segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Va Savoir, Jacques Rivette, 2001




Já perto do final, e durante uma das sequências mais divertidas de Va Savoir, a do “duelo de vodkas” entre Ugo (Sergio Castellitto) e Pierre (Jacques Bonnaffé), respectivamente o actual e o ex-namorado de Camille (Jeanne Balibar), Pierre, professor de filosofia especialista em Heidegger, sai-se com uma citação de um verso de Hölderlin: “lá ou est le péril grandit aussi ce qui sauve” (citamos de memória). “Onde está o perigo, cresce também aquilo que salva” – se isto não é a epígrafe perfeita para toda a obra de Jacques Rivette, anda lá perto. Tão perto que é, pelo menos, a epígrafe perfeita para Va Savoir. A epígrafe e, já agora o resumo da história. Va Savoir é uma aventura conjugal, o relato de como Camille e Ugo se põem em perigo, se expõem ao perigo, e aí encontram aquilo que no fim os salva como casal. Que outros se salvem no mesmo passo (“le monde est sauvé”, diz Ugo), inclusivamente outros casais (Pierre e Sónia também, ao que tudo indica), apenas prova a validade da epígrafe.

Raramente Rivette foi, em simultâneo, tão tortuoso e tão gracioso como em Va Savoir. O argumento, escrito como de costume com Pascal Bonitzer e Christine Laurent, abunda em jogos de espelhos e reflexos, alçapões e câmaras secretas, “twists” e surpresas de última hora. E tudo isto faz parte de uma espécie de “progressão matemática”, que continuamente vai entrelaçando as personagens umas nas outras, decompondo e recompondo pares (três), até que elas estejam todas ligadas umas às outras, directa ou indirectamente. Por inspiração de Pirandello – parte do “teatro no filme” vem de Come Tu Me Vuoi, peça do dramaturgo italiano – muita gente notou que três pares dá seis personagens, que esse é um número bastante “pirandelliano” e no qual, à evidência, Rivette e os seus argumentistas quiseram que o espectador pensasse (para além de ajudar ao reforço da “matemática” como elemento preponderante da construção narrativa).

Mas Va Savoir é como um labirinto, cheio de portas, corredores, janelas e clarabóias – e não estamos agora a ser nada metafóricos – que conduzem aos mais diversos lugares. Se Rivette se diverte, e não há razão nenhuma para pensar que não, diverte-se também na quantidade de alusões e sugestões mais ou menos obscuras; espelhos e reflexos não são apenas os que a narrativa constrói dentro dela própria (por exemplo, entre os pedaços da peça de Pirandello e a restante acção), mas também os que inserem a narrativa numa espécie de espiral referencial potencialmente infinita.

Três pequenos exemplos: a peruca loura que Balibar enverga quando em palco – como não pensar que o cinéfilo enciclopédico que é Rivette alude à versão hollywoodiana da peça de Pirandello (As You Desire Me, George Fitzmaurice, 1932), que foi interpretada pela… loura Greta Garbo?; a presença de Catherine Rouvel, em personagem introduzida em apelo aos sentidos (faz bolos que cheiram bem, mas não suporta o pó da biblioteca), e que para mais é mãe de Do (Hélène de Fougerolles), sendo esta personagem a representante de uma sensualidade adolescente, propriamente ameaçadora (Ugo que o diga) – pois como esquecer que Rouvel foi, trinta anos antes, a protagonista feminina do Déjeuner sur l’Herbe de Jean Renoir, apologia do triunfo dos sentidos sobre a razão? (E já agora, que Renoir fez alguns dos definitivos filmes sobre “a comédia e a vida”, como Le Carrosse D’Or?); e, terceiro exemplo, a cena em que Balibar, enclausurada pelo seu desvairado ex-namorado, foge através da clarabóia para os telhados de Paris – como não pensar na primeira longa-metragem de Rivette, Paris Nous Appartient, e tomar então Va Savoir, mais do que como uma citação (auto-citação, neste caso), como uma reiteração do prazer efabulatório de encontrar, desvendar ou inventar, mistérios e conspirações em cada esquina de Paris, cidade que, no filme de 1960 como neste, Rivette filma em prolongamento do teatro e dos seus palcos?

Mas terminamos com a matemática, ou a geometria, ou a numerologia. Va Savoir avança de rima em rima, de equivalência em equivalência, através dos percursos a solo (e, por isso, perigosos) de Ugo e de Camille. Que Rivette reforça os paralelismos “geométricos” é evidente, fazendo por exemplo, obra e graça da arte do enquadramento, com que os décors da biblioteca onde Ugo procura o Goldoni perdido e o do gabinete onde Camille se encontra Pierre pareçam quadrados idênticos (até a porta está no mesmo sítio). Questões de espaço e questões de número, no entanto, são anunciados logo ao princípio, na cena em que Ugo e Camille entram nos seus quartos de hotel: duas portas, dois quartos, duas camas, uma passagem, um casal. Pensamos numa velha graçola de Sacha Guitry: “onde há um casal e duas camas, não tardará a haver uma terceira”. Com o verso de Holderlin, a frase de Guitry é outra epígrafe possível para Va Savoir, expressão da “ameaça numerológica” que paira sobre as personagens da melhor comédia conjugal feita em França desde que Guitry deixou de filmar.


LMO