Seymour
Nebenzal fora um dos produtores mais importantes da Alemanha de
Weimer, estando por trás de alguns títulos lendários desse
período, como Die
Buchse der Pandora
(entre outros Pabst), Mennschen
am Sonntag,
e os dois últimos filmes alemães de Fritz Lang (em simultâneo os
seus dois primeiros filmes sonoros), M
e Das Testament des
Dr Mabuse. Em
1933, como tantos outros alemães, teve que sair do país, e
estabeleceu-se em França, onde ao longo da década de 30 produziu
vários filmes maioritariamente realizados por outros emigrados
alemães - como Robert Siodmak ou Max Ophuls, com quem repetidamente
colaborou nesse período. Com a França ocupada pelos nazis em 1940,
fez de novo as malas, agora para os Estados Unidos e para Hollywood,
onde se estabeleceu como produtor independente e continuou a
trabalhar com emigrados alemães, nomeadamente Edgar G. Ulmer e
Douglas Sirk, de quem produziu Hitler's
Madman
e Summer Storm.
Mas a vida de produtor independente na Hollywood daqueles tempos era
difícil, e Nebenzal nunca conseguiu replicar o sucesso dos seus
tempo alemães ou franceses. Lembrou-se a certa altura de tirar um
coelho da cartola: o M
de Fritz Lang, que se estreara em 1931 e do qual ainda tinha os
direitos. Propôs o "remake" a Lang, que como sabemos
também já estava havia muito tempo em Hollywood, mas Lang, se não
recusava "refazer" filmes de Renoir (Scarlet
Street
e Human Desire),
torcia o nariz ao "remake" de filmes seus, e disse que não.
Nebenzal não desistiu e resolveu entregar o projecto a Joseph Losey,
então no início da carreira mas bem lançado por três títulos
sonantes, The Boy
with Green Hair,
The Lawless e
The Prowler.
Do ponto de vista comercial, a aventura não correu bem. M foi a
última produção americana de Nebenzal (que só voltaria
episodicamente à actividade vários anos depois, e já de regresso à
Alemanha), e o último filme que Losey completou nos Estados Unidos -
ainda neste ano de 1951 seria denunciado como comunista pela Comissão
de Actividades Anti-Americanas, forçado a abandonar o filme em que
trabalhava (The Big
Night)
e a exilar-se na Europa.
Esta
introdução serve para salientar três aspectos fundamentais deste M
de Losey. A questão do "remake", o facto de se tratar de
uma produção independente, e o clima de paranóia provocado
pela caça às bruxas comunistas que o famigerado Senador Joseph
McCarthy então animava. Este é o contexto do filme de Losey, como
se ele já previsse o que lhe ia acontecer. De resto, a palavra
"comunista" ouve-se no filme (e não em tom lisonjeiro), e
no final o discurso do advogado "oficioso" do criminoso tem
uma incidência "social" muito mais forte do que no filme
de Lang, fala de pobrezas, roubos e desigualdades, vira a questão da
culpabilidade para o lado da "sociedade". Não por acaso,
quando o filme termina e o genérico final cai sobre o derradeiro
plano, aquele com quem ficamos é com o advogado, tombado morto no
chão, esse advogado alcoólico caido em desgraça e notavelmente
interpretado por Luther Adler que tivera, naquele discurso fortemente
eivado de um sentido de justiça, um momento de redenção, e que é
a personagem com quem a câmara de Losey pode ter alguma empatia,
totalmente impossível quer com os polícias, quer com a associação
de malfeitores, quer com o criminoso (um espantoso David Wayne) que
aqui está no lugar de Peter Lorre.
Mas
deixemos o final do filme e voltemos ao princípio, porque ele nos
dá, de maneira tremendamente sintética, alguns dos eixos mais
importantes deste "remake". Aquele "pré-genérico",
com o cabeçalho do jornal ("procura-se assassino de crianças"),
depois o movimento de câmara para dentro da carruagem, os vários
passageiros cujos rostos nunca vemos (com toda a inquietação
decorrente: o assassino pode ser qualquer um), e depois a carruagem
em movimento deixando ver, no horizonte, a paisagem urbana de Los
Angeles. Logo a seguir, o genérico é acompanhado de cenas curtas,
mostrando o assassino e as suas presas, planos sempre elípticos mas
sugestivos da maior perturbação (inclusive sexual, como na cena do
bebedouro). É muito raro, no cinema americano da época, este grau
de sugestão da violência sexual e pedófila. Diga-se, de resto, que
oito estados americanos proibiram o filme, com base nesta violência
e nas suas (bastante óbvias) conotações, bem mais explícitas do
que no filme de Lang. Mas, sobretudo, a cidade: ao estúdio do M
original, produção opulenta e plena de recursos, esta versão "low
budget" contrapõe as armas (mais baratas) de que pode dispôr.
A exploração dos décores, urbanos e realistas, da cidade de Los
Angeles, sobretudo dos seus subúrbios algo degradados tanto
arquitectonicamente como socialmente, algo que, em termos políticos,
parece plenamente coerente com o posicionamento de Losey. O realismo
desta versão, a troca do estúdio pela rua, é uma das suas forças,
ao mesmo tempo que ilustra um aspecto fundamental da "independência"
americana, ser um contraponto à "fábrica de sonhos"
hollywoodiana. Convém notar, também, que umas das sequências mais
espectaculares deste M decorre num célebre edifício de Los Angeles,
o Bradbury Building, cujos elaborados interiores mais do que uma vez
seriam aproveitados pelo cinema (mais notavelmente, pelo Blade
Runner de
Ridley Scott, trinta anos depois).
E
só dez anos depois o cinema americano teria um personagem como o
psicopata deste filme, no corpo do Norman Bates do Psycho
de Hitchcock. Até fisionomicante David Wayne aponta mais para
Anthony Perkins do que para Peter Lorre - e há aquela cena, com a
fotografia da mãe, a sublinhar a justificação psicanalítica das
acções da personagem. O seu monólogo, no final, consegue a proeza
de ser tão intenso como o de Lorre no original, sendo no entanto
muito mais seco e muito mais frio, sem aquela piedade que o
"expressionismo" de Lorre não deixava de convocar (Lorre
tornava-se uma "criança", Wayne fica sempre só um adulto
regressivo, não exageramos se dissermos que é ainda mais
perturbante). De qualquer modo, cotejar os dois M
não deixa de ser um exercício inevitável para quem tiver bem
presente na cabeça o filme de Lang - que perceberá como, por
exemplo na cena inicial com o vendedor de balões, totalmente
decalcado de Lang, a découpage segue, com uma fidelidade incrível,
o que Lang fizera 20 anos antes.
Filme surpreendente, o M de Losey é dos objectos mais singulares do
cinema americano dos anos 50.
LMO