Chamemos-lhe “arqueologia da crítica de cinema”. O filme do argentino Nicolás Zukerfeld começa com uma montagem, que ocupa grosso modo a primeira metade da sua duração, de cenas extraídas a filmes de Raoul Walsh. Cenas aglutinadas segundo dois motes: homens (e algumas mulheres também) a montarem cavalos, homens (e algumas mulheres também) a cruzarem portas e portões, para dentro ou para fora do espaço que as portas e os portões delimitam. É um espectáculo soberbo em si mesmo, a que se acrescenta a diferente qualidade das reproduções das cenas, fruto das (im)perfeições dos suportes a que foram extraidas (umas mais vhs, outras mais dvd, outras mais blu-ray), assim salientando o carácter artesanal, “home made”, do empreendimento. A meio, as imagens desaparecem e fica um ecran negro, apenas temporariamente ocupado por imagens dos documentos (fotos, artigos de revistas, citações tiradas de e-mails) mencionados pela voz off – que esta, sim, passa a ser a protagonista. Tudo re-começa com uma citação de Edgardo Cozarinsky (argentino como Zukerfeld) encontrada num artigo sobre Griffith originalmente publicado em 1965 (“Permanência de Griffith”, publicado em português no Catálogo Griffith da Cinemateca, facto aliás mencionado no filme de Zukerfeld embora com alguns equívocos de pormenor), onde se atribui a Raoul Walsh a afirmação de que não existem “36 maneras de mostrar como un hombre se sube a un caballo” ou como “un hombre” entra numa “habitación”. Como um Alan Ladd obcecado com um “rosebud”, Zukerfeld parte à procura da fonte exacta da frase de Walsh citada por Cozarinsky, através de conversas, contactos electrónicos e uma multitude de pistas documentais. De caminho, soluciona o mistério do número 36 (que só é mistério para quem não conheça o valor que ele tem enquanto expressão idiomática francófona ou, pelo menos, francesa), e se se aproxima cada vez mais dessa frase exacta não será “spoiler” nenhum dizer que nunca a encontra – a possibilidade de ela nunca ter sido proferida exactamente assim é, obviamente, conservada em aberto, e constitui-se como uma das razões de ser do filme. E é uma razão de ser do filme porque ele repousa num mergulho não apenas na tradição crítica (especificamente, a tradição crítica francesa), mas sobretudo no trabalho dos pioneiros de uma “história oral” do cinema clássico – e por isso uma entrevista de Louis Skorecki a Raoul Walsh, feita durante a célebre viagem dele e de Daney a Hollywood, ambos ainda adolescentes ou quase, para uma série de entrevistas com nomes da Hollywood antiga que até então poucos se tinham preocupado em ouvir, se revela, entre outros documentos, fundamental. Em filigrana, e como uma lógica de filme de mistério (mas sempre “em diferido”, sempre em “racconto”), esse é o verdadeiro tema do trabalho de Zukerfeld: a espantosa fragilidade, ou mesmo fugacidade (dada a quantidade de textos e documentos publicada em revistas, jornais, panfletos, etc, destinados a não durarem), das fontes e dos registos “primários” sobre tantos dos protagonistas mais essenciais do cinema clássico americano. Não será, como no filme de Ford, um caso em que a “legend” se sobrepõe ao “fact”; mas se o facto se tornou inacessível, ou acessível apenas através da lenda, e se a lenda nos propõe a justeza suficiente para enformar uma concepção do “ethos” dos cineastas clássicos, então a lenda tem mesmo o valor de um “rosebud”.
LMO