O Estranho Caso de Angélica é um filme sobre o encantador sorriso
da morte. Ou sobre o encantador sorriso de uma morta, essa Angélica cujo
“estranho caso” este filme de Oliveira narra. Aquele plano – que nada, até aí,
prenunciara – em que a morta sorri ao fotógrafo Isaac através da objectiva da
sua câmara, é das coisas mais ousadas que Oliveira filmou, toda a sua a
vasta obra somada. Como o são outros planos, réplicas desse momento inicial em
que a morte (ou a morta) começa a sorrir a Isaac, em que das fotografias
penduradas no quarto do fotógrafo volta a saltar – em efeito especial tão
simples como surpreendente – o mesmo sorriso. Só Isaac o vê, e mais ninguém, e
sempre através dos aparatos fotográficos. O “estranho caso de Angélica” também
é, portanto, o “estranho caso de Isaac”, o estranho caso de um homem da câmara
de fotografar ou, aqui ainda vai dar ao mesmo, da câmara de filmar. O Estranho Caso de Angélica faz rimar a
“câmara mortuária” com a “câmara fotográfica”, e fala de como a segunda abre um
corredor que conduz à primeira. Deste mundo para outro, na mais “estranha”
ligação. “De que fala ele? – Do cinema” – é um diálogo do Nouvelle Vague de
Godard que apetece repetir a propósito de O
Estranho Caso de Angélica. De que fala Oliveira? Do cinema. Não só do
cinema, mas muito do cinema.
E de uma espécie de desejo de
cinema: O Estranho Caso de Angélica
é, de certa maneira, um filme vindo do passado, baseado num argumento que Oliveira
escreveu no princípio dos anos 50, numa altura em que por vicissitudes várias
estava impedido de filmar alguma coisa com as características e as exigências
de uma história destas. Podemos facilmente imaginá-lo a escrever este argumento
nesses anos, desejando, tal como Isaac (no filme, Ricardo Trepa, mais do que
nunca a interpretar uma espécie de “duplo” do seu avô) que o cinema viesse
irromper num mundo tristemente real, multiplicando-lhe os caminhos e as possibilidades,
substituindo-o por um outro mundo. Quando tudo é feio, barulhento (aquela
interrupção genial, quase buñueliana, dos camiões-cisterna que passam pela rua
debaixo da janela de Isaac: o máximo realismo a volver-se em efeito de
irrealidade) e ainda por cima está em crise (as conversas ao almoço, as pontes
e os engenheiros, o mendigo que não desarma), como não compreender a atracção
de Isaac (e a de Oliveira) por esse mundo de fadas e de sombras que está au-delá, num algures para cujo acesso o
cinema é o instrumento mágico? Mágico e arcaico como no tempo dos pioneiros: um
“efeito especial” rudimentar (ou seja: com o “efeito especial” tornado “efeito
poético”), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.
Depois, é um filme que evoca, ainda
através dessa personagem do fotógrafo, o que parecem ser “revisitações” de
alguns momentos da obra de Oliveira, do Douro
à Caça e ao Acto da Primavera, estes dois últimos filmes que nos anos 50
Oliveira ainda não tinha feito (mas com que talvez já sonhasse), contudo
extremamente “presentes” nas sequências em que Isaac fotografa, como documentarista se quisermos, os
trabalhadores no campo. A esse real Oliveira
contrapõe a mais desabrida e romântica ficção, nascida do sorriso de Angélica?
É possível. Mas também é possível pensar, e é a hipótese que escolhemos, que O Estranho Caso de Angélica é (mais um)
traço de união desses dois pólos, entre os quais o cinema de Oliveira nunca
deixou de cirandar.
Em todo o caso, esse mundo antigo
(o dos anos 50?) não está lá por acaso. Em muitos dos seus filmes, e por certo
em vários dos seus maiores filmes, Manoel de Oliveira inventou um tempo e uma
época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que
o senso comum daria por “desactualizados” ao confronto com aquilo a que o senso
comum chama a “actualidade”. A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o
elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como
afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e “contemporâneo”. Isto adensou-se nos últimos anos – Belle
Toujours, as Singularidades de uma
Rapariga Loura, O Gebo e a Sombra – e O Estranho Caso
de Angélica também é assim, dominado pelo “princípio da incerteza”
cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis
que o “nosso tempo” irrompe, quase como um arrepio. Aqui, o que parece dos anos 50 e o que parece do século XXI contamina-se
mutuamente, e dá um mundo irreconhecível, um mundo em perda. Inevitavelmente,
também é desta falta de reconhecimento que Isaac foge.
E o que é que ele faz lembrar que
tenha sido feito em tempos recentes? Apenas La Frontière de l’Aube, de outro “arcaico”, Philippe Garrel, para
quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do
meramente “possível”, quer dizer, do tristemente “real”.
LMO