De toda a série com a personagem
de Dirty Harry, Sudden Impact foi o
único filme em que Clint Eastwood chamou a si a realização. Este foi o quarto
episódio (depois de Dirty Harry, Magnum Force e The Enforcer, respectivamente dirigidos por Don Siegel, Ted Post e
James Fargo) e a Dirty Harry Clint só voltaria mais uma vez, em 1988, com The Dead Pool, onde a realização vinha
creditada ao seu velho comparsa Buddy Van Horn (e que é também, como nos parece
dificilmente contestável, o mais irrelevante da série, simples adenda rotineira
ao percurso de uma personagem a que Clint pouco ou nada tinha já a acrescentar,
e tanto assim que não lhe voltou depois a pegar).
Chamar a atenção para este ponto
(a realização em nome próprio) não implica a descaracterização de qualquer um
dos outros títulos, porque é evidente que Dirty Harry foi, desde sempre, uma
personagem fortemente controlada por
Eastwood (que, de resto, é o único traço de união numa série de filmes que
nunca teve duas vezes o mesmo realizador). Implica, isso sim, um reforço da
dimensão especial, ou especialmente preparada, de Sudden Impact, confirmada aliás pelos relatos da sua demorada
gestação e da apertada supervisão que Eastwood exerceu sobre a escrita do
argumento. Num certo sentido, Sudden
Impact é a despedida de Dirty Harry, que no fim desaparece na sombra de um
mundo tornado cada vez mais grotesco e distorcido, sujo e psicopata (e é por passar
por cima disto, como se nada fosse, que The
Dead Pool parece a tal adenda insignificante).
Escreveu Noel Simsolo, no seu
livro sobre Eastwood, que Sudden Impact
era o filme em que o cineasta mais se tinha preocupado em aprofundar tudo o que
o separava da personagem de Dirty Harry. Parece-nos uma boa maneira de ver as
coisas, e de definir o “projecto” de Sudden
Impact. Mais ainda, acrescentamos, um filme em que essa “separação” se
processa por tangentes auto-paródicas, como se se tratasse de filmar Dirty
Harry enquanto personagem “mitológica” e irreal – por exemplo a cena no
“diner”, dos contrapicados grandiloquentes com que Clint se filma à tirada
sobre os seus amigos Smith & Wesson (que o realizador imaginava ser a que
fosse “pegar”; mas não, o que “pegou” foi o “make my day” que se ouve perto do
fim). Toda a primeira parte de Sudden
Impact (até ao momento em que Harry deixa São Francisco e vai para a
cidadezinha onde o resto do filme se desenrola) parece pensada de maneira a
criar um “excesso” na personagem. Um excesso de presença, um excesso
“iconográfico”, um excesso de “aura”. Ao ponto de se chegar mesmo a uma espécie
de absurdo, de que é exemplo a cena da “chantagem” com o velho mafioso, que
morre por acção directa das palavras
de Harry, como se tudo nele se tivesse tornado tão “excessivo” que até as suas
palavras produzissem um efeito mortífero. Uma personagem em excesso é uma
personagem que está a mais – como bem percebem os seus superiores que, cansados
da tendência de Harry para criar um novo sarilho a cada resolução de outro
sarilho, o mandam embora por uns tempos, umas “férias à força” a ver se as
coisas (incluindo Harry) se voltam a equilibrar. É humilhante, mas a humilhação
é o outro lado da auto-paródia, já estava presente no filme (a cena no
tribunal, a primeira com Harry, onde o réu é mandado em liberdade por
irregularidades processuais, os insultos e o “you’ve got class, Harry”) e
voltará a estar (por exemplo, o cão, “indomável” no que à satisfação de
necessidades fisiológicas diz respeito, que a certa altura o acompanha).
O cão, e já que falámos dele, que
é o símbolo mais visível da espécie de mergulho na animalidade (“com animais
nunca”) do mundo da segunda parte, suja, fria, psicologicamente viscosa, quase
um barroquismo psicopata que não está longe, em certos momentos (a ideia de um
universo deformado, para lá do espelho), dos “bas-fonds” de algum Lynch. À
personagem “em excesso” da primeira parte corresponde, na segunda, uma
humanidade “em defeito”. À criminalidade urbana de São Francisco (uma doença
“social”) sucede-se a espiral psicopata (uma doença “mental”) do lugarejo. Nada
é verdadeiramente reconhecível ou enquadrável, os pontos de referência estão
corrompidos desde o princípio, as personagens são sombras maniqueístas,
entidades puramente malévolas, um horror de comboio fantasma conduzido à sua
feérica apoteose (a sequência final, com a feira e a roda). E tudo isto serve
de cenário à aproximação entre Harry e aquela que ele era suposto, desde o
princípio, perseguir e capturar: a personagem de Sondra Locke, prisioneira do
seu irracional desejo de vingança (é, de resto, por ela que o filme começa, e
ela é tão protagonista de Sudden Impact
como Harry). O que perturba mais no relacionamento dos dois não é a história da
atracção ou do amor que nasce entre eles; antes a entrega e o beneplácito de
Harry à fúria vingativa e desequilibrada de Locke, a única coisa com que ele
parece ser capaz de se relacionar num mundo definitivamente passado para além
de todos os cânones de reconhecimento e empatia. No fim desaparecem ambos na
noite: “exit Harry”, a partir de agora habitante de um mundo de sombras. Da
“fúria da razão” à “doença da razão”, eis a história de Dirty Harry Callahan.
LMO