segunda-feira, 13 de abril de 2015

Thief



Descontando trabalho para televisão e publicidade, e algumas experiências documentais, semi-amadoras, na juventude, o opus 1 de Michael Mann é Thief, a sua primeira longa-metragem pensada e executada como cinema e para cinema. Mann (que nasceu em 1943) talvez não tenha a obra mais linear que é possível conceber – seria preciso rever títulos como The Last of the Mohicans, The Insider, Ali, e ver The Keep (de 1983), o único dos seus títulos que não conhecemos, para tirar bem a limpo a que ponto as derivas temáticas e as incursões noutros modelos narrativos implicam também uma deriva qualitativa. Mas se pensarmos, dentro da obra de Mann, num eixo formado por este Thief, Manhunter (1986), Heat (1995), Collateral (2004), Miami Vice (2006, e possível “masterpiece”), Public Enemies (2009) e Blackhat (2014) encontramos um fio completamente coerente, que se prolonga e se refina para além do que possamos pensar de cada um destes filmes tomado individualmente, e que assenta num série de persistências, temáticas, narrativas, estilísticas, caso a caso dispostas com ligeiras variações mas criando de facto um centro, um “eixo” propriamente dito, em torno do qual tem girado a obra de Mann. E de cada vez que gira, vai atirando poeira para os cantos: Miami Vice, Public Enemies e Blackhat são declinações tão refinadas deste “sistema Mann” que não são só o melhor da sua obra, são também dois filmes máximos da produção americana da última década e, de entre o “mainstream” hollywoodiano, talvez os filmes que melhor encontraram uma maneira de explorar as qualidades e as propriedades da nova imagem digital de que o cinema passou – ou está em vias de passar – a ser feito.

Mas bom, em Thief estávamos em 1981, tudo isso estava ainda muito longe. Ora um dos exercícios interessantes de uma redescoberta desta primeira-obra de Mann é perceber a que ponto essa assinatura se nota, muito ou pouco. Pergunta simples, resposta simples: nota-se, e nota-se muito razoavelmente. Não é, como “forma”, como construção formal, tão impressionante como alguns títulos posteriores, mas os elementos que Mann não deixaria de trabalhar já aqui estavam, em potência ou em latência. Não temos tempo (nem se calhar espaço, mas sem tempo a questão do espaço não se coloca…) para abordar tudo o que vale a pena abordar com o mesmo pormenor. Portanto, e tão equitativamente quanto possível, dedicaremos o resto da “folha” a uma breve enunciação de um punhado de características “mannianas” que já marcam, ainda que algumas delas discretamente, este filme.

Assim:

- uma forma de musicalidade: desde os primeiros planos que os sintetizadores dos Tangerine Dream trazem uma espécie de palpitação que tanto marca o “ritmo cardíaco” do filme como contribui para uma atmosfera entorpecida, um ritmo sonâmbulo, que não é totalmente cortado nem nas cenas mais movimentadas, e que só porventura no tiroteio do clímax final é que – acompanhando os movimentos de grua de Mann – se eleva sobre a acção, deixando de a “comentar” para salientar a sua “explosão”, de um modo, apetece dizer (também pela “coreografia” dessa cena final), “operático”.

- o cansaço: o entorpecimento do ritmo sonoro rima, ou contamina, o entorpecimento das personagens. James Caan, o protagonista, é um ladrão cansado – pensa num último golpe e depois, casa. To get out: obsessão comum a tantas personagens de Mann, sejam elas da polícia (como em Miami Vice) ou do mundo do crime (como em Thief). Mas to get out é complicado, também por razões de inércia; e enquanto não saem, as personagens de Mann vão sonhando, com o mar por exemplo.

- o mar: a partir de Manhunter, o mar, com as suas linhas horizontais a dominarem toda a dimensão do enquadramento, viria a dar substância a essa visão de qualquer coisa para além da acção e para além das obrigações profissionais que subjugam as personagens de Mann. O mar é a possibilidade da fuga, como na fabulosa sequência da lancha e dos “mojitos” em Miami Vice. Ainda sem ser verdadeiramente uma “substância” (apenas, o que até fica muito, uma espécie de miragem), o mar é o elemento associado à liberdade, à paz de espírito, ao conforto doméstico. Aqueles planos na praia são os momentos mais “felizes” de Thief. É para voltar para eles – ou em memória deles – que Caan comete a chacina final.

- a noite e a cidade: também desde os primeiros planos que a noite e a cidade, os néons e as silhuetas verticais recortadas contra o escuro, são um autêntico protagonista. Quase um coro, ao mesmo tempo indiferente às desventuras das personagens e sempre muito próximo, muito presente. A expressão de um mundo euforicamente banal, de uma vida majestosamente alheada. A noite e a cidade, também em Thief (como em Heat, como em Miami Vice), olham para as personagens, emolduram-nas, mantêm-nas agarradas ao mundo, são uma recordação da sua humanidade. No longo diálogo entre James Caan e Tuesday Weld, mais do que a duração da cena, mais do que as coisas que eles dizem, o que importa são as janelas envidraçadas por trás deles, a noite e os pontinhos luminosos.


LMO