra geralmente académica, onde a variação se costuma registar apenas no nível de solidez e sobriedade desse academismo. Convém notar, a este propósito, que Z muito naturalmente não foi estreado em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, demasiado evidentes que eram (apesar de todos os “disfarces” do filme) as suas alusões a um regime totalitário de direita – foi apenas exibido em sessões especiais nos meses finais de 74, a tempo de ainda assim levar um título português, Z - A Orgia do Poder, completamente desajustado (damos um doce a quem encontrar aqui qualquer coisa semelhante a uma “orgia do poder”) mas talvez apelativo para um público a quem demasiadas coisas tinham sido proibidas durante demasiado tempo.

Costa-Gavras não era um desconhecido e já tinha alcançado um razoável sucesso com um filme de 1965, Compartiment Tueurs, baseado num romance policial de Sébastien Japrisot. Quando descobriu o romance do grego Vassilis Vasilikos, a ideia de o passar a filme foi imediata. O romance tocava fundo a alguém como ele, exilado político em França desde os anos 50, desde que as opções políticas do seu pai o tornaram “persona non grata” na sua Grécia natal. O romance de Vasilikos relatava o assassinato, com a conivência e o encobrimento das autoridades militares, de um deputado da oposição grega em 1963, acontecimento que podia ser facilmente apresentado como um preâmbulo para a chamada Ditadura dos Coronéis instaurada em 1967. Era portanto o veículo perfeito para denunciar a situação política grega mas, por todas as razões, não podia ser rodado na Grécia. Costa-Gavras tentou os americanos, mas a United Artists, inicialmente receptiva, abandonou a ideia, bem consciente da delicadeza política do tema. Por intermédio de Jacques Perrin, então a iniciar-se como produtor (foi o seu primeiro filme nessa função, conciliando ainda uma participação como actor), conseguiu o apoio dos argelinos (foi como representante da Argélia que o filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1970), o que explica as localidades argelinas e o carácter relativamente não-identificado das nacionalidades e facções em questão (é fácil confundir a história, de facto e tal como o filme a conta, com um hipotético episódio sucedido durante a presença francesa na Argélia). Para o argumento Costa-Gavras rodeou-se de exilados: Jorge Semprun, refugiado do franquismo, e, não-creditado, Ben Barzman, que abandonara os Estados Unidos depois de ter ido parar à lista negra do Senador McCarthy. Contou, ainda, com impressionante leque de actores e actrizes, alguns deles manifestamente subaproveitados (como o veterano Jean Dasté, embora o seu papel corresponda mais ao perfil duma “participação especial”, ou sobretudo a fabulosa Clotilde Joano, aqui numa personagem plana e tratada com descoroçoante indiferença). 

Sobre-aproveitadas são, isso sim, algumas personagens e algumas situações narrativas – o sentimentalismo da relação entre Montand e Irene Papas, dado primeiro pelos flash-backs e “visões” dele, e depois do atentado pelas cenas em que Papas se limita a exibir uma pose sofredora antes de desaparecer do filme, emperra o essencial, que até é algo de bastante pragmático. Quando, depois da morte da personagem de Montand, o “protagonista” passa a ser o juiz Trintignant (personagem também com um duplo na realidade, Christos Sartzetakis, que viria a ser Presidente da República grega), o filme encontra finalmente o seu foco, na história clássica do homem justo que, por mais implicado que esteja no regime, é capaz de ver e distinguir o que está certo e o que está errado (Trintignant, brilhante como sempre, encarna na perfeição este processo de “conversão”, com apoteose na cena em que ele próprio, que passara o filme a corrigir os seus interlocutores instando-os a dizerem “incidente” em vez de “assassínio”, utiliza por sua vez essa palavra – “assassínio”). Maniqueista, Z é certamente, e o filme não se concluirá sem uma série de planos, não isentos de ironia, em que ao espectador é dado o prazer de ver castigados os figurões por trás do complot. Antes disso, e se em termos puramente “cinemáticos” (De Palma chamaria um figo a este aspecto) Costa-Gavras não tira especial partido da “decomposição”, a posteriori e em vários pontos de vista, do acontecimento central (a agressão a Montand), é capaz de uma muito razoável tensão na descrição do ambiente dessa noite, bem suportado em personagens como a dupla Yago/Vago, que parecem nomes de personagens de cartoons, e a que Renato Salvatori e Marcel Bozzuffi conferem uma aura suficientemente perturbadora para configurarem uma expressão de um mal mesquinho e cruel. Um pouco envelhecido, um pouco caótico na sua dispersão, Z conserva ainda assim os elementos necessários para que um visionamento contemporâneo justifique pelo menos uma porção da sua enorme fama.

LMO