quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Ritual dos Sádicos ou O Despertar da Besta, José Mojica Marins, 1969-80



Quando, no final dos anos 60, rodou Ritual dos Sádicos (e lá iremos à questão do título alternativo), Mojica Marins já era uma pequena celebridade, assim como o seu alter-ego Zé do Caixão (que aqui ficou, como diz Mojica, “no cemitério”, embora haja sinais dele por todo o lado, na banda desenhada, na rua, como se o rasto dele fosse inescapável). Mas com este filme atingiria o clímax da sua fama de “maldito”. Ritual dos Sádicos foi de mais para a censura, que não só o proibiu como quis destruir todos os materiais existentes, entre cópias e negativos. O filme escapou in extremis à aniquilação, mas ficou invisível durante anos – e só nos anos 80, já rebaptizado (por Mojica) como O Despertar da Besta, se assistiu à sua recuperação, para uma carreira em circuitos alternativos (festivais & etc) que nunca teve paragem na distribuição comercial “normal”.

É um filme que tem tanto a afastá-lo de outros Mojicas mais explícitos na inscrição num "género" (por exemplo, À Meia-Noite Levarei sua Alma) como a aproximá-lo. Aqui, Mojica ensaia um modelo de “falso documentário”, a pretexto de um pretenso inquérito sociológico (o consumo de drogas nas grandes metrópoles brasileiras e suas consequências, num quadro que aos olhos de Mojica é sempre ambiguamente paranóico e conspirativo). A sua própria figura, como dissemos, era já largamente reconhecível, e o filme joga com isso, na maneira como Mojica / Zé do Caixão aparecem e desaparecem constantemente, sem nunca realmente aparecerem ou desaparecerem. Diga-se, aliás, que umas das mais bizarras sequências com Mojica é totalmente factual, embora pareça oriunda da mais delirante ficção: falamos daquele trecho em que o filme inclui imagens de um programa de televisão onde Mojica está a ser “julgado” pelo que se anuncia como “o tribunal popular da verdade” (é absolvido, por seis votos contra um). Isto passou-se realmente, aquele programa (e aquele “julgamento”) existiram mesmo…

Duma maneira que não é totalmente diversa do que, na América, um “independente” como Russ Meyer praticava, Ritual / Despertar é um filme onde o “exploitation” e a crítica do “exploitation” coexistem numa ambiguidade sem fim. Caricatura da sociedade de consumo, da comercialização das relações entre pessoas (entre homens e mulheres, sobretudo), de um ambiente politica e moralmente opressivo, das próprias lógicas do espectáculo (nomeadamente no que toca à representação das mulheres e das figuras femininas), essa caricatura confunde-se, de facto, com a exploração dos seus limites – que é, de resto, o que provoca maior desconcerto. Tanto mais que, se entendermos este filme como uma “crítica da modernidade” (a liberalização dos costumes, as influências culturais estrangeiras, o consumo de estupefacientes) a ambiguidade do olhar de Mojica é, de facto, infinita. Pelo Brasil “antigo”, rural e fechado, não tinha, em filmes precedentes, deixado de mostrar uma enorme severidade. Sobre este Brasil “moderno”, urbano e libertário, o seu olhar anda algures entre o fascínio e o temor. Há sempre uma impressão de medo a pairar pelo filme (talvez reflexo do clima político), mas é um medo que amiúde, e apesar de todas as suas liberdades (todas as cenas de sexo, todas as mulheres despidas), é um medo de puritano. E é por este medo que se justifica o “mau gosto”, a fealdade de tantas e tantas sequências, a espécie de sublimação permanente (a cena do homem a esfregar a roupa enquanto olha para as raparigas, algo que mutatis mutandis podia estar num Buñuel mexicano) e, muito importante, uma absoluta e omnipresente frustração (logo ao princípio, o olhar impotente dos homens perante o strip-tease da loura), como se todos fossem vítimas de qualquer coisa.

Mesmo se não parece – no seu caos multi-direccionado, na sua estrutura fragmentada herdeira dos “quadrinhos”, área em que trabalhava o co-argumentista Ricchetti – um filme tão conseguido como outros Mojicas, é inegável que a liberdade e a criatividade do realizador são indescritíveis, e que em cada plano, em cada “raccord”, há uma ideia qualquer, um efeito qualquer a perseguir, seja no som seja na imagem, seja ainda na montagem. Ritual dos Sádicos / Despertar da Besta fervilha de coisas para ver (e ouvir), e como outros filmes do cineasta teria um lugar numa hipotética história de um “cinema do feio”. Poucos se acercaram da fealdade (da fealdade em todos os sentidos, o estético como o ético) com a potência com que Mojica o fez.

LMO