terça-feira, 21 de abril de 2015

Estate violenta



Estate Violenta foi a segunda longa-metragem assinada por Valerio Zurlini. Permanece como um dos seus filmes mais famosos e o tempo mais não fez do que evidenciar algo que, à época, talvez não fosse tão claro: que Estate Violenta é uma obra-prima absoluta.

O "verão violento" referido pelo título é o de 1943, ano em que a Sicília e o sul de Itália foram invadidos pelas tropas Aliadas, naquilo que seria o início da "reconquista" da Europa. Foi também nessa altura, e em consequência destes acontecimentos, que Mussolini foi deposto e o fascismo italiano se começou a desmoronar - tempos depois, Mussolini, já completamente reduzido a um boneco nas mãos de Hitler, voltaria ao poder na república "fantoche" de Saló, mas isso já é outra história (e outro filme).

Estes acontecimentos estão no filme, e do mero pano de fundo a que parecem inicialmente reduzidos vão acabar por se tornar decisivos. É a guerra que vai definir os destinos (e a separação) das personagens de Trintignant e Rossi-Drago, como de certo modo fora já a guerra que os juntara (a personagem de Eleonora Rossi-Drago é viúva de um militar morto em combate). A articulação entre o contexto histórico e a narrativa propriamente dita, e a crescente influência do primeiro sobre a segunda, é mesmo um dos aspectos mais perfeitos da construção de Estate Violenta. Se – sequência do genérico inicial, com a chegada do barco que transporta um soldado, ou marinheiro, ferido – a guerra é logo dada como “sinal”, depois invade o espaço do filme (uma colónia balnear no norte de Itália, Riccione, e que está portanto longe da frente de batalha), irrompendo brutalmente em duas sequências, ainda na primeira parte: quando o grupo de amigos, numa festa, liga a rádio e em vez de música ouve o noticiário relatando a invasão Aliada; e depois, na praia, quando um avião alemão "tresmalhado" passa em voo rasante lançando o pânico entre os veraneantes. Sequências que para além de delinearem o enquadramento histórico da narrativa cumprem outra função, fundamental para os destinos do filme: a de deixar cada vez mais claro que aquele grupo de personagens (Trintignant e o seu alegremente fútil círculo de amigos) não pode fingir durante muito mais tempo que a guerra (bem como a convulsão política a ela inerente) não existe. Primeiro "ouve-se" a guerra (a rádio), depois "vê-se" (o avião), num crescendo que culminará com um terceiro momento: aquele em que se "experimenta" a guerra, quando o comboio em que viajam Trintignant e Rossi-Drago é bombardeado. Acaba-se o jogo de escondidas que levara Trintignant a ignorar mesmo a ordem de incorporação no exército e a tomar-se, perante a lei, desertor. Da indiferença, da apatia e do conforto à tomada de uma posição. Não por acaso, esse momento coincide com o fim do filme.

A evolução e o processo de amadurecimento da complexíssima personagem de Trintignant (burguês acomodado e indiferente, filho do representante local do governo fascista) é um dos aspectos centrais do filme, onde até é possível ver alguma representação autobiográfica do próprio Zurlini. Aliás, não serão casuais as inúmeras semelhanças que se podem estabelecer entre esta personagem e a de Jacques Perrin em La Ragazza con Ia Valiggia. Mas neste processo é fundamental a relação, fabulosamente encenada e mostrada, entre ele e a outra figura-chave do filme, a dorida personagem de Eleonora Rossi-Drago. É qualquer coisa que se passa muito para além das palavras: a relação entre eles estabelece-se acima de tudo pelo olhar. O olhar obsessivo de Trintignant sobre ela, a que Zurlini corresponde com uma câmara que se debruça sobre as personagens com igual obsessão. A este respeito há uma sequência absolutamente genial: a visita do grupo de amigos à casa de Trintignant, na noite em que este e Rossi-Drago aceitam que alguma coisa se passa entre eles. Em longos planos com um prodigioso movimento interno, com sucessivas entradas e saídas de campo dos actores, a câmara vai apertando o cerco em tomo do par, da mesma maneira que Trintignant vai encerrando Rossi-Drago no seu olhar. O que a câmara segue, no fundo, é o duelo de olhares que ali se trava, as perseguições e as fugas, numa sequência vertiginosa e verdadeiramente antológica. Como antológicos são todos os planos, de todo o filme, em que Zurlini se fixa sobre o olhar de Trintignant, por sua vez fixo sobre Rossi-Drago - em La Ragazza con la Valiggia levará isto ainda mais longe na relação entre Perrin e Claudia Cardinale: quantos minutos tem aquele grande plano de Perrin observando Cardinale a dançar com os executivos que "engatou"? Dois? Cinco? Dez minutos?


Muito fica por referir: a relação de Rossi-Drago com a mãe e a de Trintignant com o pai, ou toda a fabulosa sequência do circo, ou a noite em que Trintignant é interpelado na praia pela patrulha de soldados, ou o tratamento da luminosidade, aquele céu suposto ser um “céu de Verão” mas tão cinzento. Estate Violenta é uma obra-prima, um dos mais belos filmes do mundo.

LMO