segunda-feira, 2 de abril de 2018

Nascimento do homem novo


Dizer que “2001 – Odisseia no Espaço” se tornou em algo parecido com o monólito negro que é um dos seus protagonistas não é original mas também nunca fica muito mal. Desde que Kubrick o lançou para o espaço, em 1968, “2001” vagueia, vai e volta, aparece e desaparece, e de cada vez que nos cruzamos com ele ficamos como as personagens do filme, astronautas ou homens-macacos, em estupefacta contemplação. Há poucos filmes assim, que pareçam tanto uma espécie de parêntesis, que inventem tudo como se não houvesse mais nada, nem antes nem depois, nem precursores nem seguidores. Podia-se dizer que toda a obra de Kubrick, autista genial em permanente conversa com os seus botões, é assim mesmo, todo um parêntesis, razão por que o seu lugar na história do cinema (e não apenas em termos “hierárquicos”) continua a ser uma das discussões mais abertas entre críticos e cinéfilos. Não há cineasta mais difícil de “pôr em relação” do que Kubrick. Nesse sentido, ele foi como que uma versão comercialmente bem sucedida de Orson Welles, outro megalómano que a cada filme refez (ou tentou refazer) todo o cinema à sua imagem e à sua medida. Há uma célebre entrevista de Orson Welles aos “Cahiers du Cinéma”, nos anos 50, em que ele desanca sucessivamente todos os cineastas sobre quem lhe pedem um comentário, de Nicholas Ray a Vincente Minnelli. Excepto o então muito jovem Kubrick, que ainda só tinha dois filmes no currículo. “It takes one to know one”, dirão, e com razão.

A megalomania, ou mais simpaticamente o gesto larguíssimo de Kubrick, fazem dele aparentemente um cineasta fácil de copiar. Mas só na superfície. “2001”, por exemplo. Muito se falou dele a propósito do “Gravidade” de Cuarón, exemplo claro de uma “imitação de Kubrick” pela epiderme, tão óbvia que é impossível não reparar. Mas o gesto de Kubrick, a golfada impossível que anima “2001” (engolir, através dum raccord, milhares de anos na história da humanidade para contar o seu passado e o seu futuro), a superação das tradições narrativas e figurativas em função de qualquer coisa que é ao mesmo tempo muito abstracta e muito concreta (o uso que Kubrick fez da música é um sinal claro da vontade de chegar a esse balanço), isto nunca mais ninguém ousou. Bocadinhos, só: Bigelow a filmar a guerra como a “solidão do astronauta” (em “Estado de Guerra”), Malick a entender um filme como uma cosmogonia (em “A Árvore da Vida”). Não há muito mais.

Porque hoje nos dá para aí, apetece-nos aproximar Kubrick de outro “parêntesis” aparentemente nos seus antípodas, a obra do cavalheiro francês de nome Jacques Tati. “2001”, que aborda entre outros “temas” identificáveis a questão antropológica da passagem do homem à “idade da máquina”, é praticamente contemporâneo (1968) de “Playtime” (1967), que verificava os efeitos dessa passagem num quotidiano artificioso mas quase documental, onde Hulot era um “astronauta” e o HAL 9000 podia ter imensas formas. Três anos depois, em “Trafic”, Tati pontuou o filme com imagens, vistas através da televisão, da chegada do homem à lua, sucedida um ano depois da estreia de “2001”. Está tudo ligado, evidentemente: a modernidade tecnológica ia trazer um homem novo – provavelmente, o bebé com que o filme de Kubrick termina. Ninguém o adivinhou, ninguém o registou, como Kubrick e Tati.

LMO