Dizer que “2001 – Odisseia no
Espaço” se tornou em algo parecido com o monólito negro que é um dos seus
protagonistas não é original mas também nunca fica muito mal. Desde que Kubrick
o lançou para o espaço, em 1968, “2001” vagueia, vai e volta, aparece e
desaparece, e de cada vez que nos cruzamos com ele ficamos como as personagens
do filme, astronautas ou homens-macacos, em estupefacta contemplação. Há poucos
filmes assim, que pareçam tanto uma espécie de parêntesis, que inventem tudo
como se não houvesse mais nada, nem antes nem depois, nem precursores nem
seguidores. Podia-se dizer que toda a obra de Kubrick, autista genial em
permanente conversa com os seus botões, é assim mesmo, todo um parêntesis,
razão por que o seu lugar na história do cinema (e não apenas em termos
“hierárquicos”) continua a ser uma das discussões mais abertas entre críticos e
cinéfilos. Não há cineasta mais difícil de “pôr em relação” do que Kubrick.
Nesse sentido, ele foi como que uma versão comercialmente bem sucedida de Orson
Welles, outro megalómano que a cada filme refez (ou tentou refazer) todo o
cinema à sua imagem e à sua medida. Há uma célebre entrevista de Orson Welles
aos “Cahiers du Cinéma”, nos anos 50, em que ele desanca sucessivamente todos
os cineastas sobre quem lhe pedem um comentário, de Nicholas Ray a Vincente
Minnelli. Excepto o então muito jovem Kubrick, que ainda só tinha dois filmes
no currículo. “It takes one to
know one”, dirão, e com razão.
A megalomania, ou mais
simpaticamente o gesto larguíssimo de Kubrick, fazem dele aparentemente um
cineasta fácil de copiar. Mas só na superfície. “2001”, por exemplo. Muito se
falou dele a propósito do “Gravidade” de Cuarón, exemplo claro de uma “imitação
de Kubrick” pela epiderme, tão óbvia que é impossível não reparar. Mas o gesto
de Kubrick, a golfada impossível que anima “2001” (engolir, através dum
raccord, milhares de anos na história da humanidade para contar o seu passado e
o seu futuro), a superação das tradições narrativas e figurativas em função de
qualquer coisa que é ao mesmo tempo muito abstracta e muito concreta (o uso que
Kubrick fez da música é um sinal claro da vontade de chegar a esse balanço),
isto nunca mais ninguém ousou. Bocadinhos, só: Bigelow a filmar a guerra como a
“solidão do astronauta” (em “Estado de Guerra”), Malick a entender um filme
como uma cosmogonia (em “A Árvore da Vida”). Não há muito mais.
Porque hoje nos dá para aí,
apetece-nos aproximar Kubrick de outro “parêntesis” aparentemente nos seus
antípodas, a obra do cavalheiro francês de nome Jacques Tati. “2001”, que
aborda entre outros “temas” identificáveis a questão antropológica da passagem
do homem à “idade da máquina”, é praticamente contemporâneo (1968) de “Playtime”
(1967), que verificava os efeitos dessa passagem num quotidiano artificioso mas
quase documental, onde Hulot era um “astronauta” e o HAL 9000 podia ter imensas
formas. Três anos depois, em “Trafic”, Tati pontuou o filme com imagens, vistas
através da televisão, da chegada do homem à lua, sucedida um ano depois da
estreia de “2001”. Está tudo ligado, evidentemente: a modernidade tecnológica
ia trazer um homem novo – provavelmente, o bebé com que o filme de Kubrick
termina. Ninguém o adivinhou, ninguém o registou, como Kubrick e Tati.
LMO