Este “Sindroma
Asténico” é o mais
famoso filme de Kira Muratova. Russa de origem moldava, ucraniana por adopção, Muratova nasceu em 1934
e começou a filmar em 1962. Continua a trabalhar e tem uma obra extensa, que
encontrou um ritmo regular a partir da segunda metade dos anos 80. “Sindroma Asténico”, vencedor de um Urso de Prata em Berlim 1990, é
como dissemos, o seu filme mais conhecido internacionalmente, e um ponto
central na filmografia de Muratova.
Sai-se do visionamento um pouco atordoado. O espectador que no fim se
pergunte “que raio foi isto que estive a ver” não tem que se sentir diminuído
nem menos inteligente: antes dele muitos mais se perguntaram o mesmo. Por
exemplo, e socorremo-nos de recensões da época, gente tão respeitável como
Jonathan Rosenbaum e Thierry Jousse. É impossível não se ser tomado de assalto
pelo lado desarmante de “Sindroma Asténico”,
filme sem respostas aparentes para perguntas ainda menos claras. Ao mesmo
tempo, não se pressente que haja alguma coisa a “descodificar”. Estamos
habituados a encontrar no cinema soviético a “metáfora” como figura (possível)
de expressão, mas em “Síndroma Asténico”,
filme do período final da URSS (1989), se elas (as metáforas) existem é sempre
o “primeiro grau” que mais impressiona, a profunda e torrencial “imanência” das
imagens e das personagens de Muratova.
É preciso dizer que a época em que o filme foi feito (e visto na
Europa) foi com certeza importante no modo como foi recebido. 17 anos depois,
temos talvez que fazer, enquanto espectadores, um esforço de contextualização
maior, e mediar a sua “urgência” através dessa baliza temporal. Muratova
filmava no fim de um regime ou de um país (ou de como lhe queiram chamar) e
essa sensação terminal habita o filme de uma maneira que se diria irracional. “Síndroma Asténico” é um passeio por ruínas e por mutações (de quê em
quê – isso é mais difícil responder), como um longo fluxo cheio de
descontinuidades e interrupções, rumo ao desconhecido. E, de facto, o plano
final (o comboio que entra no túnel, cuja escuridão envolve a imagem até que
esta se transforme num “plano negro”, para todos os efeitos a derradeira imagem
do filme) não sugere outra coisa – não é bem um “fim” em termos narrativos, e
nem temos a certeza de que não seja, em vez disso, um “princípio”.
Pessoalmente, faz-nos lembrar o início da viagem do astronauta no 2001 de Kubrick, com o delírio psicadélico e cromático
substituído por um plano negro.
Mas esse plano é só no fim. Tentemos explicar mais alguma coisa do que
se passa antes dele. Explicar, por exemplo, que a relação umbilical do filme
com a época e o lugar em que foi feito pode ser medida na frase do crítico
russo Andrei Dementyev (citado por Rosenbaum), que afirmou ser “Sindroma Asténico” a “única obra-prima do cinema da glasnost”. E já agora, mantendo esta objectividade,
explicar também que o filme de Muratova foi o último a ser proibido pelas
autoridades soviéticas (e, de resto, o único proibido durante a perestroika). Segundo Rosenbaum, a
justificação, vinda da boca do Ministro do Cinema, foi esta: “Não posso
autorizar a estreia de ‘Sindroma Asténico’
porque me oponho ao filme”. Mas o filme acabou por ser visto pouco tempo
depois, quando o governo autorizou uma pequena sala moscovita a exibi-lo.
Podemos igualmente pegar nas chaves fornecidas, em entrevistas, pela
própria Muratova. “Sindroma Asténico”,
na sua alternância entre uma hiperactividade violenta e quase histérica
(sobretudo a primeira parte, a sépia, espécie de “filme no filme”) e a história
do homem catatónico e sonolento (a segunda parte), foca-se, segundo Muratova,
em duas respostas diferentes para uma mesma questão: a fuga à realidade. Disse
Muratova: “São dois extremos, duas
neuroses: a neurose duma actividade que vai até à agressividade, e o outro
extremo duma passividade que chega ao adormecimento. Mas a causa é sempre um
desgosto ou uma dificuldade. É uma ilustração de duas reacções, de dois
extremos”. Na mesma entrevista – aos Cahiers
de Abril de 1991 – Muratova citava um excerto de um poema de Lermontov: “Queria esquecer tudo e adormecer, não como
num túmulo frio mas doutra maneira… para que a minha alma possa viver”.
Esta passagem de Lermontov podia servir de epígrafe para a personagem de
Nikolai, o homem que no fim adormece no comboio e entra pelo escuro adentro.
Ficamos a saber mais com estas chaves? Talvez não muito: a densidade da
textura de “Sindroma
Asténico” resiste a
explicações de carácter temático e alusivo. O seu enigma é interior – saber do
que é que o filme fala não chega para se saber o que é que ele está a dizer. É
preciso vê-lo, percorrer os seus corredores, atravessar os seus momentos de
fúria e os seus acessos de ternura. Experimentar a sua “explosão” estilística,
numa diversidade de procedimentos que lhe cria uma natureza cinematográfica
heteróclita, mas capaz de extrair a sua coerência dela própria. Ver e
reconhecer a sua devastada paisagem humana, marcada pela doença e pela
corrupção, e associada por raccords directos ou indirectos a uma existência
animal (em cativeiro, como nos fortíssimos planos, já perto do fim, em que vemos
os cães enjaulados num canil). E apreciar, como se Muratova quisesse incluir no
filme também a sua própria irrisão, os deslizes no tom e na “ordem de
realidade”, como se “Sindroma Asténico”
tendesse (e nalguns momentos tende) para uma atmosfera onírica, absurdista,
surrealizante – e musical, como na cena em que ouvimos Strangers in the Night executado em tuba à nossa frente.
LMO