Descontando trabalho para
televisão e publicidade, e algumas experiências documentais, semi-amadoras, na
juventude, o opus 1 de Michael Mann é
Thief, a sua primeira longa-metragem
pensada e executada como cinema e para cinema. Mann (que nasceu em 1943) talvez
não tenha a obra mais linear que é possível conceber – seria preciso rever
títulos como The Last of the Mohicans,
The Insider, Ali, e ver The Keep (de
1983), o único dos seus títulos que não conhecemos, para tirar bem a limpo a
que ponto as derivas temáticas e as incursões noutros modelos narrativos
implicam também uma deriva qualitativa. Mas se pensarmos, dentro da obra de
Mann, num eixo formado por este Thief,
Manhunter (1986), Heat (1995), Collateral (2004), Miami
Vice (2006, e possível “masterpiece”), Public Enemies (2009) e Blackhat (2014) encontramos um fio completamente coerente,
que se prolonga e se refina para além do que possamos pensar de cada um destes
filmes tomado individualmente, e que assenta num série de persistências,
temáticas, narrativas, estilísticas, caso a caso dispostas com ligeiras
variações mas criando de facto um centro, um “eixo” propriamente dito, em torno
do qual tem girado a obra de Mann. E de cada vez que gira, vai atirando poeira
para os cantos: Miami Vice, Public Enemies e Blackhat são declinações tão
refinadas deste “sistema Mann” que não são só o melhor da sua obra, são também
dois filmes máximos da produção americana da última década e, de entre o
“mainstream” hollywoodiano, talvez os filmes que melhor encontraram uma maneira
de explorar as qualidades e as propriedades da nova imagem digital de que o
cinema passou – ou está em vias de passar – a ser feito.
Mas bom, em Thief estávamos em 1981, tudo isso estava ainda muito longe. Ora um
dos exercícios interessantes de uma redescoberta desta primeira-obra de Mann é
perceber a que ponto essa assinatura se nota, muito ou pouco. Pergunta simples,
resposta simples: nota-se, e nota-se muito razoavelmente. Não é, como “forma”,
como construção formal, tão impressionante como alguns títulos posteriores, mas
os elementos que Mann não deixaria de trabalhar já aqui estavam, em potência ou
em latência. Não temos tempo (nem se calhar espaço, mas sem tempo a questão do
espaço não se coloca…) para abordar tudo o que vale a pena abordar com o mesmo
pormenor. Portanto, e tão equitativamente quanto possível, dedicaremos o resto
da “folha” a uma breve enunciação de um punhado de características “mannianas”
que já marcam, ainda que algumas
delas discretamente, este filme.
Assim:
- uma forma de musicalidade:
desde os primeiros planos que os sintetizadores dos Tangerine Dream trazem uma
espécie de palpitação que tanto marca o “ritmo cardíaco” do filme como
contribui para uma atmosfera entorpecida, um ritmo sonâmbulo, que não é
totalmente cortado nem nas cenas mais movimentadas, e que só porventura no
tiroteio do clímax final é que – acompanhando os movimentos de grua de Mann –
se eleva sobre a acção, deixando de a “comentar” para salientar a sua
“explosão”, de um modo, apetece dizer (também pela “coreografia” dessa cena
final), “operático”.
- o cansaço: o entorpecimento do
ritmo sonoro rima, ou contamina, o entorpecimento das personagens. James Caan,
o protagonista, é um ladrão cansado – pensa num último golpe e depois, casa. To get out: obsessão comum a tantas
personagens de Mann, sejam elas da polícia (como em Miami Vice) ou do mundo do crime (como em Thief). Mas to get out é
complicado, também por razões de inércia; e enquanto não saem, as personagens de Mann vão sonhando, com o mar por exemplo.
- o mar: a partir de Manhunter, o mar, com as suas linhas
horizontais a dominarem toda a dimensão do enquadramento, viria a dar
substância a essa visão de qualquer coisa para além da acção e para além das
obrigações profissionais que subjugam as personagens de Mann. O mar é a
possibilidade da fuga, como na fabulosa sequência da lancha e dos “mojitos” em Miami Vice. Ainda sem ser
verdadeiramente uma “substância” (apenas, o que até fica muito, uma espécie de
miragem), o mar é o elemento associado à liberdade, à paz de espírito, ao
conforto doméstico. Aqueles planos na praia são os momentos mais “felizes” de Thief. É para voltar para eles – ou em
memória deles – que Caan comete a chacina final.
- a noite e a cidade: também
desde os primeiros planos que a noite e a cidade, os néons e as silhuetas
verticais recortadas contra o escuro, são um autêntico protagonista. Quase um
coro, ao mesmo tempo indiferente às desventuras das personagens e sempre muito
próximo, muito presente. A expressão de um mundo euforicamente banal, de uma
vida majestosamente alheada. A noite e a cidade, também em Thief (como em Heat,
como em Miami Vice), olham para as
personagens, emolduram-nas, mantêm-nas agarradas ao mundo, são uma recordação
da sua humanidade. No longo diálogo entre James Caan e Tuesday Weld, mais do
que a duração da cena, mais do que as coisas que eles dizem, o que importa são
as janelas envidraçadas por trás deles, a noite e os pontinhos luminosos.
LMO