Henri Langlois dizia que
o génio de Godard estava na "mistura", no "mixage",
e isto, que não sendo o mesmo que dizer "montagem" mas
forçosamente englobando uma ideia lata de montagem, é uma muito boa
maneira de definir aquilo que Godard nunca deixou de fazer: pegar em
muitos elementos diferentes, baralhá-los, colá-los, misturá-los, e
chegar a alguma coisa - como naqueles planos em que a imagem vem dum
sítio, o som doutro, o texto ainda doutro - que ultrapassa a soma
dos elementos misturados e existe muito para além do carácter
remissivo e referencial. Encontramos virtudes semelhantes em Léos
Carax, também ele um pequeno génio do "mixage", um dos
mais tardios mas também mais legítimos "filhos" da
"nouvelle vague", e a mais bem sucedida aproximação a um
"clone" de Godard que já existiu. Por certo - e como muito
bem se vê nestes seus dois primeiros filmes agora repostos - um dos
últimos momentos em que foi possível jogar com a herança da
"nouvelle vague" e isso ser uma coisa estava na massa, na
matéria, no ("mauvais") sangue, antes de tudo se tornar
nostalgia de "bibelot" como sucede, por exemplo, em
Christophe Honoré. Podia-se até defender que "Paixões
Cruzadas" e "Má Raça", filmes de 1984 e 1986
respectivamente, não são "nouvelle vague" tardia, antes o
fecho tardio da "nouvelle vague", os últimos filmes
"nouvelle vague" antes da pedra tumular que, no fim da
década, o próprio Godard lhe erigiu com o filme a que adequadamente
chamou "Nouvelle Vague". De resto, façamos contas: em 1984
estávamos mais perto do "À Bout de Souffle" (24 anos) do
que hoje estamos destes primeiros filmes de Carax...
24 anos era também a
idade de Carax quando realizou "Paixões Cruzadas" (ou no
muito melhor título original, "Boy Meets Girl"). Ainda
hoje, quando se reencontra aquela entrada com uma voz "off"
monstruosa a recitar Céline (o mesmo Céline, o da "Morte a
Crédito", que por coincidência também abre em "off"
as "Recordações da Casa Amarela" de César Monteiro...),
e depois a primeira canção que se ouve é uma "cover" de
Gainsbourg, um "mixage" que imediatamente lança o filme
sob os signos da "maldição" e da "decadência",
ainda hoje, dizíamos, continua a ser uma das mais poderosas
primeiras obras das últimas décadas. É curioso que à época se
tenha criticado a "falta de personalidade" de Carax,
insistindo no carácter "imitador" do filme e em tudo o que
ele ia buscar aos mais velhos. É curioso porque, revisto hoje, no
conhecimento da obra futura de Carax, o que impressiona é a
quantidade de ecos, de manias, de idiossincrasias e recorrências que
já aqui se manifestavam e voltaram a manifestar-se depois. Até no
recente "Holy Motors", feito quase trinta anos depois
deste, e que se calhar é, de todos os filmes que Carax fez
entretanto, aquele que mais relaciona com "Paixões Cruzadas".
A mesma estrutura esguia, feita de encontros e episódios não
explicados, uma atmosfera que parece futurista sem nenhum sinal
evidente de futurismo (e que será mais evidente em "Má Raça",
filho incestuoso dum encontro entre o "Alphaville" de
Godard e o "Fahrenheit 451" de Truffaut), uma noite
parisiense singularmente abrasiva e granulada, filmada a preto e
branco numa espécie de romantismo desolado a que apetece chamar -
depois do momento com uma canção dos Dead Kennedys - "post-punk".
Aliás, rever nexte contexto o também muito jovem Denis Lavant, que
depois esteve em todos os filmes do cineasta e se tornou o seu
"actor-fetiche", é perceber que ele era o Léaud de Carax,
sim, mas um Léaud "misturado" com um anti-herói "punk"
(digamos, um Léaud "post-Sid Vicious"), investido do
estigma "proletário" de um Jean Gabin e carregando o
"pathos" de um Lon Chaney, "homem das mil caras"
como de resto "Holy Motors" tão perfeitamente evocaria.
Quer em "Paixões Cruzadas" quer em "Má Raça"
as cenas mais longas - e de certo modo as cenas centrais - são as
extensas cenas de diálogo e cerimonial entre o "boy"
(sempre Lavant) e a "girl" (Mireille Perrier no primeiro
filme, Juliette Binoche no segundo), quase tornando possível atestar
que o coração do cinema de Carax nasceu naquela sequência de "À
Bout de Souffle" com Belmondo e Jean Seberg fechados no quarto,
enrolados e a citar Faulkner. Mireille Perrier, de resto, se a dada
altura aparece com o corte de cabelo Seberg, tem a cara chapada de
Anna Karina, parecença fisionómica que Carax acentua ao filmá-la
nalguns grandes planos que se diriam saidos do "Vivre sa Vie".
Em parte, repete isso com
Binoche em "Má Raça", mas agora a cores. É um filme onde
a presença dos velhos (Michel Piccoli e Serge Reggiani, ambos
transportando imenso "mundo") lança a questão, meramente
esboçada em "Paixões Cruzadas", das heranças, dos pais
e dos filhos, do que se transmite de uns para os outros. Não por
acaso, no ambiente vagamente "fc" que é o do filme, a
"transmissão" é um tema central: há um virus a dizimar a
humanidade, um virus que ataca "os amantes que fazem amor sem
sentimento", e se à época (em 1986) se viu aqui uma metáfora
da Sida hoje a relação com a doença parece meramente instrumental.
Também na época se viu no filme uma abordagem do tema da "herança"
como um "fardo" (Daney escreveu isso, então, no
Libération), como se "Má Raça" fosse um filme para
"matar o pai" ou, então, para se deixar matar por ele -
que é possivelmente a moral da história. Belo e inquietante, é um
filme muito do seu tempo, e um filme feito para, pelo menos, estar à
altura do pai - e na sua estrutura feita de fragmentos e associações
livres, "slapstick" e "non sequitur"
incandescentes, nunca nenhum filme se mediu tanto e tão bem com os
"Godards 80". Mas também é o filme onde se exprime
plenamente um desejo de recuo no tempo, uma atracção pelo
"primitivismo" (também já esboçada em "Boy Meets
Girls", onde alguns planos dão inaudita atenção às passadas
de Denis Lavant) e pelo cinema como máquina destinada
primordialmente a registar e decompor o movimento e a acção. E é
por isso que que lá está, numa das mais soberbas cenas que Carax
filmou (aquela que Noah Baumbach citou em "Frances Ha"), o
alucinante "travelling" sobre Denis Lavant a correr, dançar
e gesticular rua abaixo ao som do "Modern Love" de Bowie.
Em "Holy Motors", vinte e seis anos depois, associaria -
"misturaria" - isto com Marey e com os dispositivos de
"motion capture" digital, num "raccord" tão
megalómano como o osso de Kubrick no "2001", a fazer a
ponte entre extremidades "civilizacionais".
É a "odisseia"
do cinema de Carax: redescubram-se então estes dois momentos
iniciais, dois dos melhores e mais belos filmes dos anos 80, em
qualquer quadrante.
LMO