Policiais como Cop também são coisa que já não se vê
todos os dias. Aliás, já não se vêem, nos cinemas, muitos policiais: o género
mudou-se de armas e bagagens para a televisão, acompanhando a mudança do
próprio paradigma do género policial, que é hoje (vide CSI e derivados) científico, tecnológico, forense. Feito em 1988, Cop é outro caso de um filme dos
“desconhecidos” (ou pelo menos esquecidos) anos 80 que lembra mais o que estava
para trás do que o que ainda estava por vir. Precede mesmo o policial como
“exercício de estilo”, que futuramente se pareceu tornar uma das poucas
abordagens ainda possíveis ao género (pensamos em LA Confidential de Curtis Hanson, ou na Black Dahlia de De Palma, por ambos serem, como Cop, extraídos a romances de James
Ellroy, e também porque James B. Harris, realizador de Cop, foi o produtor executivo do filme de De Palma).
De resto, James B. Harris
(nascido em 1928) foi, na sua carreira, mais vezes produtor do que realizador.
E como produtor, é particularmente notável a sua associação com Stanley
Kubrick, com quem trabalhou em três filmes rodados em sequência (ou quase,
porque pelo meio houve o especialíssimo caso de Spartacus), que foram The
Killing, Paths of Glory e Lolita, entre o final dos anos 50 e o
princípio dos anos 60, acompanhando, portanto, a chegada de Kubrick à “linha da
frente” do cinema americano. Como realizador, Harris não assinou, entre os anos
60 e os anos 90, mais do que cinco filmes (Cop
foi o penúltimo), o que dá praticamente um filme por década (a excepção foram
justamente os anos 80, em que Harris dirigiu dois filmes).
E não é que Cop tenha muito a ver com The
Killing (porventura, em termos de produção, o último “pequeno filme” de
Kubrick) mas a memória desse tipo de factura artesanal, muito pragmática, muito
seca (e razoavelmente bruta) está por inteiro no filme de Harris. É engraçado
que o eco das críticas de época a Cop
(que não teve um acolhimento propriamente espectacular) insista sobretudo na
pouca consistência do “plot”, nos seus buracos e non sequitur, na dificuldade em perceber, em certos momentos, como
se passou de A a B. Também o The Big
Sleep de Hawks é assim, ou o Kiss Me
Deadly de Aldrich, pode-se contrapor, e decerto que com toda a razão. Sem
ser um Big Sleep, nem mesmo um Kiss Me Deadly, o filme de Harris
desloca, como eles, o centro do seu interesse: não é a recomposição ordenada e
certinha de uma narrativa, mas um trajecto, um movimento, uma aura – um
ambiente, psicológico mas não só, onde todas as linhas (as do bem e as do mal,
as da lei e as do que está fora da lei) foram deturpadas e misturadas, e cuja
expressão se encontra concentrada no próprio protagonista, James Woods,
anti-herói de um tipo como desde Spillane ou Chandler houve cada vez menos.
Como tantas vezes nas personagens de Woods, o seu polícia transporta uma
espécie de loucura, uma visão do mundo alterada e condicionada pelo contacto
constante com a sordidez e o crime. Em bom português, não é exemplo para
ninguém, ou é exemplo politicamente incorrecto, em todos os sentidos da
expressão. Veja-se a (única) sequência que o mostra em contexto familiar, a
contar à filha pequena uma história antes de dormir, que é a história de algum
homicídio horroroso que ele resolveu. Percebe-se pela reacção da miúda que é
habitual ele adormecê-la com histórias do género, e quando a mulher o questiona
(“you’re a sick man”) ele defende-se dizendo que a filha deve estar “preparada”
porque “a inocência mata” (frase que fica a pairar sobre o filme, e de algum
modo “comenta” a razão de ser da sequência de crimes que Woods investiga). Este
é um polícia que, obviamente, já não acredita em “bullshit” nenhum, sejam
lirismos seja a lengalenga institucional da corporação para que trabalha. É um
“maverick” dentro (e fora) do sistema, que obedece às suas obsessões e
compulsões com mais afinco do que às conveniências e “procedures” que a
instituição policial lhe impõe (ou tenta impor).
O “programa” do filme é
transportar esta personagem ao longo dos passos da investigação e identificação
dos crimes de um serial killer. E o “transporte” conta mais, até nos apartes
(“please don’t call me a policeperson”…) do que a essência da investigação, que
pode ficar tão implausível como provavelmente já era na matriz de Ellroy.
Aliás, se a personagem gosta pouco de “bullshit” James B. Harris também –
talvez alguns “saltos” e algumas elipses se justifiquem por aí, como se Cop procurasse uma narração sempre para
à frente, sem interlúdios de qualquer tipo (e o que por vezes parece um
interlúdio, como as cenas de “intimidade” com as mulheres, primeiro a
prostituta depois a “livreira feminista”, vem-se a verificar que não é). Uma
secura total, em acompanhamento perfeito da heterodoxia da personagem. Até ao
fim: a última frase da última cena, “i don’t give a fuck”, assinala o prodígio
de “incorrecção” que é o fecho deste filme – a todos os níveis, inclusivamente
político. Segue-se uma breve pausa com o ecran a negro, para o espectador ter
tempo de perceber como foi “apanhado” antes de sobre esse negro começar a
correr o genérico final. Podia ser – sem favor – qualquer coisa encontrada num
filme de Clint Eastwood, num Dirty Harry
qualquer (nesse ponto, se não antes, o parentesco, remoto ou próximo, torna-se
gritante). Eventualmente, até mais bruto do que alguma vez Clint ousou.
LMO