You got too close
Logo
a seguir a Halloween, e antes de The Fog (1980), John Carpenter rodou
dois filmes para televisão. Someone’s
Watching Me!, ainda em 1978 (foi exibido cerca de um mês depois da estreia
em sala de Halloween) e Elvis, em 1979. Por vezes nota-se a tendência
de “desconsiderar” um pouco estas obras televisivas de Carpenter (que, de
resto, não seriam as últimas), e de as ver como “apontamentos” marginais à sua
obra cinematográfica. O que é, ou pode ser, bastante injusto – como será
evidente a propósito de Someone’s
Watching Me!, que para além de ser um excelente filme mantém relações
estreitas (estreitíssimas) com a filmografia “canónica” de Carpenter, a que já
existia em 1978 e a que estava ainda por vir.
Claro
que a primeira e neste contexto mais superficial observação permitida por Someone’s Watching Me! é dizer que a
televisão mudou muito nestes últimos trinta anos. É fácil esquecer que estamos
a ver “televisão”, a tal ponto a “mise en scène” de Carpenter se impõe a todos
os constrangimentos, mais ou menos estereotipados, que a tradição diz que um
“telefilme” impõe. Há aqui tanto cinema (e tanto Carpenter) como tanto cinema
(e tanto Hitchcock) havia nos episódios de Hitchcock
Presents.
E
não nos lembramos de Hitchcock ao acaso, bem pelo contrário. Halloween, disse-o Carpenter, fora um
filme gerado sob o signo e a inspiração de Psycho.
Someone’s Watching Me! aprofunda, a
um ponto porventura decisivo (no
sentido em que Carpenter raramente terá, no futuro, sentido a necessidade de a
ele voltar), uma relação com Hitchcock e com o seu cinema. Se Halloween era Psycho, Someone’s Watching
Me! é Rear Window (as janelas, o
voyeurismo, a devassa da intimdade) e Vertigo
(a vertigem, o abismo e a atracção por ele). A própria heroína, Lauren Hutton,
tem uma “allure” evidentemente hitchcockiana, não longe de uma Tippi Hedren por
exemplo, sendo também, é certo, um “prolongamento” da Jamie Lee Curtis de Halloween: Leigh Michaels chama-se a
personagem de Hutton, nome que ecoa tanto a actriz de Halloween (Lee=Leigh) como o seu “monstro” (Michael Myers). E como
Jamie Lee Curtis nesse filme, Lauren Hutton é aqui o retrato de uma mulher
ameaçada que tem que lidar por conta própria com essa ameaça (masculina),
depois de todos os homens terem, de uma maneira ou doutra, revelado a sua
falência (e não será apenas por uma questão de “sex politics” reaccionária que
a outra mulher do filme, Adrienne Barbeau, se apresenta desde o princípio como
lésbica).
O
princípio “funcional” de Someone’s
Watching Me! é uma espécie de inversão do de Rear Window. Estamos agora do outro lado da janela, do outro lado
da mira telescópica. Os planos subjectivos do início, quando vemos a fachada do
prédio e o interior do apartamento de Hutton pelo óculo do “voyeur”, são
perfeitamente claros: James Stewart é aqui o “vilão”, sendo a protagonista
talvez a “rapariga do torso” que se via em Rear
Window e que, em vários desses planos, Lauren Hutton tanto faz lembrar. Não
estamos só do outro lado da janela, estamos também no ponto de mira da
“câmara-falo” como era a de Stewart, e portanto numa dimensão absolutamente
feminina – a sensação de “violação” é permanente (e explicitamente citada), e
exposta de maneira genial naqueles planos do apartamento de Hutton com as
amplas janelas envidraçadas, sinal de uma fragilidade e vulnerabilidade ao
olhar alheio. Não estamos a ver, estamos a ser vistos, a fachada do prédio em
frente não é um domínio da curiosidade, é um domínio da ameaça.
Este
problema da “visão” surge no filme ainda de outra maneira. Lá para o final,
quando todos os homens (o namorado e os polícias) julgam, depois de
identificado o primeiro suspeito, que a história está encerrada, e que Hutton
está apenas psicologicamente debilitada (que está, por assim dizer, com
“visões”), ela insiste que alguma coisa não está bem. Mas como convencer os
outros de que a sua “visão” é a certa? Qual é a fronteira da paranóia? Duas
coisas absolutamente carpenterianas, sublinhadas na fabulosa cena da inscrição
feita nos vidros embaciados do chuveiro: “no one believes you”. Entre tantos
outros, é já They Live que se
anuncia: vê-se aquilo em que se acredita, ou acredita-se naquilo que se vê?
Em
rima com a história “sentimental” da protagonista – mulher que se muda para Los
Angeles por causa de um desgosto amoroso, que rechaça o homem que faz os
avanços mais directos (o colega de trabalho), e que só fica com aquele que
escolhe (aquele para quem “avança”, literalmente, pelo movimento de câmara na
cena do bar) – Someone’s Watching Me!,
com alguma perversidade (talvez se pudesse dizer hitchcockiana), é uma historia
sobre uma mulher na sua intimidade doméstica. É perverso, porque aquilo que
interessa ao “voyeur” é aquilo que a câmara de Carpenter mais mostra: Lauren
Hutton no apartamento, a sair do banho e a entrar no banho, a vestir-se e a
despir-se, a trabalhar e a ouvir música, a jantar ou a conversar. Um quotidiano
em lenta transformação, da mera irritação pelas primeiras chamadas telefónicas
inconvenientes ao puro terror do último terço do filme (também podemos ver Someone’s Watching Me! como um filme
sobre a “disruption” da vida privada). O azar do “voyeur” é que esta mulher
tem, como o namorado insinua, “problemas” com a intimidade. Não tolera que se
cheguem muito próximo. Quando o “voyeur”, depois daquele plano muito Vertigo, se precipita pela janela
abaixo, talvez ainda tenha ouvido a explicação do erro que cometeu: “you got
too close”.
LMO