Já perto do final, e durante uma
das sequências mais divertidas de Va
Savoir, a do “duelo de vodkas” entre Ugo (Sergio Castellitto) e Pierre
(Jacques Bonnaffé), respectivamente o actual e o ex-namorado de Camille (Jeanne
Balibar), Pierre, professor de filosofia especialista em Heidegger, sai-se com
uma citação de um verso de Hölderlin: “lá ou est le péril grandit aussi ce qui
sauve” (citamos de memória). “Onde está o perigo, cresce também aquilo que
salva” – se isto não é a epígrafe perfeita para toda a obra de Jacques Rivette,
anda lá perto. Tão perto que é, pelo menos, a epígrafe perfeita para Va Savoir. A epígrafe e, já agora o
resumo da história. Va Savoir é uma
aventura conjugal, o relato de como Camille e Ugo se põem em perigo, se expõem
ao perigo, e aí encontram aquilo que no fim os salva como casal. Que outros se
salvem no mesmo passo (“le monde est sauvé”, diz Ugo), inclusivamente outros
casais (Pierre e Sónia também, ao que tudo indica), apenas prova a validade da
epígrafe.
Raramente Rivette foi, em
simultâneo, tão tortuoso e tão gracioso como em Va Savoir. O argumento, escrito como de costume com Pascal Bonitzer
e Christine Laurent, abunda em jogos de espelhos e reflexos, alçapões e câmaras
secretas, “twists” e surpresas de última hora. E tudo isto faz parte de uma
espécie de “progressão matemática”, que continuamente vai entrelaçando as
personagens umas nas outras, decompondo e recompondo pares (três), até que elas
estejam todas ligadas umas às outras, directa ou indirectamente. Por inspiração
de Pirandello – parte do “teatro no filme” vem de Come Tu Me Vuoi, peça do dramaturgo italiano – muita gente notou
que três pares dá seis personagens, que esse é um número bastante
“pirandelliano” e no qual, à evidência, Rivette e os seus argumentistas
quiseram que o espectador pensasse (para além de ajudar ao reforço da
“matemática” como elemento preponderante da construção narrativa).
Mas Va Savoir é como um labirinto, cheio de portas, corredores, janelas
e clarabóias – e não estamos agora a ser nada metafóricos – que conduzem aos
mais diversos lugares. Se Rivette se diverte, e não há razão nenhuma para
pensar que não, diverte-se também na quantidade de alusões e sugestões mais ou
menos obscuras; espelhos e reflexos não são apenas os que a narrativa constrói
dentro dela própria (por exemplo, entre os pedaços da peça de Pirandello e a
restante acção), mas também os que inserem a narrativa numa espécie de espiral
referencial potencialmente infinita.
Três pequenos exemplos: a peruca
loura que Balibar enverga quando em palco – como não pensar que o cinéfilo
enciclopédico que é Rivette alude à versão hollywoodiana da peça de Pirandello
(As You Desire Me, George
Fitzmaurice, 1932), que foi interpretada pela… loura Greta Garbo?; a presença
de Catherine Rouvel, em personagem introduzida em apelo aos sentidos (faz bolos
que cheiram bem, mas não suporta o pó da biblioteca), e que para mais é mãe de
Do (Hélène de Fougerolles), sendo esta personagem a representante de uma
sensualidade adolescente, propriamente ameaçadora (Ugo que o diga) – pois como
esquecer que Rouvel foi, trinta anos antes, a protagonista feminina do Déjeuner sur l’Herbe de Jean Renoir,
apologia do triunfo dos sentidos sobre a razão? (E já agora, que Renoir fez
alguns dos definitivos filmes sobre “a comédia e a vida”, como Le Carrosse D’Or?); e, terceiro
exemplo, a cena em que Balibar, enclausurada pelo seu desvairado ex-namorado,
foge através da clarabóia para os telhados de Paris – como não pensar na
primeira longa-metragem de Rivette, Paris
Nous Appartient, e tomar então Va
Savoir, mais do que como uma citação (auto-citação, neste caso), como uma
reiteração do prazer efabulatório de encontrar, desvendar ou inventar,
mistérios e conspirações em cada esquina de Paris, cidade que, no filme de 1960
como neste, Rivette filma em prolongamento do teatro e dos seus palcos?
Mas terminamos com a matemática,
ou a geometria, ou a numerologia. Va
Savoir avança de rima em rima, de equivalência em equivalência, através dos
percursos a solo (e, por isso, perigosos)
de Ugo e de Camille. Que Rivette reforça os paralelismos “geométricos” é
evidente, fazendo por exemplo, obra e graça da arte do enquadramento, com que
os décors da biblioteca onde Ugo procura o Goldoni perdido e o do gabinete onde
Camille se encontra Pierre pareçam quadrados idênticos (até a porta está no
mesmo sítio). Questões de espaço e questões de número, no entanto, são
anunciados logo ao princípio, na cena em que Ugo e Camille entram nos seus
quartos de hotel: duas portas, dois quartos, duas camas, uma passagem, um
casal. Pensamos numa velha graçola de Sacha Guitry: “onde há um casal e duas
camas, não tardará a haver uma terceira”. Com o verso de Holderlin, a frase de
Guitry é outra epígrafe possível para Va
Savoir, expressão da “ameaça numerológica” que paira sobre as personagens
da melhor comédia conjugal feita em França desde que Guitry deixou de filmar.
LMO