sábado, 12 de outubro de 2024

Megalopolis, Francis Ford Coppola, 2024

 


Se há um filme que paira sobre “Megalopolis” - quer dizer, não “paira”, que é bengala de expressão, é exactamente o contrário, está por baixo dele, é a ruína soterrada sobre a qual “Megalopolis” caminha – esse filme é obviamente o “Metropolis” de Fritz Lang. Lang fez o seu filme no caos de Weimar, Coppola fez o seu filme no caos dos nossos anos 20, que ainda não tem nome. Ambos se debatem com a resposta ao caos, e daí vem a utopia de ordem representada pela cidade ideal. Utopia/distopia: “uma distopia é uma utopia realizada”, diz-se algures no filme de Coppola. Lang já o sabia, o “Metropolis” é isso, menos uma premonição do nazismo que em 1927 estava a seis anos de chegar do que um aviso abstracto contra os perigos da ordem e da utopia. A resposta tinha que estar noutro lado, e esse lado é aquele em que “Metropolis” e “Megalopolis” mais espectacularmente se encontram. “O coração tem que ser o mediador entre a cabeça e as mãos”, propunham as personagens de Lang, naquele final em suspensão que não equivalia a mais do que um apelo a que homens e mulheres redescobrissem (digamos a palavra: o Amor) que o melhor que a Humanidade tem está nesse filtro entre o que a cabeça pensa e o que as mãos fazem. Numa suspensão semelhante, e numa cena com imensos paralelismos com o final de “Metropolis”, encontra uma figura para representar a necessidade de tal mediação: o recém-nascido. “Megalopolis” propõe-nos, simplesmente, que saibamos estar à altura do futuro daquele bebé. Os contemporâneos de Lang fizeram troça do final de “Metropolis”, que lhes pareceu uma foleirice; os contemporâneos de Coppola fazem troça do final de “Megalopolis”, que lhes pareceu uma foleirice. Em cem anos, não aprendemos nada (“Megalopolis”, em parte, também é sobre isso).

O Coppola de “Megalopolis” é daqueles que acham que o “seu tempo” só pode ser contado como uma farsa. A ter de decidir qual é o “género” de “Megalopolis”, diria que é uma farsa, provavelmente o género narrativo mais em desuso de todos – e é também isso, diria, que justifica o envolvimento do filme numa versão teatral da Roma antiga, dada por notações, no “verismo” do teatro mais do que no “realismo” do cinema, uma Roma antiga filtrada por outros que contaram “o seu tempo” enquanto farsa, como Shakespeare ou os próprios romanos (ainda que por interposto Fellini, a ideia de que “Megalopolis” é o “Satyricon” de Coppola não me abandona). O duelo entre o “verismo” e o “realismo” é para mim das coisas mais fascinantes do filme, até porque, num filme tão excessivo e tão pouco económico (já lá vou), a condução desse duelo, que transforma tudo (narrativa, personagens, espaços) em afirmação e comentário da afirmação permanentes (tudo é o que é e, ao mesmo tempo, é o lastro do que é), em que tudo é como uma moeda que tem um valor facial e um valor simbólico inseparáveis mesmo quando contraditórios, isto dizia, é a âncora metódica e sistemática que segura o filme e aonde ele regressa depois de cada devaneio. A Antiguidade, mas também o teatro, tornam-se uma perspectiva, um miradouro, um ponto de vantagem – de onde Coppola olha o “seu tempo”, o “seu país”, e também a sua obra, estando “Megalopolis” tão cheio de reflexos dela, dos “Padrinhos” (a personagem do patriarca Jon Voight é uma variação sobre os Corleones, Vito ou Michael) ao “Tucker” (Adam Driver, o arquitecto “e o seu sonho”, é um parente do Jeff Bridges desse filme).

De certa forma, e penso que isto tem sido amplamente notado, “Megalopolis”, ou a Megalopolis-cidade, são também sobre o sonho de Coppola. O que o dinheiro da bilheteira enterrou, que o dinheiro do vinho desenterre, com o esplendor da descoberta de uma ruína da Roma antiga: a Zoetrope. Os 120 milhões que Coppola torrou em “Megalopolis” são uma espécie de vingança contra sua própria falência. E não há melhor nem mais megalopólica vingança do reconstituir num só filme toda a Zoetrope. “Megalopolis” é a maquete em tamanho real, 1/1, do sonho de cinema e de arrogante liberdade que presidia à Zoetrope: ser todo o cinema, toda a memória, todos os “autores”. Todos os “autores”, sobretudo os europeus, que Coppola sonhava convidar para o seu entreposto de autores vindos do mundo inteiro, e que por lá chegaram a andar, de Michael Powell (a presença dele e dos filmes da Archers, como “A Matter of Life and Death”, essa acho que não tem sido muito notada, mas parece-me evidente) a Jean-Luc Godard, sem que os seus projectos tenham dado fruto. Mas é como se a louca ambição coppoliana aproveitasse “Megalopolis” para os fazer também, na versão 120 milhões de uma ideia (a ideia de Coppola e dos americanos da geração de Coppola) de “cinema de autor” europeu. “Megalopolis”, se lhe tirarmos a casca, lembra imenso a mecânica, numa escala de produção ampliada (ampliadíssima), os Godards dos anos 80: a narração descontínua, a mesma dobra entre verismo e realismo e entre valor facial e valor simbólico, as ressonâncias “culturalistas”, o uso do burlesco, a integração do ruído. Disse algures que “Megalopolis” me fazia lembrar um “Soigne ta Droite” com 120 milhões de dólares, mas devia ter dito que ela era, por um conjunto de razões que basta o título para apontar, como o “Rei Lear” (que já agora, produzido pela bizarríssima Cannon de Golan e Globus, foi tecnicamente o “filme americano” que Godard não conseguiu fazer para Coppola, ou que Coppola não conseguiu que Godard lhe desse).

A integração do ruído. Do ruído, do excesso, do lixo, do resíduo. Penso que está aí, finalmente, aquilo que acho mais genial em “Megalopolis”. Coppola não crê que para dar o “seu tempo” seja preciso limpá-lo, remover-lhe o ruido e o lixo à procura de uma vista clara e desimpedida. Acredita, pelo contrário, que o “tempo” se define mais pelo ruído e pelo excesso de matéria residual do que por um suposto núcleo purificado que se atingiria depois de removido o entulho. “Megalopolis” não remove o entulho, integra-o – não precisamos de tirar Trump, a extrema-direita, a internet, os influencers, a música pop de massas, uma cultura barulhenta e superficial, para ver o “nosso tempo”. Precisamos disso tudo, porque é isso que define, mais do que outra coisa qualquer, o “nosso tempo” - 2024, ponhamos-lhe uma data. É um mata-borrão: se a realidade é a tinta, a câmara de Coppola é o mata-borrão, e “Megalopolis” as manchas disformes que ficam impressas no papel do mata-borrão.