Quando, no final dos anos 60,
rodou Ritual dos Sádicos (e lá
iremos à questão do título alternativo), Mojica Marins já era uma pequena
celebridade, assim como o seu alter-ego Zé do Caixão (que aqui ficou, como diz
Mojica, “no cemitério”, embora haja sinais dele por todo o lado, na banda
desenhada, na rua, como se o rasto dele fosse inescapável). Mas com este filme
atingiria o clímax da sua fama de “maldito”. Ritual dos Sádicos foi de mais para a censura, que não só o proibiu
como quis destruir todos os materiais existentes, entre cópias e negativos. O
filme escapou in extremis à aniquilação, mas ficou invisível durante anos – e
só nos anos 80, já rebaptizado (por Mojica) como O Despertar da Besta, se assistiu à sua recuperação, para uma
carreira em circuitos alternativos (festivais & etc) que nunca teve paragem
na distribuição comercial “normal”.
É um filme que tem tanto a
afastá-lo de outros Mojicas mais explícitos na inscrição num "género" (por exemplo, À Meia-Noite Levarei sua Alma) como a aproximá-lo. Aqui, Mojica
ensaia um modelo de “falso documentário”, a pretexto de um pretenso inquérito
sociológico (o consumo de drogas nas grandes metrópoles brasileiras e suas
consequências, num quadro que aos olhos de Mojica é sempre ambiguamente
paranóico e conspirativo). A sua própria figura, como dissemos, era já largamente
reconhecível, e o filme joga com isso, na maneira como Mojica / Zé do Caixão
aparecem e desaparecem constantemente, sem nunca realmente aparecerem ou
desaparecerem. Diga-se, aliás, que umas das mais bizarras sequências com Mojica
é totalmente factual, embora pareça oriunda da mais delirante ficção: falamos
daquele trecho em que o filme inclui imagens de um programa de televisão onde
Mojica está a ser “julgado” pelo que se anuncia como “o tribunal popular da
verdade” (é absolvido, por seis votos contra um). Isto passou-se realmente,
aquele programa (e aquele “julgamento”) existiram mesmo…
Duma maneira que não é totalmente
diversa do que, na América, um “independente” como Russ Meyer praticava, Ritual / Despertar é um filme onde o
“exploitation” e a crítica do “exploitation” coexistem numa ambiguidade sem
fim. Caricatura da sociedade de consumo, da comercialização das relações entre
pessoas (entre homens e mulheres, sobretudo), de um ambiente politica e
moralmente opressivo, das próprias lógicas do espectáculo (nomeadamente no que
toca à representação das mulheres e das figuras femininas), essa caricatura
confunde-se, de facto, com a exploração dos seus limites – que é, de resto, o
que provoca maior desconcerto. Tanto mais que, se entendermos este filme como
uma “crítica da modernidade” (a liberalização dos costumes, as influências
culturais estrangeiras, o consumo de estupefacientes) a ambiguidade do olhar de
Mojica é, de facto, infinita. Pelo Brasil “antigo”, rural e fechado, não tinha,
em filmes precedentes, deixado de mostrar uma enorme severidade. Sobre este
Brasil “moderno”, urbano e libertário, o seu olhar anda algures entre o
fascínio e o temor. Há sempre uma impressão de medo a pairar pelo filme (talvez
reflexo do clima político), mas é um medo que amiúde, e apesar de todas as suas
liberdades (todas as cenas de sexo, todas as mulheres despidas), é um medo de
puritano. E é por este medo que se justifica o “mau gosto”, a fealdade de
tantas e tantas sequências, a espécie de sublimação permanente (a cena do homem
a esfregar a roupa enquanto olha para as raparigas, algo que mutatis mutandis
podia estar num Buñuel mexicano) e, muito importante, uma absoluta e
omnipresente frustração (logo ao princípio, o olhar impotente dos homens
perante o strip-tease da loura), como se todos fossem vítimas de qualquer
coisa.
Mesmo se não parece – no seu caos
multi-direccionado, na sua estrutura fragmentada herdeira dos “quadrinhos”,
área em que trabalhava o co-argumentista Ricchetti – um filme tão conseguido
como outros Mojicas, é inegável que a liberdade e a criatividade do realizador
são indescritíveis, e que em cada plano, em cada “raccord”, há uma ideia
qualquer, um efeito qualquer a perseguir, seja no som seja na imagem, seja
ainda na montagem. Ritual dos Sádicos /
Despertar da Besta fervilha de coisas para ver (e ouvir), e como outros
filmes do cineasta teria um lugar numa hipotética história de um “cinema do
feio”. Poucos se acercaram da fealdade (da fealdade em todos os sentidos, o
estético como o ético) com a potência com que Mojica o fez.
LMO