quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O que o cinema permite


LE MONDE VIVANT
de Eugène Green

Revelação dum cineasta que se estreou com perto de cinquenta anos, “Le Monde Vivant” é uma das mais gratas surpresas desta temporada cinematográfica – acarinhemo-lo, que não é todas as semanas (não é, não!) que se descobre uma obra-prima. Convém começar por não ligar muito à faceta mais controversa de Green, ao seu discurso sobre “os bárbaros” e “a barbárie”, até porque esse discurso exprime um alheamento, não uma obsessão. Mas sobretudo porque é uma coisa que não tem nada a ver com o seu cinema, e pelo menos a propósito de “Le Monde Vivant” é duma total irrelevância; pode-se, quando muito, ver a coisa ao contrário, e encontrar um exemplo de perfeita aculturação, num filme completamente mergulhado em tradições (narrativas e figurativas) da cultura europeia (francesa, mais propriamente) e do cinema europeu (francês, mais propriamente).
O “Lancelot du Lac” de Bresson é o que mais facilmente vem à cabeça quando se trata de dar uma ideia de com que é que se parece “Le Monde Vivant”, mas a comparação só faz sentido nesses termos. É uma narrativa medieval, o estilo também é seco e austero, e os actores trabalham quase sempre em “frontalidade”, assumindo o texto e deixando que este se assuma como principal suporte do filme. Paremos aqui a comparação, até porque Green nem usa “modelos” como Bresson, mas actores profissionais. Depois, há um cavaleiro, que para casar com a mulher que ama tem primeiro que matar o ogre com quem ela está casada – o desfecho será feliz, coadjuvado por mais um homem e uma mulher, e tudo termina num plano com dois casais a olhar para câmara, enquanto um cão (que faz de leão) corre pelos campos.
Com alguma provocação (talvez ao próprio Green), diríamos que o seu filme trabalha a “suspension of disbelief” duma forma tão eficaz como a do melhor cinema americano – percebe-se que “Le Monde Vivant” é especial quando, para aí ao terceiro plano deste filme de planos razoavelmente longos e quase sempre fixos, o Cavaleiro de Leão (vestido com trajes modernos) desmente que o leão seja o cão que parece ser: um rugido vindo de fora de campo tira as dúvidas. A partir daí o cão é o leão sem burlesco nenhum (e contou-nos Green que são as crianças quem normalmente dá menos importância a esse pormenor do cão/leão, o que faz todo o sentido). À mesma ordem pertence a aceitação do “fantástico”, a personagem do ogre (a propósito: um prodígio figurativo, entre sombras e planos aproximados de uma vestimenta) ou a outra sequência, igualmente “fabulosa”, da árvore animada (efeitos especiais? Basta a imaginação). “Le Monde Vivant” é grande cinema porque faz aquilo que só o cinema faz: constrói um mundo que não é um mundo “reconhecível” mas que o espectador nunca questiona na sua coerência interna, mantendo visíveis os traços que denunciam a representação e o artifício mas sem deixar que quer uma coisa quer outra extravazem para fora do seu próprio lugar – há qualquer coisa de “infantil” aqui (no mesmo sentido, curiosamente, do João César Monteiro de “Silvestre” ou de “Branca de Neve”), no modo como a presença do “efabulador” é tornada evidente sem que isse se interponha na relação com a “efabulação”, cujo prazer é ainda o elemento essencial.
De resto, o filme, impecavelmente escrito, filmado e montado, é uma belíssima (comovente, até) evocação, ou melhor seria dizer “invocação”, da palavra como valor maior na relação entre as pessoas – são as palavras que “furam” a realidade, “é a gramática que o permite” (diz uma personagem), e isso é vivido como uma libertação. Feitas as contas, “Le Monde Vivant” é uma celebração de tudo “o que o cinema permite”, tanto melhor quanto essa expressão não rima com “tudo o que ao cinema é permitido”. A ver vamos se “Le Monde Vivant” encontra distribuidor em Portugal*.
LMO

*O texto é de 2004. Até hoje, não encontrou.